31 dezembro 2019

Textos dos dias que correm

O Amor é o Caminho que nos Leva à Esperança

O amor é o caminho que nos leva à esperança. E esta não é uma espécie de consolação, enquanto se esperam dias melhores. Nem é sobretudo expectativa do que virá. Esperar não significa projetar-se num futuro hipotético, mas saber colher o invisível no visível, o inaudível no audível, e por aí fora. Descobrir uma dimensão outra dentro e além desta realidade concreta que nos é dada como presente. Todos os nossos sentidos são implicados para acolher, com espanto e sobressalto, a promessa que vem, não apenas num tempo indefinido futuro, mas já hoje, a cada momento. A esperança mantém-nos vivos. Não nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão, derrubados pelas forças da morte. Compreender que a esperança floresce no instante é experimentar o perfume do eterno.

José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'

30 dezembro 2019

Textos dos dias que correm

No ventre da miséria

«Aquele de quem fugimos, seguiu-nos. Aquele que tínhamos perdido, reuniu-se a nós!/ Chegou a nós no ventre da nossa miséria e humilhou-se nas nossas mãos./ Habita no vinho dos cálices e no pão branco dos altares./ Tu, ò Igreja, estende-lo aos nossos lábios famintos./ Tu o precipitas no coração da nossa solidão, para a abrir como uma porta descerrada.»

«Chegou a nós no ventre da nossa miséria»: canta, assim, num dos seus “Hinos à Igreja”, Gertrud von Le Fort (1876-1971), a escritora alemã protestante que em Roma se converteu ao catolicismo.

Nestas palavras celebra-se o mistério da incarnação, que está no coração do Evangelho de João, o evangelista que a liturgia assinala hoje: «O Verbo fez-se carne, e pôs a sua tenda no meio de nós» (1,14).

A poetisa vê a continuação viva da incarnação na Eucaristia: «Habita no vinho dos cálices e no pão branco dos altares». A incarnação continua na Igreja, o corpo místico de Cristo, que torna presente no tempo e no espaço a obra de salvação do seu Senhor.

É sugestiva a imagem final na qual se retrata Cristo enquanto se «precipita no coração da nossa solidão». A humanidade, ainda que imersa nas coisas e nas distrações, sente aflorar na alma um sentido de solidão, de insatisfação, de inquietação.

Eis, então, aquele viajante misterioso que se junta a nós durante o nosso caminho, como tinha acontecido naquela tarde aos discípulos de Emaús. É uma presença discreta e secreta, mas não espetral ou etérea. As últimas palavra do Cristo ressuscitado foram: «Eu estou com todos vós até ao fim do mundo» (Mateus 28,20).


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 27.12.2019

29 dezembro 2019

Sagrada Família de Jesus, Maria e José – FESTA

EVANGELHO Mt 2, 13-15.19-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Depois de os Magos partirem, o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: «Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto e fica lá até que eu te diga, pois Herodes vai procurar o Menino para O matar». José levantou-se de noite, tomou o Menino e sua Mãe e partiu para o Egipto e ficou lá até à morte de Herodes. Assim se cumpriu o que o Senhor anunciara pelo Profeta: «Do Egipto chamei o meu filho». Quando Herodes morreu, o Anjo apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: «Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e vai para a terra de Israel, pois aqueles que atentavam contra a vida do Menino já morreram». José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e voltou para a terra de Israel. Mas, quando ouviu dizer que Arquelau reinava na Judeia, em lugar de seu pai, Herodes, teve receio de ir para lá. E, avisado em sonhos, retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Assim se cumpriu o que fora anunciado pelos Profetas: «Há-de chamar-Se Nazareno».

27 dezembro 2019

Da diferença de olhares

Sigo, na Netflix, a terceira temporada de The Crown, uma série que retrata a família real inglesa desde o fim de Jorge VI até (parece-me que lá chegará) à morte de Diana. Falam-me do actor que é isto, da actriz que é aquilo e mais não sei o quê. Confesso que olho para a série como um documentário que, não sendo factual, terá muito de verdade. Nesse sentido não me interessa tanto a representação, mas a interacção da rainha com os políticos, as ideias de Isabel II quanto ao seu papel de mãe, de mulher ou de soberana de uma nação, o que alguns estadistas pensavam dela. É a dimensão histórica da série; mas também me interessa o pequeno pormenor: o protocolo, as tradições, os hábitos ou as manias. 

O último episódio que vi aborda a ida do homem à lua: vemos o entusiasmo do Principe Filipe, a emoção juvenil das crianças, o maior ou menor interesse dos outros adultos. E há um momento que me chamou particularmente à atenção: o Duque de Edimburgo, sabendo que os astronautas irão ao palácio numa tournée mundial, pede para ter um encontro privado com eles, fora do burburinho protocolar. Vemo-lo a redigir um conjunto de perguntas num pequeno papel, sendo que uma das perguntas fala no destino do Homem para lá dos limites da terra. Sente-se uma certa dimensão filosófica naquele feito tecnológico.

O encontro de Filipe com os americanos é decepcionante. Em frente dele estão três técnicos sem qualquer olhar transcendental sobre o que fizeram. Limitaram-se, segundo eles, a cumprir procedimentos para cumprir uma missão. Falaram do cansaço e, prosaicamente, do barulho de um frigorífico. Não se sentiram próximos de Deus, não sentiram pequenez ao ver a Terra de longe, não olharam para além do desfocado: procedimentos, procedimentos e mais procedimentos. No fim quiseram saber como se vivia no palácio, quantos quartos havia e se o Duque de Edimburgo conhecia os cantos à casa. Os astronautas acabaram numa correria por uma escadaria acima e a tirar fotografias (que hoje seriam selfies...).

A expectativa é, na verdade a mãe da desilusão. E a desilusão do Príncipe Filipe, embora genuína e compreensível, é certamente injusta. Ir à lua não é ir ao Guincho num dia de tempestade; sair de uma cápsula rumo ao quase total desconhecido não é a contemplação de uma paisagem açoriana onde o silêncio nos convida à transcendência. Ir à lua é, de facto, cumprir procedimentos; é ter o coração acelerado, é estar atento a todos os sinais - pressão, temperatura, teor de humidade, indicadores de funcionamento de manómetros ou de motores ou de aparelhos que permitam a respiração. Por vezes queremos que os outros vejam mais além; mas os outros querem é continuar a viver. E seguramente voltar para casa. Deus, se pensaram nele, teria essa função - ajudá-los no regresso.

JdB

26 dezembro 2019

Textos dos dias que correm

Desejo de Natal

«No termo da estrada não está a estrada, mas a meta. No termo da escalada não está a escalada, mas o cume. No termo da noite não está a noite, mas a aurora. No termo do inverno não está o inverno, mas a primavera. No termo da morte não está a morte, mas a vida. No termo da humanidade não está o homem, mas o Homem-Deus. No termo do Advento não está o Advento, mas o Natal. A espera não deve desfazer-se numa inquietude infinita.»

Como em cada ano, o Natal regressa para indicar-nos que há uma meta no nosso caminho. Recorda-no-lo com estas simples palavras, dedicadas à «espiritualidade da estada», Joseph Folliet (1903-1972), um francês comprometido com o mundo do trabalho, com os direitos calcados, com a solidariedade, e que se tornou sacerdote aos 65 anos.

O frenesi contemporâneo criou uma espécie de insatisfação permanente: quanto mais se tem, mais se quer. É por isso que nunca se conhece um ponto de chegada e um propósito preciso e definitivo, mas vagabundeia-se sem meta.

O Natal é precisamente o sinal de um porto de chegada, é quase o indicador de uma meta que ainda não se alcançou mas que é certa, e, como diz Folliet, não tem no centro um homem, mas o Homem-Deus. E não só porque Cristo emerge, mas também porque todas as criaturas humanas são chamadas a ser filhas de Deus, de modo que «Deus seja tudo em todos» (I Coríntios 15,28).

Aliás, Paulo ousará imaginar um ponto final, no qual toda a criação será redimida, fruindo da mesma liberdade e da mesma alegria dos filhos de Deus. «No termo da morte não está a morte, mas a vida.» É este o desejo de Natal para cada pessoa, sobretudo para quem está desencorajado e desiludido.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Imagem: D.R.
Publicado pelo SNPC em 24.12.2019

25 dezembro 2019

Missa do Dia de Natal

EVANGELHO - Jo 1,1-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.
No princípio, Ele estava com Deus.
Tudo se fez por meio d'Ele
e sem Ele nada foi feito.
N'Ele estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas
e as trevas não a receberam.
Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João.
Veio como testemunha,
para dar testemunho da luz,
a fim de que todos acreditassem por meio dele.
Ele não era a luz,
Mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira,
que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem.
Estava no mundo
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu.
Veio para o que era seu
e os seus não O receberam.
Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus.
E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.
Nós vimos a sua glória,
glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito,
cheio de graça e de verdade.
João dá testemunho d'Ele, exclamando:
«Era deste que eu dizia:
'O que vem depois de mim passou à minha frente,
porque existia antes de mim'».
Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho Unigénito, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer.

24 dezembro 2019

Natal

O editor e dono do estabelecimento deseja a todos os seus leitores e colegas de escrita no blogue um Santo Natal. Que os pouco mais de três minutos do filme abaixo sejam motivo de inspiração e de atenção ao próximo, e que possamos e queiramos - ainda que metaforicamente - jogar futebol com os nossos inimigos ou com aqueles de quem não gostamos, que queiramos perguntar-lhes os nomes e, na confusão da despedida, trocar involuntariamente presentes. 

JdB

23 dezembro 2019

Poemas dos dias que correm

Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal'

***

Nasce Mais uma Vez

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.

Miguel Torga, in 'Diários'

22 dezembro 2019

IV Domingo do Advento

EVANGELHO - Mt 1,18-24

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

O nascimento de Jesus deu-se do seguinte modo:
Maria, sua Mãe, noiva de José,
antes de terem vivido em comum,
encontrara-se grávida por virtude do Espírito Santo.
Mas José, seu esposo,
que era justo e não queria difamá-la,
resolveu repudiá-la em segredo.
Tinha ele assim pensado,
quando lhe apareceu num sonho o Anjo do Senhor,
que lhe disse:
«José, filho de David,
não temas receber Maria, tua esposa,
pois o que nela se gerou é fruto do Espírito Santo.
Ela dará à luz um Filho
e tu pôr-Lhe-ás o nome de Jesus,
porque Ele salvará o povo dos seus pecados».
Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o senhor anunciara
por meio do Profeta, que diz:
«A Virgem conceberá e dará à luz um Filho,
que será chamado 'Emanuel',
que quer dizer 'Deus connosco'».
Quando despertou do sono,
José fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara
e recebeu sua esposa.

20 dezembro 2019

Poema (metafórico) para os meus dias de hoje

Tenho uma Grande Constipação

Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

19 dezembro 2019

Duas Últimas

Ouvi muito Patxi Andion numa fase da minha vida, talvez porque houvesse um disco qualquer lá por casa. Aqui fica uma lembrança pela morte dele, ontem.

JdB



18 dezembro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

DE VITÓRIA EM VITÓRIA ATÉ À DERROTA FINAL - «A HERDADE»,

O novo filme(1) de Tiago Guedes revisita com mestria uma parcela ampla da história de um país sujeito a enormes transformações, sentidas também num Alentejo aparentemente pacato e menos vulnerável a mudanças vindas do exterior. 

A personalidade cativante de João Fernandes, dono de um dos maiores domínios da metrópole – dito ‘latifúndio’, na nomenclatura pós 25 de Abril – está talhada para gerir a terra com garbo e carisma, numa extensão perfeita de si próprio. A magnífica empresa rural, que herdara após o doloroso suicídio do irmão mais velho, fluía solidamente sob o seu pulso firme e empreendedor. Pontificava sobre extensos olivais com mantos de água e pequenas praias fluviais, o casario dos trabalhadores bem orientados sob a sua batuta e o monte onde a casa grande se estendia em U, fiel à tradição arquitectónica do Sul da Península partilhada com as fincas andaluzas. 

O argumento, montado em espiral, começa e acaba junto à copa da árvore centenária, que se impõe num horizonte plano e raso. Mergulhamos na infância de João, algures na década de 50 do século XX, quando aquela ramagem frondosa serviu de cenário ao enforcamento do irmão morgado. O pai obrigara-o a encarar o cadáver e deixara-o no vazio: o que termina – avisou-o – termina! Tendo apenas 6 ou 7 anos, o pai condescendeu que fugisse, de seguida, para se abrigar na pequena ilha à vista da árvore antiga onde a morte baloiçava ao vento. Ali terá recuperado o ânimo, pelo mesmo apego à terra que revitalizara Scarlett O’Hara quando o mundo escapou ao seu controle dominante, sonegando-lhe as expectativas. Na forte réplica portuguesa de ‘E tudo o Vento Levou’ reencontramos, em seguida, o jovem adulto confrontado com os desafios do tempo, à medida de uma maioridade pujante. Experimenta, então, a pressão descarada (e em caricatura) dos sequazes da política centralista da Primavera marcelista, boçais e implacáveis no afã de orquestrar as vontades individuais, sobretudo das elites mais independentes. Conseguiriam domar o indomável e bem relacionado João?      


Tinha a força pessoal e as alianças certas para marcar posição, mesmo em contraciclo com um regime controlador.

Hábil, corajoso e sustentado por um bom jogo de alianças, o dono da terra não se deixa vergar. Antes sulca vias para reacertar o rumo segundo o que entende ser mais justo, sem beliscar o seu património. Com a mesma habilidade e coragem, esquivou-se às libertinagens perigosas que a Revolução dos Cravos agitou no Alentejo. Nessas afrontas, revelou uma tranquilidade igualmente invulgar, saindo ileso de um estatuto que o atirava para o olho do furacão. O seu networking eficaz voltou a permitir-lhe escudar-se no séquito de trabalhadores incrivelmente fiel e bem sintonizado com a sua liderança vigorosa e inspiradora. Os tempos acabavam por lhe correr de feição, parecendo eternamente moldáveis à sua vontade férrea. 

A mulher, sempre ansiosa e desconfortábel, entretinha-se a custo num mundo rural pouco a ver consigo.  O marido mal dava por ela e pelo incompreendido filho de ambos, que Leonor tentava proteger da dureza paterna.

João, o eterno sedutor, com a noiva e cunhada, quando podia cultivar a ilusão de ter o mundo a seus pés, como o staff da PIDE & afins.

Porém, nem o poderoso e talentoso João estava imune à realidade, que um dia poderia arrasar-lhe os planos, por válidos que fossem. Com o passar dos anos, também a fidelidade dos mais próximos acusou sinais de desgaste a um poder de lógica pessoalista, eivado de uma solidão egocêntrica mas auto-suficiente e feliz enquanto pôde decidir o curso dos acontecimentos. Adivinhava-se que a solidão medrava desde tenra idade, numa tentativa compreensível de sobrevivência. Ali se entrincheirara e a partir dela reinventara-se. 

Na casa grande e bem governada, as primeiras dissidências irromperam com fúria e descontrole, como é costume nos ambientes onde reina a disciplina. Até a morte voltou a perturbar João, levando-lhe o melhor aliado – o feitor, que aceitou ser cúmplice das liberalidades mais insidiosas do patrão. O paradigma empresarial dos anos 90 derrubou o modelo de gestão amador, tolerado numa economia protegida e quase de subsistência. O mundo, que lhe obedecera enquanto se bastara a si próprio, traía-o quando a idade começava a pesar, dificultando os sonhos que destinara à boa terra a que devotara a vida. 

À medida que o seu universo vai ruindo, em tortura lenta, outras vontades ganham fôlego, todas elas desafiadoras e contrárias à sua mundivisão. Na sua ordem repleta de previsibilidade, as brechas emergem do modo mais hostil, com suspeitas graves e ataques ad hominem, como se juízo final lhe fosse imposto por antecipação. Naquele cerco infernal, a última esperança esboroa-se com a partida abrupta do delfim semi-secreto. Resultou especialmente amarga, porque a decisão de partir confirmava o sentido de honra apurado e a bravura viril que o delfim herdara dele, incapaz de entrar nas jogadas oportunistas e algo mesquinhas dos que se movem pelo poder e pelo dinheiro. Nunca António, como nunca João, teria trilhado o caminho facilitista do conforto e da abundância ao preço de desguarnecer a honra de senhoras. E logo das duas senhoras que lhe eram mais queridas: a mãe e Teresa, a filha da casa grande. Acompanhamos a vitalidade do adolescente, num crescendo de maturidade e graça, até ao clímax de abraçar a opção mais difícil para o seu futuro, mas a mais digna e solidária. Sai de cena com a galhardia que João tinha protagonizado nas etapas mais difíceis dos anos áureos da sua vida. Uma vida que foi envelhecendo refém de um egocentrismo devorador, camuflado pelo glamour da juventude. Como sempre, mal o tempo da juventude se esvaiu, o monstro acordou da hibernação sem contemplações… 

António, numa despedida sem explicações para não expor outros, e com Teresa, nos derradeiros minutos de boa vida.

Na fase de ocaso, João enfrenta o pior embate com a personalidade mais antagónica: o filho legítimo, que ele desistiu de tentar entender. Só concebia a vida agarrada com garra para ser domada. Desesperava-o o feitio titubeante do rapaz, que parecia curtir a fragilidade e a inadaptação, ao estilo da mãe. Para cúmulo, o miúdo desforrava-se no típico desvio dos ‘fracos’ – conforme entendia João – num dia-a-dia sem norte e preso a vícios. Era a completa negação da fibra mínima para assumir o domínio patriarcal, nos moldes que o pai professava. Esta convicção genuína rapidamente resvalou da estranheza para a repulsa, materializando-se numa paternidade baseada na meritocracia afectiva, onde só cabem os primus inter pares, afinal os melhores, merecedores de respeito e ternura. 

Quando Teresa quis perceber o enigma da partida inesperada de António, o filho distante do arquétipo sonhado pelo pai, encontra a hora para o ajuste de contas com o progenitor. 

Na discussão mais violenta com o seu antónimo e descendente, carne-da-sua-carne por caprichoso acaso da natureza, João não hesitou em advertir o filho com a crueldade que tinha experimentado no seu pai: ‘tens a noção de que, se fosses um animal, já há muito terias sido abatido?’ Ambos conheciam a força daquelas palavras, pois a coqueluche do pai era o puro sangue mais perfeito da cavalaria. Em modalidade emotiva, ao jeito da Europa do Sul, repassam ecos inequívocos do tremendo princípio do apuramento de raça aplicado à humanidade. Nem a sombra da morte faltou à chamada, porque o resultado desagua sempre aí. 

A montagem brilhante é assinada pelo maior trunfo da equipa técnica de «A HERDADE» – Roberto Perpignani, que fizera carreira com Orson Welles, Bertolucci e ainda se destacara na montagem do documentário do alemão Thomas Harlan sobre a ocupação da propriedade dos Lafões: «Torre Bela», durante o PREC. Paulo Branco, produtor igualmente batido e integrado na equipa de Tiago Guedes, convenceu o italiano ao desafiá-lo a colaborar na desforra de «Torre Bela». Perpignani entusiasmou-se e ajudou ao bom resultado da obra do português. Também a fotografia é ímpar, assim como a escolha das personagens, consistentes e credíveis com a pequena excepção da ‘sogra’ (diria), mas com passagem residual na trama.  

De vitória em vitória até à solidão mais dolorosa, o bem-sucedido senhor da terra via-se impotente para travar a espiral de decadência. Depois de saborear em pleno o lema do Império Romano ‘a sorte favorece os audazes’, acabara vítima da profusão de qualidades com que a natureza o bafejara e ele se deixara enfeitiçar. O tempo já não corria a seu favor. O mundo já não reconhecia a sua voz sonora de comando. Restava-lhe a pequena ilha, subterfúgio de criança. Ali regressa só e sem o horizonte da infância. A vista para a firmeza altiva daquela árvore tão insensível às suas angústias não pressagiava nada de bom.

A sombra glaciar da árvore que testemunhou as mortes dos donos daqueles domínios.

O mistério do tempo – seguramente indomável à nossa vontade ulterior, ainda que pontualmente moldável, como provou o talentoso João Fernandes – já conheceu outras abordagens, mais realistas e não menos corajosas. Na memória do tempo, fez História uma sabedoria subtil, enraizada numa humildade lúcida. Suave como uma aragem pôde alcançar píncaros inacessíveis aos ventos colossais e violentos que estremecem, ciclicamente, a humanidade. A próxima Quarta-feira, traz-nos o dia do nascimento do Bebé, que quis ser pária no faustoso Império Romano. Dessa periferia remota, eclodiu a sua mensagem de Amor total, vivida e testada até ao último respiro, que continua a ecoar pelos séculos com a mesma vitalidade. O tempo, de início insensível a uma voz tão diferente de tudo o que conhecia, foi-se abrindo e iluminando com o sim de cada coração, pessoa-a-pessoa, aqui e agora, até ao fim dos tempos. Do caminho mais desconhecido dos homens veio a via mais humana, embora sempre misteriosa, sempre antiga e sempre nova.

BOAS-FESTAS a todos,

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA

Título original: A HERDADE
Título traduzido para inglês: THE DOMAIN
Realização: Tiago Guedes
Argumento: Rui Cardoso e Tiago Guedes 
Produzido por: Paulo Branco
Editor de Imagem/Montagem: Roberto Perpignani, que trabalhara com Orson Welles, Bertolucci e tinha feito a montagem do documentário «Torre Bela».
Fotografia: João Lança Morais
Duração: 2h44
Ano: 2019
País: Portugal

Elenco:
Albano Jerónimo (João Fernandes)
Sandra Faleiro (a mulher, Leonor)
Miguel Borges (o fiel feitor Joaquim Correia)
João Vicente, Leonel Sousa
João Pedro Mamede (o filho ‘falhado’, Miguel)
Ana Vilela da Costa (empregada e amante, Rosa)
Rodrigo Tomás (o delfim, António)
Beatriz Brás (a filha querida, Teresa)
Diogo Dória (o sogro)
Victória Guerra (a cunhada), etc. 
Curiosidade sobre o protagonista: Embora a personagem seja autónoma e bem desenhada, há quem a associe ao toureiro e grande proprietário rural, João Branco Núncio, conhecido por ‘o Califa de Alcácer’.
Local das filmagens: Herdade da Barroca d'Alva (Alcochete), do cavaleiro tauromáquico José Samuel Lúpi.

17 dezembro 2019

Da nossa família que desconhecemos

No início do século passado, um irmão da minha avó paterna partiu como chargé d'affaires, o que tem uma conotação diferente de encarregado de negócios, para a Holanda. Aí terá casado com uma holandesa e, aos 50 anos, teve uma filha. Morreu quando a filha (única) tinha 10 anos. À semelhança de muita gente daquele ramo da minha família (talvez meia dúzia, o que, com estes hábitos, configura bem a dimensão muita gente) nunca voltou a Portugal - ou se voltou não deixou marcas perenes da sua permanência. Talvez nem mesmo vestígios.

Através de uma aplicação que envolve identificação do ADN e comparação com ADN's semelhantes, um primo meu descobriu o que parecem ser familiares nossos, descendentes desse tio José do Carmo. Através do obituário soube-se que a filha única desse nosso tio-avô morrera em 2007 numa terra chamada Urbanna, onde era co-proprietária da Taylor Hardware & Furniture Co. O obituário tem um início invulgar para as páginas dos jornais portugueses que participavam, noutros tempos, falecimentos e missas de 7º dia. Diz o obituário (e traduzo livremente) que Therese D. Taylor, de 78 anos e viúva de Robert P. Taylor, partiu para casa para se encontrar com o seu Senhor e Salvador Jesus Cristo a 8 de Dezembro de 2007. Terá morrido na sua própria casa, após breve doença.

Há duas cidades Urbanna, nos EUA. Cruzando com o nome da empresa funerária (de Saluda, também nos EUA) que tratou das exéquias depreendo (sem grande margem para certezas) que esta Urbanna é na Virgínia; é uma cidade onde, segundo o censo de 2000, moravam menos de 600 pessoas, e que, entre outros factos assinaláveis, tem um festival de ostras que começou em 1958. 

Assumamos que falamos da mesma família: eu e os filhos da falecida somos filhos de primos direitos, o que é um parentesco próximo. Do lado específico da família que nos é comum conheço quase toda a gente; do lado específico da família que nos é comum eles não conhecerão ninguém. Num instante - num mail, num telefonema, numa imagem partilhada, no acesso a um programa específico - estes meus primos de Urbanna, VA, passarão a conhecer uma genealogia que vai até onde se poderá ir: nobres e plebeus, reis e aventureiros, santos e conspiradores, profissionais competentes ou amantes da boa-vida, gente notável e gente vulgar. O que dirão eles, habitantes de uma terra que tem menos de 600 habitantes e um festival de ostras com 60 anos? O que diria eu, se fosso ao contrário? Que mundo se abre dentro de nós? Abre-se algum, ou é apenas como ver uma rã com três olhos?

JdB   

16 dezembro 2019

Ainda das relíquias

Leio, de forma entrecortada, Imagens Imaginadas, de Pedro Mexia (Tinta da China, 2019). Num dos primeiros textos, intitulado, O negativo, o autor fala do Santo Sudário, do que o rodeia do ponto de vista religioso e "científico". E diz a dada altura: "[a] datação através do carbono 14 torna improvável que o sudário tenha dois mil anos. Ainda bem que é assim, porque o catolicismo viveu demasiado tempo ligado a relíquias, fetichismos." E, já quase no fim do texto: "[é] provável que o Sudário de Turim não seja a mortalha de Jesus. É mesmo desejável que o não seja."

Nada me move à polémica com Pedro Mexia (meu actual colega num seminário de doutoramento e pessoa por quem tenho estima e consideração e com quem converso uns minutos, dada a nossa pontualidade...) até porque uma eventual polémica com ele me deixaria em lugar periclitante. Além do mais, o texto não se reduz às citações que aqui faço. Não obstante a prudência que deve ter o sapateiro em não tocar rabecão, não consigo deixar de discordar de Pedro Mexia. Sim, gostava que o Santo Sudário tivesse sido a mortalha de Jesus Cristo. Porquê? O argumento está num texto que publiquei aqui, neste estabelecimento, em Abril do ano passado. E de que reproduzo parte, com a vossa licença e compaixão.

JdB

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(...) 

"Vem este arrazoado cansado e invernoso a propósito do Santo Sudário. Falou-se nesse tema há umas semanas, num almoço de amigos, a propósito de uma conferência. Voltei a ler sobre isso este sábado, no Observador. Vivia com a impressão que já se tinha provado que aquele pano não era do tempo de Cristo; fiquei depois com a impressão que sim, que é. Confesso que não sei bem o que pensar - e não sei se quero pensar muito. Uma parte do sudário é uma relíquia -  um osso, um prego que cravou Jesus Cristo, a coroa de espinhos que o Raposão traria à Titi, uma madeirinha (ou tabuinha?) aplainada por S. José. Uma parte do sudário é, repito, um objecto de devoção que não percebo bem, embora seja evidente a diferença relativamente ao eventual polegar de Santa Escolástica. A importância está em Jesus Cristo, não no que ele usou, mesmo que fosse naquilo que nos redime - a Cruz, a sepultura, a ressurreição.

Ora, há uma diferença no Santo Sudário. Um dedo é um dedo, um osso é um osso, um cabelo é um cabelo e, nesse sentido (e nesse sentido apenas) um cravo seria um cravo, uma madeirinha uma madeirinha. Porém no Santo Sudário há uma diferença substantiva: a manifestação de uma ciência que só poderia ser divina. Jesus Cristo, presumo eu, não foi pintado antes de ser sepultado. Ora, nesse sentido, não há razão, à luz da ciência, para que o corpo de Cristo ficasse marcado (talvez pintado seja demasiado profano...) naquele tecido que o envolveu. Houve uma explosão qualquer - uma libertação de energia, um milagre, algo não explicável à luz do conhecimento actual. É fácil cortar-se  uma falangeta, arrancar uma mecha de cabelo, rapar um bocadinho do madeiro onde Cristo agonizou. Mas ninguém sabia fazer aquilo com o Santo Sudário. É por isso, e só por isso, que eu gostaria que o Santo Sudário fosse verdadeiro. Era o sinal do celeste, do espantoso - de tudo o que está acima da nossa compreensão e que nos remete a uma pequenez saudável." 

15 dezembro 2019

III Domingo do Advento

EVANGELHO - Mt 11, 2-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
João Baptista ouviu falar, na prisão, das obras de Cristo
e mandou-Lhe dizer pelos discípulos:
«És Tu Aquele que há de vir ou devemos esperar outro?»
Jesus respondeu-lhes:
«Ide contar a João o que vedes e ouvis:
os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são curados,
os surdos ouvem, os mortos ressuscitam
e a boa nova é anunciada aos pobres.
E bem-aventurado aquele que não encontrar em Mim
motivo de escândalo».
Quando os mensageiros partiram,
Jesus começou a falar de João às multidões:
«Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento?
Então que fostes ver? Um homem vestido com roupas delicadas?
Mas aqueles que usam roupas delicadas
encontram-se nos palácios dos reis.
Que fostes ver então? Um profeta?
Sim - Eu vo-lo digo - e mais que profeta.
É dele que está escrito:
'Vou enviar à tua frente o meu mensageiro,
para te preparar o caminho'.
Em verdade vos digo:
Entre os filhos de mulher,
não apareceu ninguém maior do que João Baptista.
Mas o menor no reino dos Céus é maior do que ele».

13 dezembro 2019

o amor como bela arte *

atrás de si, os habituais clientes deixavam de tudo. peúgas sujas, pares de meias por estrear, um ou outro casaco de cabedal, garrafas de mau whisky, todo o género de roupa interior, cintos sem fivela, fivelas sem o respectivo cinto, um arco-íris de objectos sem préstimo evidente, cigarros meio-fumados, cigarros por fumar, cigarros sugados como se disso dependesse amanhã nascer o sol, livros baratos, luxuosas colecções de artigos científicos, exemplares de toda a imprensa portuguesa e de alguma estrangeira, uma dentadura, molhos de chaves, uma canadiana e duas bengalas, sobretudos cossados nos cotovelos, terços e um ou outro missal. 

com o que ela nunca tinha dado era com um coração em carne viva, deixado para trás, sobre o cobertor encardido. sim, ela suspeitara desde o mais tenro início: ele era aquele de quem todas as colegas de ofício falavam baixinho, um serial killer muito especial: o homem que semeava corações.

quando, anos depois, ela me contou esta história, achei-a (como sempre a tinha achado, confesso) levemente louca. eu, cínico glacial desde o berço, não poderia acreditar nisso. seria ir contra tudo aquilo para que, intelligent design ou simples mão-de-ferro em menino, me haviam programado para ser: um homem regrado, espartano, uma espécie de quintessência do bom-senso, com braços e pernas. 

mas desta vez algo me dizia para acreditar, mesmo que eu não soubesse exactamente de onde vinha esse sopro de fé, essa pulsão improvável e raríssima. quer dizer, saber eu sabia, não podia era aceitar que soubesse. afinal, frio e cortante, seco e enxuto, como eu me habituara a ser, havia treinado com afinco e zelo inultrapassável, para me conseguir apagar a mim próprio da minha própria memória.

o homem que semeara corações não se lembrava já desses seus dias de outrora. era agora um homem voluntariamente sem memória, na companhia de uma velha amiga de maus costumes mas muito bons fígados - e só eu e Deus sabemos como estes últimos escasseiam.

levantei-me, de mansinho, e dei-me ao mundo, como a ele havia chegado, umas já valentes décadas atrás. nú e sem vícios. de cabeça limpa e sem o menor vestígio de um coração.

(chegados aqui, impôe-se dizer-vos que tudo isto é metáfora - melhor ou pior manejada, mas ainda metáfora. só as partes que metem coração é que não o serão inteiramente, como se passa com aquela melancia que guardamos no sítio de todos os tesouros e que todos saboreámos em criança - quem vai acreditar que esse suco vermeho e doce, essa textura precisa e preciosa, não passam de metáfora? ninguém, pelo menos ninguém no seu perfeito juizo, se esquece do maravilhoso sabor de um coração de melancia..)

o sol brilhava agora, vertical e soberano como só ele sabe, como só ele pode. acolheu-me nos seus longos e largos braços, como se acolhe um filho que regressa de um ano, de um lustre, de um século, de incertas aventuras e cruel desabrigo. sem perguntas, sem rudeza, sem brusquidão. com lágrimas e voz embargada e aquela certeza funda de que a vida é possível, outra vez.

o homem que semeava corações ficara lá atrás, no file dos casos insolúveis. daqui a uns quantos anos, não mais seria recordado senão como uma anomalia, uma maçada para gente séria e honrada, um desaforo para todos os pragmáticos do mundo, um mito para as novas gerações de senhoras da vida que hão-de suceder às contemporâneas mestres de tão sui generis arte.

um crime perfeito - foram as palavras que lhe dirigi, antes de levantar a gola da gabardine príncipe-de-gales e me fazer ao caminho. continuava a ser inverno, como sempre, nesta cidade quase fantasma. mas o sol era agora uma possibilidade. e isso - só isso - fazia toda a diferença.

epílogo:

no seu leito de moribundo, ele sabia, bem no fundo de si, que o homem que semeava corações preparava a sua última visita, a sua derradeira obra-de-arte. e ele esperava-o, agarrado a um espelho triste, com um resquício de coragem e de dignidade, como já não se usava. como nunca se chegou a usar.

o amor como o mais perfeito dos crimes - foram as suas verdadeiras últimas palavras. e, bem vistas as coisas, as únicas que alguma vez realmente proferira.

gi.

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* publicado originalmente a 19.02.2010

12 dezembro 2019

Poemas dos dias que correm

Ode aos Natais Esquecidos

Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pêlos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.

Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
o meu desejo de ser bom para os outros.
Passei a escrever sobre tudo isso, sofregamente,
só para não ter de escrever sobre a saudade
que esse tempo fugidio deixou em mim.

A árvore mirrou de frio num canto da sala,
os presentes apodreceram no sótão da casa,
juntamente com os doces da Consoada
que ninguém teve vontade de comer,
nem mesmo os mais gulosos como eu.
Um homem de muita idade bateu-me à porta
e depositou-me nas mãos um pequeno embrulho:
«Eis o teu presente de Natal» — disse-me.
Abri-o e vi um livro onde se contava
toda a minha vida desde o primeiro Natal
de que conseguia lembrar-me, tudo o mais esquecendo.
Ali estava eu de pé, muito quieto, junto da árvore,
à espera que alguém me viesse dizer
que o céu era pródigo em revelações e dádivas.
Era para lá que eu sonhava ir quando morresse.

Quando Dezembro se aproximar do fim,
lançarei pétalas ao vento como se tentasse
semear o perfume do que fui enquanto acreditei.
Talvez o homem volte com outro embrulho secreto,
só para me dizer que esse é o livro que ainda me falta escrever.
Então, juntarei os amigos, os filhos e os netos
numa roda de luz à minha volta e direi do Natal
o que os antigos diziam dos heróis e dos deuses:
foi à sombra deles que nos fizemos homens.
Quando eu partir de vez, lembrem ao menos
a ternura do meu sorriso de menino
quando a meia-noite soava no relógio da sala
e eu acreditava ainda que a felicidade era possível.

José Jorge Letria, in 'Natal'

11 dezembro 2019

Textos dos dias que correm

O grande erro está em confundir prazer com felicidade

Prazer e sentido: interessante binómio! Por vezes difícil de conjugar! Escolham. Mas com cuidado, porque neste assunto, como em muitos outros, a precipitação não é boa conselheira. O que apetece mais e primeiro não é necessariamente o melhor, nem o mais conveniente, nem o que proporciona mais qualidade de vida.

É possível que este binómico tenha algo que ver com o apreço de Jesus pelo sal e pela luz, pelo sabor e pelo sentido. Que seria da vida se faltasse um ou outro, ou os dois?

Que não se veja nestas palavras iniciais um preconceito em relação ao prazer, nem muito menos uma condenação do mesmo. O pobre prazer foi demasiado ofendido em quase todas as religiões, também na cristã. Foi apresentado como inimigo de tudo: da espiritualidade, da moral, do Evangelho… Será que é, realmente, inimigo do Evangelho? Não há uma só página nos quatro Evangelhos canónicos em que se possa encontrar uma condenação do prazer. Se não o condenam os Evangelhos, por que haveria de o condenar a Igreja? Se não o condena Jesus, por que o haveriam de condenar os seus seguidores?

O prazer é muito importante na vida. Tão importante que, se desaparecesse totalmente, desapareceriam também os ímpetos de viver. Dizia-o com muita seriedade Aristóteles. E dizia-o precisamente quanto refletia sobre a ética. O grande filósofo grego pergunta-se por que é que os prazeres mais intensos estão associados à alimentação e à sexualidade. A sua resposta é esta: porque se trata das duas atividades diretamente relacionadas com a sobrevivência do indivíduo e da espécie. Se não houvesse prazer na alimentação, colocar-se-ia em perigo a sobrevivência do indivíduo. Muitas pessoas deixar-se-iam morrer de inanição. E se não houvesse prazer na relação sexual, colocar-se-ia em perigo a sobrevivência da espécie. Não haveria estímulo para a reprodução (agora a engenharia genética poderia garantir a sobrevivência sem a relação sexual, mas seria uma sobrevivência muito desumana). O prazer está na origem de muitas motivações.

Mas o prazer tem algumas características a que convém prestar atenção. Está associado aos sentidos externos, a gratificações sensíveis. Tem lugar quando se satisfaz a apetência dos sentidos: o gosto, o tato, o ouvido, a vista, o olfato. A maior parte dos prazeres são muito pontuais e passageiros. Tão depressa chegam como desaparecem. E o mais difícil do prazer é administrá-lo bem, gerir o seu tempo e a sua medida, hierarquizar… O abuso do prazer pode provocar fastio, rejeição, falta de sentido. Extremar o prazer acaba por produzir a obnubilação da mente, deterioração da saúde, mal-estar por causa do excesso… O consumo de vinho e os banquetes pantagruélicos demonstram-no com frequência. Por isso há que afirmar que o prazer é bom, é muito importante na vida, contudo há que acrescentar: mas não em demasia.

E, sobretudo, há que encontrar-lhe o sentido.

O sentido é outra coisa. Não é superficial. Vai ao fundo da vida, de todos os aspetos da vida. E é tão importante que é como o motor de todo o viver e de toda a realização. Repetiu-se muitas vezes na história do pensamento: dá-me um por quê, e sei capaz de enfrentar qualquer para quê. A sabedoria mais clássica coloca quase sempre a prioridade no lado do sentido. Tudo o que tem sentido vale a pena, inclusive quando falta o prazer.

Como o prazer, também o sentido tem as suas características. Ultrapassa a epiderme dos sentidos externos, e funda as suas raízes nos sentidos mais internos. Aponta para uma consciência desperta, para uma atenção plena, para uma lucidez que lança luz sobre o que somos e fazemos. Diferentemente do prazer, o sentido, em geral, tem um caráter permanente e eterno. Abarca espaços e âmbitos a que apenas afloram os prazeres sensoriais. O mundo do sentido está associado às experiências estéticas, às experiências éticas, às experiências religiosas. É aí que manam as fontes mais abundantes do sentido. É aí que nos encontramos com momentos supremos da vida que não queríamos que desaparecessem, que gostaríamos que durassem uma eternidade, que fossem capazes de parar o tempo e o cosmo.

Que diz esta sociedade do bem-estar sobre tudo isto? Para começar, está muito mais interessada no prazer do que no sentido. Os analistas da cultura atual insistem em que vivemos numa sociedade abundante em ofertas de prazer e escassa em ofertas de sentido. Acontece nas sociedades do bem-estar, mas também nas sociedades do mal-estar. O ideal de felicidade que se vende nestas é o mesmo ideal que rege e governa o mundo do consumo.

É uma sociedade abundante em ofertas de prazer, que sofisticou o prazer até à saciedade. Basta ver a quantidade de sabores de iogurtes ou de gelados, ou a infinidade de aromas de ambientadores, ou a variedade de músicas, ou a constante inovação dos designs para os tornar mais agradáveis à vista, ou o esforço para oferecer móveis cada vez mais confortáveis e superfícies mais suaves. Bem-vindos todos os prazeres que ajudem a elevar a qualidade de vida das pessoas. Mas não em excesso.

Seguramente que a única motivação que move a sociedade de consumo não é a qualidade de vida das pessoas, mas o incentivo económico. Não há melhor isco para o mercado que mudar a necessidade através do desejo. Compra-se muito menos no supermercado quando o comprador vai com a sua lista de comprar. A necessidade desaparece, uma vez preenchida. Compra-se muito mais e muito mais inutilmente quando o consumidor vai simplesmente incentivado pelo desejo. O desejo nunca se sacia completamente.

Em princípio, nada há que objetar à oferta de prazer desta sociedade do bem-estar. O grande erro está em confundir o prazer com a felicidade, ou tentar convencer as pessoas de que o prazer garante a felicidade. A experiência diz que isto é um erro. São muitas as pessoas que têm todas as condições materiais para ser felizes, e a felicidade não chega. São muitas as pessoas que têm acesso aos mais sofisticados prazeres inventados por esta sociedade do bem-estar, e a felicidade não chega. Onde está a chave? Talvez não se administrem bem os prazeres, porventura não se giram bem o tempo e a medida, dando-se lugar a um fastio contraproducente. Mas a razão de fundo deve ser esta: talvez o prazer acabe por ser inimigo da felicidade quando falta o sentido da vida, dos distintos âmbitos da vida. Por isso é preocupante aquele diagnóstico da cultura atual: abundante em prazer e escassa em sentido, abundante em técnica e escassa em ética, abundante em política e escassa em mística.

Apontou bem para o problema de fundo o conhecido psicanalista Viktor Frankl, autor do interessante livro “O homem em busca de um sentido”. A tese central desta obra, e de todos os seus livros, pode resumir-se assim: «O problema fundamental das pessoas não é a falta de prazer, mas a falta de sentido. Sem prazer pode viver-se; sem sentido só resta como saída o suicídio». E acrescenta uma observação mais aguda: «À medida que a vida das pessoas está falha de sentido, mais as pessoas correm em todas as direções para preencher os vazios de sentido à base do prazer». É a corrida louca do prazer. No livro há uma frase digna do Evangelho cristão. O autor foi um sobrevivente dos campos de concentração. A frase é a seguinte: «Dos que pudemos sobreviver, só sobrevivemos aqueles que encontrámos sentido para o sofrimento».


Felicísimo Martínez, op
In Religión Digital
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 09.12.2019

10 dezembro 2019

Do que desaparece com quem desaparece

Chegado aos quase 62 anos é normal que no meu curriculum conste uma certa dose de lutos. Para este exercício em voz alta retirarei aquele luto, brutalmente antes do tempo, que revisito de forma mais visível aqui, neste estabelecimento, no dia 6 de Julho e no dia 4 de Novembro. Poderia, sobre todos eles (sogros, cunhada, irmão, pessoa que ajudou a tratar de mim quando eu tinha 1 ano e morreu lá em casa passados 30 anos, mãe e pai, outros) tecer considerandos de ordem afectiva: as saudades que deixam, o amor que me devotaram ou que lhes devotei, a ideia do nunca mais os vejo, etc. Mas não é disso que quer falar.

O que morre em nós quando os outros nos morrem? O amor que perdemos é, de certa forma, um menor múltiplo comum que torna todos os nossos mortos iguais. Amamos um pai ou um irmão, temos afecto por uma cunhada ou por um sogro, liga-nos uma amizade especial a quem nos viu crescer e nos mimou uma vida inteira. Mas o que desaparece com aqueles que desaparecem e que não é traduzível por amor de mãe, que pode não ser mais do que uma expressão bonita?

Há uns anos morreu-me uma tia, não só por ser mulher de um primo com idade para ser meu pai, mas por ser grande amiga da minha mãe desde sempre. Na morte dela não morreu o afecto que ela me tinha. Na morte dela morreram 40 anos da minha existência - e sobre isso perorei neste estabelecimento. Morreu uma parte substantiva da minha adolescência e, com isso, memórias de cheiros, de conversas, de sons, de ambientes que me eram próximos e muito aprazíveis. Não morreu uma parente - morreu uma época. 

A minha mãe morreu há pouco mais de três anos, aos 80 e muitos anos; o que morreu com ela? Talvez a certeza da incondicionalidade - a última certeza que eu tinha da incondicionalidade. O meu pai morreu há pouco mais de 15 dias, aos 94 anos. O que morreu com ele? Talvez (entre outros) a memória. No desaparecimento deles não me ocorre a angústia do nunca mais os vejo, embora isso seja verdade. Mas, tal como o meu pai dizia com graça, nenhum dos dois tinha já idade para morrer de repente, pelo que foi uma partida de certa forma anunciada. Com o meu pai desaparece um repertório de informações (talvez "notícias", e já lá vou ao conceito) que não recolherei de mais ninguém. Há ainda gente antiga na família, com 90 anos. Mas, se acreditar que uma notícia é uma informação trabalhada, essa gente dá-me informações, o meu pai dava-me notícias. Porquê? Porque tudo era filtrado pela inteligência dele, pelos defeitos e qualidades dele, pela visão que ele tinha sobre o mundo - certa ou errada - pelo sentido de humor. Era uma memória não mecânica que reproduzia um dado passado há 60 anos, e que reproduzia uma sensação passada há 60 anos. 

Foi-se a ideia de incondicionalidade, foi-se a ideia de memória não mecânica. A vida é o que é.

JdB         


09 dezembro 2019

Poemas dos dias que correm

À Espera dos Bárbaros

O que esperamos nós em multidão no Forum?

Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

É que os Bárbaros chegam hoje.
Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

Porque os Bárbaros chegam hoje.
E o Imperador está à espera do seu Chefe
para recebê-lo. E até já preparou
um discurso de boas-vindas, em que pôs,
dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

Porque os Bárbaros chegam hoje,
e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.

Konstantínos Kaváfis

(Tradução de Jorge de Sena)

08 dezembro 2019

Solenidade da Imaculada Conceição

EVANGELHO - Lc 1, 26-38

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
o Anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,
a uma Virgem desposada com um homem chamado José.
O nome da Virgem era Maria.
Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo:
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Ela ficou perturbada com estas palavras
e pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe o Anjo:
«Não temas, Maria,
porque encontraste graça diante de Deus.
Conceberás e darás à luz um Filho,
a quem porás o nome de Jesus.
Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo.
O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David;
reinará eternamente sobre a casa de Jacob
e o seu reinado não terá fim».
Maria disse ao Anjo:
«Como será isto, se eu não conheço homem?».
O Anjo respondeu-lhe:
«O Espírito Santo virá sobre ti
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice
e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril;
porque a Deus nada é impossível».
Maria disse então:
«Eis a escrava do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra».

05 dezembro 2019

Das doenças raras

Estive ontem, em representação da Childhood Cancer International, numa mesa redonda sobre acesso a terapias para doenças raras em países de médio e baixo rendimento, promovido pela Rare Diseases International e pela IFPMA (International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations)

Sei que existem doenças raras e sei o que está por trás da classificação de doença rara. A Raríssimas (até no seu pior sentido, infelizmente) ajudou-me a tomar (mais) consciência dessa realidade. Mas uma coisa é saber que existem, outra coisa é ouvir falar delas: nomes que desconhecia, que tive de ir ao Google para perceber de que se tratava: doença de Gaucher, talassemia, doença de Fabry ou de Hnter. Outra coisa ainda é perceber a dimensão do problema: em todo o mundo há 430.000 casos por ano de cancro pediátrico; há doenças cuja estatística se "resume" às centenas no mundo inteiro.

Economia é uma palavra que deriva do latim e que significa, governo, direcção de uma casa; política significa gestão de recursos forçosamente escassos. Olhar para crianças com cancro e olhar para sete crianças que têm aquela doença num determinado país é diferente do ponto de vista da gestão dos recursos; e se for o nosso filho? E como se arranjam fundos para ajudar organizações que apoiam meia dúzia de famílias? E se for a nossa família? Quem são os laboratórios que investem milhões para investigar doenças que atingem centenas? Mas se for o nosso filho?

Falar de doenças raras é falar de dores individuais multiplicadas por dezenas ou por centenas; falar de doenças raras é falar de uma coisa rara, mas que tem um impacto devastador numa família, como o caso do malaio cujo filho tem atrofia muscular espinal e não é tratado convenientemente por causa de burocracias e economias; uma doença de que só soube a existência por causa de um bebé chamado Matilde que foi tratado com um medicamento que custa 1 milhão de euros. E se for o nosso filho?

JdB   

04 dezembro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

A CASA INVISÍVEL – DO ATELIER AIRES MATEUS

Portugal dá cartas e continua a somar prémios internacionais na arquitectura de autor. Desta vez, a casa quase invisível – de tal modo ficou embebida na paisagem – foi concebida pelo atelier Aires Mateus, que dedicou dois anos à fase de projecto e oito à construção, terminada em 2018.  Situada nas imediações de Monsaraz, ainda goza de uma vista soberba para o Alqueva. 

Uma casa dentro da paisagem torna-se quase invisível.
© joão guimarães

Inúmeras claraboias asseguram a entrada da luz natural, no interior.
© joão guimarães

As imagens fazem jus à fórmula especialmente harmoniosa da edificação de 174m2, que se incrustou habilmente no terreno, rentabilizando a área verde de uma propriedade com 2,1 hectares. O segredo começa no telhado: 

Em vista aérea. Há uma entrada pelas escadas que ligam o telhado-terreno à parte térrea da casa.
© joão guimarães

© joão guimarães

O duplo arco que demarca a linha do horizonte, foi concebido pelos arquitectos como a abóboda invertida de um templo.
© joão guimarães

© joão guimarães

© joão guimarães

Como costuma afirmar António Barreto, felizmente, Portugal vai tendo bolsas de excelência, que reinventaram produtos tradicionais e chegaram a áreas de ponta. Felizmente que a excelência tem persistido e até aumentado, aos poucos, despontando onde menos se espera, por mérito de gente muito capaz e empreendedora, que tem sabido avançar com garra, inúmeras vezes, contra ventos e marés… Verdadeiros heróis !

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

02 dezembro 2019

Poemas dos dias que correm

Do lado de lá de um mar qualquer um amigo trava uma luta. Do lado de cá desse mar um outro amigo trava uma luta diferente, que consiste em observar uma luta. Para um e para outro são tempos difíceis, de combate, cujo desfecho está no domínio da esperança. Para eles Mário Quintana.

JdB



ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

Mário Quintana

01 dezembro 2019

1º Domingo do Advento

EVANGELHO - Mt 24, 37-44

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Como aconteceu nos dias de Noé,
assim sucederá na vinda do Filho do homem.
Nos dias que precederam o dilúvio,
comiam e bebiam, casavam e davam em casamento,
até ao dia em que Noé entrou na arca;
e não deram por nada,
até que veio o dilúvio, que a todos levou.
Assim será também na vinda do Filho do homem.
Então, de dois que estiverem no campo,
um será tomado e outro deixado;
de duas mulheres que estiverem a moer com a mó,
uma será tomada e outra deixada.
Portanto, vigiai,
porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor.
Compreendei isto:
se o dono da casa soubesse a que horas da noite viria o ladrão,
estaria vigilante e não deixaria arrombar a sua casa.
Por isso, estai vós também preparados,
porque na hora em que menos pensais,
virá o Filho do homem.

29 novembro 2019

Textos dos dias que correm

Envelhecer

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.

Sándor Márai, in 'As Velas Ardem Até ao Fim'

28 novembro 2019

Duas Últimas

Sem qualquer intuito de classificação de quem é melhor, vale a pena ouvir estes dois fados e compará-los naquilo em que são semelhantes: um (ou algum) acompanhamento ao piano. O primeiro, cantado por Amália e retirado do álbum "Busto" é acompanhado por Alain Oulman; o segundo, do disco "Aqui está-se sossegado", é cantado por Camané e acompanhado por Mário Laginha. O exercício, para quem lhe encontrar algum interesse, é ouvir o piano, mesmo que num caso haja um conjunto de guitarras também e no segundo ele seja o único instrumento.

JdB  





27 novembro 2019

Textos dos dias que correm *

O Fernando Pessoa tem uma linha de um verso que diz assim: morrer é só não ser visto. Gostaria que a frase fosse apenas morrer é não ser visto para suportar melhor o meu raciocínio. Para o poeta seria quase indiferente; para mim não, pelo que vou apropriar-me da frase e tirar-lhe o .

Morrer é não ser visto pode ler-se de duas formas: (i) no acto de morrer nada mais há do que um desaparecimento da vista de uma comunidade; (ii) o desaparecimento da vista da comunidade é uma morte. Ambas as leituras se prendem com a ideia de uma não existência. O que significa, de facto não existir?

Um pêssego, tal como parte substantiva de artigos ao cima da terra - de máquinas de escrever a carros, passando por pessoas e jarras de flores - tem uma dupla valência: uma valência estética e uma valência funcional. A sua existência serve esses dois propósitos, e nesse sentido difere, ou pode diferir, de outros artigos que apenas tenham uma valência estética ou apenas uma valência funcional. A maciez da pele, a perfeição das formas ou da cor, a sua consistência ou a sua doçura são atributos do pêssego. Um parafuso não tem - ou tem-na em reduzida dimensão - uma dimensão estética; a sua funcionalidade domina tudo.

Qual é a diferença - grosseiramente falando - entre o parafuso e o pêssego? A dupla valência de um, a valência singela do outro. O pêssego surge-nos como estética e função; o parafuso apenas como função.

O que é uma pessoa? Esquecendo a biologia, a atendo-nos ao tema em apreço, uma pessoa é estética e função. Existe como ser e como fazer; existe como estar e como produzir. Ao contrário do pêssego, que é o que os outros vêem nele, uma pessoa é (também) o que quer revelar aos outros: num raciocínio mais arrojado, uma pessoa pode ser um pêssego ou pode ser um parafuso. Como é que essa pessoa se constitui? Como é que essa pessoa quer ser vista, lembrada para a posteridade?

O que significa, de facto não existir? Para o parafuso, a não existência deriva de uma cabeça romba, de uma ranhura esbeiçada, de um fio de rosca excessivamente desgastado. Não existir deriva da ideia de não funcionar. Para o pêssego, pelo seu lado, a sua não existência deriva da sua deglutição ou da sua eliminação fortuita ou intencional; isto é, mesmo azedo, o pêssego mantém uma forma aprazível, mesmo deformado mantém uma textura suave. O parafuso inexiste quando não funciona, o pêssego inexiste quando desaparece.

Como é que me constituo como pessoa? Como um parafuso ou como um pêssego? Se o fazer domina tudo, quando nada tenho a fazer, ou quando já não posso fazer tudo, inexisto. Se eu tiver uma dupla valência, consigo existir quando faço menos, ou fazer quando existo menos. Mas menos é comparação, não é eliminatório, não significa o vazio.

Sou para a comunidade o que quero mostrar à comunidade. Existo na medida em que me revelo; melhor, na forma como me revelo. Estar é tão importante como fazer. Ser é tão importante como produzir. A dupla valência é uma reserva, um plano B, um sistema em paralelo, uma redundância que confere segurança. Quando não faço, sou; quando não sou, produzo.

A não existência é a morte daquilo que nos constitui, daquilo por que nos constituímos, ou daquilo por que nos constituem os outros. A não existência é a morte daquilo que mostramos, daquilo que queremos mostrar, do que queremos apor no cartão de visita. Somos mais do que aquilo que fazemos, porque o fazer é um sucedâneo do ser. A mão mexe em resposta a um impulso do cérebro; o cérebro actua em função de um desejo. O importante, nesse sentido, é o desejo que motiva, não a mão que age. Movimento sem motivação intrínseca é desperdício de energia. Fazer sem porquê é não encontrar o porquê para fazer.

A transparência humana é, na sua grande maioria das vezes, estou em crer, uma construção do próprio; isto é, uma intencionalidade da intimidade, seja qual for a motivação. Não tenho o azar de ser transparente, disponibilizei-me para ser transparente ou, num caso mais extremo, quis ser transparente. E se sou transparente não existo enquanto ser, apenas enquanto fazer. Se não sou visto morri, na frase do Pessoa. Em bom rigor, não acontece sermos transparentes para os outros, quisemos ser transparentes para os outros, por mais frágil que seja o processo de decisão a montante.

Morrer é (só) não ser visto. Talvez precisemos, por isso, de ser pêssegos, e não ser parafusos. E talvez precisemos de dizer frente a um espelho: sou um pêssego, não sou um parafuso. Não precisamos de dizer que somos um pêssego bom, ou bonito, ou sumarento; basta dizer que somos um pêssego, que a beleza está nos olhos de quem vê. Não é a oratória de solilóquio do pêssego que lhe dá beleza, mas o olhar da comunidade sobre o pêssego.

* Alberto Collins de Carvalho, in Textos esparsos sobre a fluidez da vida 

26 novembro 2019

Daquilo que se diz ser verdade ou não

Uma destes dias, por causa da iminente partida de alguém que me era próximo, diziam-me: há-de ser quando Deus quiser. Fernando Pessoa, comentando a morte de Mário de Sá-Carneiro, começava um texto com as palavras: morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. É muito vulgar ouvir expressões como foi Deus que o quis salvar, ou foi Deus que assim o quis. A expressão mais corriqueira será até amanhã, se Deus quiser

Já há muito tempo que, enquanto católico convicto, me confronto com estas expressões. Em bom rigor, o problema não está nas expressões, mas no facto das expressões moldarem (ou poderem moldar) um pensamento. Quando uma amiga me disse há-de ser quando Deus quiser, não resisti a perguntar: acha que é Deus que quer? Quando, em diversas circunstâncias, me falam de crianças que se salvam, acrescentando foi Deus que a salvou..., não resisto a perguntar: falamos do mesmo Deus que não quer salvar outras crianças que morrem?

Deus quer que isto aconteça? Se Deus quer que sim, qual é o Seu critério? Basta-nos dizer que os caminhos de Deus são imperscrutáveis? Como discernimos a justiça que é deixar que malandros vivam até aos 90 anos e que crianças morram aos 7? E como discernimos a justiça entre taxas de sobrevivência em países ricos e em países pobres? Qual é, de facto, o critério de Deus para regular o mundo?

A pessoa que me era próxima morreu há dois dias; não morreu quando Deus quis, mas quando o seu corpo foi incapaz de sobreviver a uma doença grave e ao peso de 94 anos. A criança que morre com 7 anos não morre quando Deus quer, mas quando a técnica existente é incapaz de resolver um problema grave. Acreditar na mão de Deus em tudo o que nos acontece é, confesso, um exercício de enorme dimensão: como concebemos a mão de Deus por trás de um tsunami que mata milhares de pessoas? Onde está Deus no que concerne à Venezuela ou à Coreia do Sul ao à Alemanha nazi ou à Rússia estalinista? Onde está Deus nas disparidades económicas ou sociais ou nas mulheres que morrem vítimas de violência?

A ideia de um deus por trás de tudo não me é agradável. Acredito no Deus que pôs o mundo em movimento, que não está por trás do que acontece, mas que sofre com o que acontece. Dizer que é Deus que salva é dizer, também, que é Deus que não salva. Não sei se estou preparado para acreditar num Deus que permite que um homem doente, demente, ausente, por vezes violento e que desgasta uma família (pai de uma pessoa que me é próxima) viva até ao 80 e muitos, enquanto jovens morrem, bebés morrem, gente inocente morre.

O problema das expressões não está no facto de serem verdade ou não, mas no perigo de elas conformarem o nosso pensamento. Serei um mau católico?

JdB         

25 novembro 2019

Poema e música para o dia de hoje

Não Choreis os Mortos

Não choreis nunca os mortos esquecidos
Na funda escuridão das sepulturas.
Deixai crescer, à solta, as ervas duras
Sobre os seus corpos vãos adormecidos.

E quando, à tarde, o Sol, entre brasidos,
Agonizar... guardai, longe, as doçuras
Das vossas orações, calmas e puras,
Para os que vivem, nudos e vencidos.

Lembrai-vos dos aflitos, dos cativos,
Da multidão sem fim dos que são vivos,
Dos tristes que não podem esquecer.

E, ao meditar, então, na paz da Morte,
Vereis, talvez, como é suave a sorte
Daqueles que deixaram de sofrer.

Pedro Homem de Mello, in "Caravela ao Mar"

24 novembro 2019

Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

EVANGELHO - Lc 23,35-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
os chefes dos judeus zombavam de Jesus, dizendo:
«Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo,
se é o Messias de Deus, o Eleito».
Também os soldados troçavam d'Ele;
aproximando-se para Lhe oferecerem vinagre, diziam:
«Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo».
Por cima d'Ele havia um letreiro:
«Este é o Rei dos judeus».
Entretanto, um dos malfeitores que tinham sido crucificados
insultava-O, dizendo:
«Não és Tu o Messias?
Salva-Te a Ti mesmo e a nós também».
Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o:
«Não temes a Deus,
tu que sofres o mesmo suplício?
Quanto a nós, fez-se justiça,
pois recebemos o castigo das nossas más acções.
Mas Ele nada praticou de condenável».
E acrescentou:
«Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza».
Jesus respondeu-lhe:
«Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso».

22 novembro 2019

Poemas dos dias que correm

Presságio

Ela há-de vir como um punhal silente
Cravar-se para sempre no meu peito.
Podem os deuses rir na hora presente
Que ela há-de vir como um punhal direito.
Cubram-me lutos, sordidez e chagas!
Também rubis das minhas mãos morenas!
Rasguem-se os véus do leito em que me afagas!
— A coroa de ferro é cinza apenas...
E ela há-de vir a lepra que receio
E cuja sombra, aos poucos me consome.
Ela há-de vir, maior que a sede e a fome,
Ela há-de vir, a dor que ainda não veio.

Pedro Homem de Mello, in "Príncipe Perfeito"

***

A Dor Tem um Elemento de Vazio

A Dor - tem um Elemento de Vazio -
Não se consegue lembrar
De quando começou - ou se houve
Um tempo em que não existiu -

Não tem Futuro - para lá de si própria -
O seu Infinito contém
O seu Passado - iluminado para aperceber
Novas Épocas - de Dor.

Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice

21 novembro 2019

Sugestões (musicais) dos dias que correm *


Oitavo andar

Quando eu te vi fechar a porta
Eu pensei em me atirar pela janela do oitavo andar
Onde a dona Maria mora
Porque ela me adora e eu sempre posso entrar

Era bem o tempo de você chegar no T
Olhar no espelho o seu cabelo, falar com o seu Zé
E me ver caindo em cima de você
Como uma bigorna cai em cima de um cartoon qualquer

E aí, só nos dois no chão frio
De conchinha bem no meio fio
No asfalto riscados de giz
Imagina que cena feliz

Quando os paramédicos chegassem
E os bombeiros retirassem nossos corpos do Leblon
A gente ia para o necrotério
Ficar brincando de sério deitadinhos no bem-bom

Cada um feito um picolé
Com a mesma etiqueta no pé
Na autópsia daria pra ver
Como eu só morri por você

Quando eu te vi fechar a porta
Eu pensei em me atirar pela janela do oitavo andar
Invés disso eu dei meia volta
E comi uma torta inteira de amora no jantar

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* sugerido por mão amiga

20 novembro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

O PRIMEIRO MUSEU ARRANCOU COM ARTE E POLÉMICA A RODOS - VATICANO

A história tende a repetir-se, no melhor e no pior. É raro a audácia ser compreendida e devidamente aclamada, quando surge. Precisa de bastante tempo para ser digerida e reconhecida, quase sempre a título póstumo para os visionários, pois a maioria não costuma acompanhar, em tempo real, um rasgo diferente do padrão estabelecido. Aos audaciosos com talento cabe-lhes aguentar o desconforto de estar à frente do seu tempo. E assim chegamos ao primeiro museu público do Ocidente, por iniciativa do Vaticano, que se antecipou em vários séculos aos congéneres das grandes metrópoles europeias, com excepção de Florença, cuja décalage se ficou por sete décadas. 

O termo museu inspirou-se na expressão já conhecida em Roma para referir as grandes colecções de arte privadas – os «templos das musas». Na capital do Império, as casas e os sumptuosos jardins dos patrícios romanos rivalizavam em estátuas, fontes, pinturas e peças que deslumbravam os convidados. A alusão às 9 musas das artes e ciências provinha da mitologia grega, pois tinham sido geradas por Zeus para celebrar com sabedoria e sofisticação uma vitória marcante na vida atribulada dos deuses helénicos. 

O grande salto do coleccionismo de peças de elevado valor estético praticado na Antiguidade, para o serviço público, só foi dado no alvor do século XVI, por mérito de uma sequência feliz de Pontífices italianos, especialmente sensíveis ao potencial educativo da arte. A ousadia chegou à própria concepção do local, que não devia destoar do esplendor das peças exibidas. Assim, foi erigido um palácio para abrigar a magnífica colecção, que os Papas do Renascimento queriam partilhar com o grande público. Depois das catedrais góticas, o Belo voltava a impregnar o sentido missionário de uma cristandade cheia de contradições – marca d’água da presença humana – mas exigentíssima no que respeitava a saborear a beleza da criação – marca d’água do Criador. 

Pioneiros na arte aberta ao público, os Museus Vaticanos (Musei Vaticani) foram inaugurados em 1506. A outra grande iniciativa coube às Gallerie degli Uffizi, que abriu portas em 1581. Já o primeiro museu moderno, assim considerado porque se autoproclamou destinado à ‘educação universal’, despontou na Universidade de Oxford, em 1683, com o nome de Ashmolean Museum. O British Museum data de 1753, o Hermitage de 1764, o Louvre de 1793 e o Prado de 1819. Isto dá a medida do jet lag que os separa do Vaticano. 

Recuando a 1506, dir-se-ia que uma ideia tão feliz só podia colher aplausos e apoios… Mas não, há sempre expectativas diferentes, incluindo as legítimas divergências de gosto e objectivos. Curiosamente, no caso do Vaticano, o escândalo veio da audácia das poses nuas e da profusão de obras sobre temas pagãos concebidas por gentios. Este puritanismo descabido aos olhos da nossa geração deu brado à época. Felizmente que embateu nos critérios mais apurados dos Pontífices, que souberam privilegiar a qualidade artística das peças, numa ousadia pouco tolerada por grande parte da população. População que formava parte da cristandade. Já é famoso o episódio anedótico e real (!) dos pintores menores que Michelangelo colocou no lado do inferno pintado no tecto na Capela Sistina, plenamente reconhecíveis para humilhação deles, porque se tinham atrevido a acrescentar umas roupas às figuras despidas saídas do pincel do génio renascentista. Entenda-se que aqueles artistas tinham trabalhado a mando de cardeais, que achavam imprópria tanta nudez inundar o espaço da sala de eleição do sucessor de Pedro. Naturalmente que descartavam o sentido mais profundo de Michelangelo, a confrontar o espectador com os momentos cruciais da criação e do juízo final, onde apenas persiste e vale a essência do ser humano em corpo e alma.   

Dois textos gentilmente cedidos pelo autor – um com anos, outro com dias – relembram a polémica da novidade daquele primeiríssimo museu, bem como o brilhantismo que inspirou aqueles Papas italianos de gema:

Os primeiros museus do mundo

5-Nov-2015

Desde que o papado começou a ter influência na administração civil da cidade de Roma, as grandes preocupações foram os pobres, a instrução e a cultura. Os Papas queriam que o povo convivesse com a arte, em praças belas, decoradas com esculturas e fontes, em edifícios públicos com pinturas e tapeçarias de qualidade. No século XV, esta preocupação adquiriu um matiz novo, quando foi necessário proteger as obras de arte que não podiam ficar à intempérie, ou eram substituídas por outras mais modernas. Para que a população tivesse livre acesso a esses objectos, tal como contemplava as obras de arte espalhadas pela cidade, surgiram os primeiros museus do mundo.

Como é óbvio, foi preciso inventar o nome, porque a palavra «museu» não existia com este significado. Com sentido de humor, importou-se a palavra grega «muséon» (palácio das musas). Sem pruridos de linguagem sexista, o conjunto, incluindo os esplêndidos exemplares de Júpiters e de Apolos, ficou conhecido como «as musas», figuras femininas mitológicas inspiradoras das artes.

A arquitectura dos edifícios foi uma inovação, porque nunca se tinham construído edifícios para expor objectos de arte. Quando, mais tarde, apareceram outros museus na Europa, o modelo mais corrente foi aproveitar os palácios dos regimes depostos, por exemplo o Hermitage em S. Petersburgo, ou os palácios de coleccionadores ricos, por exemplo a National Gallery em Londres, para mostrar os respectivos tesouros. O museu do Louvre também se instalou num palácio antigo, como muitos grandes museus. O museu Vaticano e os outros museus construídos pelos Papas foram diferentes, porque nunca foram palácios, nunca morou lá ninguém, mas foram projectados de raiz para serem visitados pelo povo. Só séculos mais tarde, no século XIX e sobretudo no século XX, se construíram outros museus de raiz: por exemplo, o museu Calouste Gulbenkian em Lisboa, ou os Guggenheim de Nova Iorque ou de Bilbau.

Outra característica invulgar do museu Vaticano é que não tem peças roubadas. Pode dar vontade de rir constatar que esse sistema expedito (digamos assim) foi adoptado pelos principais museus. O museu do Louvre começou com uma colecção de pintura e escultura roubada às igrejas francesas; o museu nacional de Arte Antiga, em Lisboa, tem uma origem semelhante; outros grandes museus nasceram do saque dos tesouros do Egipto ou da Grécia. O próprio museu do Vaticano foi saqueado no princípio do século XIX por Napoleão Bonaparte. Fala-se em um milhão de caixas levadas para Paris, com peças de arte e arquivos. Com a queda do Imperador, aquilo que foi possível recuperar voltou para Roma.

O museu Vaticano e os outros museus que os Papas promoveram geraram polémica desde o início. Que desperdício oferecer arte ao povo! Os ateus de há uns séculos acusavam o Vaticano de hipocrisia, com o argumento de que expor divindades pagãs era fomentar a idolatria. Hoje em dia, diz-se que a arte é luxo e desafia-se o Vaticano a vender a arte aos ricos para dar o dinheiro aos pobres (os ateus da internet usam termos mais veementes, que me dispenso de reproduzir).

Está à vista que os católicos são tanto ou mais pecadores que as outras pessoas, contudo, também é verdade que a Igreja foi – e continua a ser – uma instituição muito especial.

Uma das alas das várias galerias de escultura antiga.

O Vaticano e as divindades pagãs

17-NOV-2019

A ideia de construir um museu nasceu há mais de cinco séculos na cabeça de alguns Papas. […] A ocasião surgiu por causa da abundância de obras de arte da época do império romano que os donos deitavam fora e corriam o risco de se perderem. Como se tratava sobretudo de uma colecção de divindades pagãs, o povo chamou à colecção «Casa das musas», ou «Museu». As musas eram as nove deusas gregas inspiradoras da arte e da ciência.

A intenção dos Papas não foi organizar um depósito fechado, onde só os eruditos fossem admitidos, o objectivo foi reunir uma colecção que pudesse ser visitada por qualquer cidadão e fomentar as visitas. Organizar todo aquele acervo deu imenso trabalho e exigiu a construção de um edifício invulgarmente grande, uma espécie de enorme palácio aberto a todos os visitantes. […]

Apolo Belvedere - estátua trazida para Roma pelo Papa Júlio II em 1508. 

A proposta de reunir uma colecção tão vasta e construir pavilhões tão gigantescos não foi bem recebida por todos. Alguns criticavam o que consideravam ser a promoção do luxo, do supérfluo, em contraste com a austeridade da vida de Cristo. Vários bispos eram desta opinião e inclusivamente um Papa interrompeu as visitas e mandou cobrir com tapumes algumas estátuas que decoravam as fachadas exteriores. Outra objecção tinha a ver com o conteúdo maioritariamente pagão das obras de arte, porque o Museu do Vaticano tinha algumas peças cristãs, sobretudo pinturas, mas a maioria das obras eram representações de divindades pagãs. Estas pessoas temiam que o museu se tornasse uma espécie de templo de uma religião sincrética.

Claro que os Papas que idearam o Museu do Vaticano não queriam favorecer o luxo mas o apreço pela beleza. […] Foi Deus quem impregnou o universo de beleza. A cor, a luz, o fogo, a música, até a eloquência do discurso e a emoção do amor. As obras de arte realmente belas participam na sinfonia cósmica da beleza. Segundo os Papas, toda a beleza tem origem em Deus e conduz as almas a Deus.

Também é evidente que o Museu do Vaticano não se destinava a ser um novo templo pagão e, de facto, a preocupação dos que temiam que isso acontecesse não correspondia a um perigo real. Tanto quanto se sabe, nenhum visitante do museu se tornou pagão no final da visita.

Nesta semana, um grupo de individualidades de todo o mundo interpretou a presença de um fetiche amazónico no Vaticano como atitude idolátrica do Papa Francisco e dos bispos que estavam com ele. 

Outubro de 2019 durante o Sínodo da Amazónia

O teor violentíssimo com que condenaram o Papa mostra o profundo sofrimento que aquela cena lhes suscitou. O tom exaltado do manifesto reflecte certamente um genuíno amor a Deus mas talvez aquela agressividade seja interpretada por alguns como falta de respeito e de amor ao Romano Pontífice. De certa maneira, a história repete-se. Não nos compete julgar ninguém. Rezamos por todos.

José Maria C. S. André


Se custa assistir à repetição de erros e de controvérsias talvez escusadas, a reincidência também ajuda a relativizar-lhes o peso. Outras gerações terem sobrevivido aos deslizes, faz-nos acreditar que também conseguiremos suplantá-los e melhor imunizar as gerações futuras contra as próximas recaídas. Se os antigos teriam muito a aprender connosco, também nós temos imenso a aprender com eles, sendo que a bola já só está do nosso lado… 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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