30 agosto 2008

O poder do Karaoke

É imperioso que comece a crónica de hoje com um alerta: talvez não saia mais do Zimbabué.
(pausa, para que o grito sufocado de angústia ou o suspiro aliviado de sossego atravessem o sistema respiratório e assumam a forma de som...)
Eu explico, porque tudo é transparente para os que me seguem. Ontem, pela hora de jantar, éramos cinco à volta de uma mesa redonda no Pointe, um estabelecimento de diversão nocturna propriedade do Sr. Quintas, que assegura ter sido, em tempos mais idos, o cantor romântico de maior sucesso na África Austral.
Posso assegurar que foi o local mais interracial que conheci em toda a minha vida: encontrei angolanos, locais brancos e pretos, portugueses, um médico da ex-Jugoslávia, um advogado grego, alemães, brasileiros, iranianos, gente da polícia, indianos, diplomatas, pessoas com ar de leste, homossexuais, um chinês e tantos outros cuja proveniência me é desconhecida.
O estabelecimento serve jantares (classificado, no Michelin que me habita os sentidos, como satisfaz / satisfaz pouco). É um restaurante arquitectonicamente algo degradado, esteticamente indefinível, com pormenores curiosos: no cimo da parede, junto à sanca, um friso de lâmpadas verdes e encarnadas brilha em contínuo, revelando um nacionalismo iluminado; nas paredes, quadros diversos, variando entre o impressionismo, marinhas inglesas, tapeçarias ou óleos locais pendurados sem rigor de esquadria nem de cota; a um canto, um sistema traiçoeiro electrocuta insectos esvoaçantes num ruído de fritura; ventoinhas diversas e em profusão, lutando contra a estagnação dos aromas; no topo do salão principal do estabelecimento, dois semáforos grandes, projectando sem qualquer regularidade uma luz avermelhada forte. Indaguei, curioso, se estaria relacionado com algum código entre patrão e empregados, um morse luminoso que agilizasse o serviço, apressando a rotação das mesas. A resposta de um dos meus colegas de repasto veio imediata:
- não! Indica apenas casa de banho cheia…
Perguntar-me-ão, então, o que lá fui fazer, o que leva ao Pointe todo o mundo de Harare, sem qualquer distinção do que quer que seja. Eu explico numa palavra simples – mas demolidora: o karaoke! Na realidade, é esta espécie de semi-playback com legendas que impele dezenas de pessoas, todas as 6ªs feiras para, à volta de uma feijoada, de uma garoupa, de um chicken piripiri ou, simplesmente, de uma cerveja, se divertirem até ao limite da (sua) decência.
(A informação que intercala a reportagem não é despicienda: entre cantares espontâneos há dança – forte, participada, africana, ritmada e contagiosa).
A sala não estava ainda quente – embora cheia – e já eu me abalançava para o primeiro teste, sabendo que o clima mundial se altera quando canto. Olhei para uma lista infindável de canções e não encontrei o Requiem de Mozart, espécie musical onde me sinto como peixe na água. Optei por uma toada que conheço, que tem uma letra (na minha imaginação, “assexuada”) que se adequa aos vários mundos em que vivo e que permite aos espectadores cantar em uníssono com o herói que se chega à frente: Che sera, sera.
Quando dei por mim, era um artista no palco, com 1,86m, barbudo, um peso a rondar (para cá ou para lá) os três dígitos, pronto a enfrentar o possível arremesso de loiça e de vegetais sobrantes. Quando dei por mim cantava, simplesmente:

When I was just a little girl
I asked my mother, what will I be
Will I be pretty, will I be rich
Here's what she said to me.

Imaginei nos espectadores aquele olhar de espanto que antecede o do nojo ou da fúria – ou simplesmente o da estupefacção. Não sei se terá sido um sonho, mas o facto é que supus alguém, ao ver-me cantar uma música de mulher, a gritar da penumbra do salão:
- canta o like a virgin…
No fundo, dentro de nós vive um cançonetista em permanência, pronto a emergir ao menor sinal de despudor, de descontracção – ou excesso de vinho. Percebi, aos 50 anos, que quem habita o meu canto esmagado de entertainer se chama Doris Day…
É isto, meus amigos. O karaoke levou-me, mais tarde, a enfrentar o la bamba e o obla di obla da num dueto de amigos e no recato da mesa. Não sairei mais de cá, porque estou certo que alguns países, dado o impacto da minha actuação, não me deixarão sair. Outros, exactamente pelos mesmos motivos, não me deixarão entrar….
Entre séries de voluntários (JdC levou uma multidão ao rubro entoando o Here comes the Sun e o Like a Rolling Stone) havia música diversa, para animar uma pista sempre cheia, mista, onde ocupei o meu lugar com a ligeireza que Nosso Senhor me quis dar. No espaço de um instante dançava com gente local e desconhecida uma toada sul-africana, sensual, batida, que me levou ao encanto de uma escultura dengosa e próxima – muito próxima, mesmo - que se contorceu com o à-vontade de quem tem estes sons dentro de si. Entre mim e ela chegou a haver, apenas, os meus óculos de meia-lua. Posso arrimar-me na dança com quem não conheço, roçar o corpo por uma beldade local, mas o facto é que já não vejo bem ao perto.
Vislumbrei, na minha febre de 6ª feira à noite, o poder do karaoke. Estou mais do que certo que todas as crises do mundo se resolveriam numa noitada assim: Bush e Putin entoando o friends will be friends, Sócrates e Manuela Ferreira Leite em how deep is your love, Paulo Portas no my way. E todos eles, na pista de dança, encostando corpos frenéticos ao som de músicas lascivas, assinando pactos de regime com a volúpia no olhar.

Notas finais:
- JdC encontrou um potencial primo angolano que se apresentou dizendo: sou neto do D. Pedro S. arcebispo de Malange. Se não fosse o meu pai, eu era branco como você. E abraçaram-se, num clima de parentesco desconhecido.
- num formato A4, a Times New Roman 12, 14, e 16, um aviso informa os clientes do Dress Code: smart casual, sendo interditos os chapéus, calções e T-shirts.
- Por mais ligeira que possa parecer a crónica, diverti-me à ufa, como se costuma dizer: cantei como se a minha vida dependesse disso, dancei com quem nunca tinha visto nem voltarei a ver, tomei a decisão de voltar mais vezes. Encontrei a satisfação na simplicidade, no que não é requintado mas é contagiante, na facilidade com que podemos confraternizar com a diferença que se senta ao nosso lado.
- A alegria pode ser um túnel todo iluminado. É injusto que se veja, ao longe, um brilho que se extinguiu, como se algo nos dissesse que todo o gozo tem uma sombra de neurastenia.

Adeus, até ao meu regresso…

3 comentários:

Anónimo disse...

:-)))
E sim, concordo que seja injusto que se veja ao longe do tunel todo iluminado que é a Alegria, um brilho que se extinguiu.

Daqui vejo uma mais que bela estadia, em tantos episódios engraçados q por certo não se vão também extinguir.

Um beijo, parto para Barcelona amanhã de manhã em trabalho. Até 4ª f!
São

Anónimo disse...

Já chorei a rir, obrigada!
Que programa tão divertido, que bom sabê-lo disponível para tirar tanto partido!
Por favor, volte lá, grave a sua actuação e publique-a aqui. Imperdível!!!
Nunca deixe de nos contar o que por aí vai vivendo! Promete?
Continue nesse constante Game Viewing, está a ganhar atitude.
Beijinhos gargalhados...

ana v. disse...

Genial crónica, JB! Não sei se foi o nacionalismo iluminado ou outra coisa qualquer que o fez artista de palco, mas exigimos a repetição desses talentos no regresso, nem que para isso tenhamos que recriar o cenário (sem as esculturas sensuais, que serão mais difíceis de imitar...)

Um beijo para si e outro para o embaixador roqueiro!

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