07 julho 2024

XIV 14º Domingo do Tempo Comum

 Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se à sua terra
e os discípulos acompanharam-n'O.
Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga.
Os numerosos ouvintes estavam admirados e diziam:
«De onde Lhe vem tudo isto?
Que sabedoria é esta que Lhe foi dada
e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?
Não é ele o carpinteiro, Filho de Maria,
e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?
E não estão as suas irmãs aqui entre nós?»
E ficavam perplexos a seu respeito.
Jesus disse-lhes:
«Um profeta só é desprezado na sua terra,
entre os seus parentes e em sua casa».
E não podia ali fazer qualquer milagre;
apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos.
Estava admirado com a falta de fé daquela gente.
E percorria as aldeias dos arredores, ensinando.

06 julho 2024

Carta a um anjo

Nasceste hoje, mas há 30 anos.

***

O meu percurso académico leva-me a entrevistar Pais de crianças que foram diagnosticadas com cancro e que estão globalmente fora de tratamento há 5 anos ou mais. Um dia mais tarde entrevistarei Pais cujos filhos foram diagnosticados mais recentemente e que, por isso, ainda estão em tratamento. E entrevistarei Pais cujos filhos - na generalidade muito novos, demasiadamente novos - morreram de cancro. Em todos eles ouvirei o mesmo, entre outros aspectos mais individuais: tive pouca gente com quem conversar sobre o tema; muitos dos meus amigos desapareceram.

Se, por um lado, é a vulnerabilidade que une os seres humanos, por outro lado - ironicamente - é essa mesma vulnerabilidade que cria um espaço, tantas vezes intransponível, entre o eu que sofre e o outro que escuta. Ou, porque tudo isto é biunívoco, entre o outro que sofre e o eu que escuta. O desaparecimento de amigos é um problema que afecta estes Pais; é um problema real, mas assente num equívoco. Ninguém desaparece por desinteresse, mas por desacerto. Ninguém desaparece porque não tem interesse em ouvir um Pai a falar de um filho com cancro, mas porque não sabe o que dizer a um Pai que tem um filho com cancro. Somos todos tentados a apresentar uma saída para o sofrimento dos outros, a sugerir ferramentas para que a pessoa siga em frente, tenha pensamentos positivos, procure a sua felicidade. Somos tentados a oferecer soluções, quando os outros talvez queiram dar-nos uma angústia. Estamos menos preparados para escutar, porque o mundo nos impele a resolver. Escutar é uma arte - e não é uma arte fácil.

***

Duas décadas de actividade no mundo da oncologia pediátrica ensinou-me quase tudo o que eu quereria - ou precisaria - saber para ser, se o conseguir, um pouco melhor. Ensinou-me que somos todos diferentes, e que isso faz de nós todos iguais. Ensinou-me a importância das histórias, da escuta, da solidão das pessoas, da destruição de relações, do fortalecimento de relações. Ensinou-me a fragilidade de tantos profissionais de saúde, treinados para curar e dar boas notícias, não para serem confrontados com a morte.  Ensinou-me o desacerto desses mesmo profissionais de saúde, que não foram ensinados a olhar para esta comunidade de Pais e doentes com um olhar atento, desprovido da ciência que atenta nos números que se leem, não nas palavras que (não) se ouvem. Ensinou-me a generosidade humana, a vulnerabilidade que liga, a emoção que enriquece, as lágrimas que não se contêm.  

***

O meu texto de há um ano acabava com uma frase que me apetece repescar, não como um mantra que nos faz lembrar algo, mas como uma certeza que nos enriquece e que conta a nossa história dos últimos 23 anos: não somos os mesmos, não seremos os mesmos

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram.

05 julho 2024

Poemas dos dias que correm

 FILHA

Filha, se em algum momento,
enquanto estás ocupada a crescer
- dura e lícita tarefa –
puderes olhar-me nos olhos,
fá-lo.

Não deixes as perguntas
para quando for a mesma voz
a perguntar e a responder.

Olha que nesta família
temos o doloroso costume
de conhecer-nos melhor em mortos.

Ana Pérez Cañamares
(Espanha, 1968 - )

04 julho 2024

Textos dos dias que correm

 A Casa do Homem

Imagine uma pessoa que não tem lugar. Anda perdido, desorientado. E imagine outra pessoa que é filho de família, tem os pais, os irmãos, a casa. A casa é muito importante. Vai sempre seguro de si porque tem um sítio de acolhimento se as coisas lhe falharem. Digamos a casa, digamos o lugar, digamos o sítio. Tal como o Ulisses volta a casa. Ele quer voltar ao recolhimento, à segurança, ao aconchego. O aconchego do ventre da mãe. A casa do homem é o ventre da mãe. Onde ele está e não precisa de fazer nada, tem tudo. E é feliz. E quando o Ulisses vem moribundo e fala na morte, surge a ideia de túnel que é o nascimento do feto, uma reminiscência. Por exemplo, o filme falado termina com o comandante que vê a casa a destruir-se, porque a casa dele é o navio. Mas há o lado ético: o capitão deve ser o último a deixar o barco, e ele tem um passageiro e não pode ir lá substitui-lo. Este é o grande drama. Ele vê arruinar todo o sistema, toda a sua vida, que está concentrada na sua casa. É essa a tragédia que o mundo sofre agora. É que a gente não dá conta, mas no fundo a Terra é a nossa casa. Portanto, já vê o mérito da arquitetura e a ligação que a casa tem ao ventre da mãe. 

Manoel de Oliveira, in 'Vitruvius (Entrevista), 2004

03 julho 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 IA E HUMANOS – COOPERAÇÃO OU DESPIQUE? 

Há quatro décadas, o mundo esteve por um fio para o deflagrar da Terceira Guerra Mundial, logo após a mensagem emitida pelo computador soviético Krokus a indicar o lançamento de um míssil contra a Rússia, disparado da base norte-americana de Montana.  Nessa madrugada de 26 de Setembro de 1983, a equipa militar a trabalhar no bunker russo ‘Serpukhov 15’, responsável por vigiar qualquer movimentação suspeita no arsenal militar norte-americano, registou na sua máquina mais sofisticada aquela agressão semi expectável por parte da potência arquirrival. 

Além de a máquina Krokus ser considerada infalível, a tensão política da época não destoava do ataque, com a bem sucedida sabotagem norte-americana aos avanços das tropas soviéticas no Afeganistão (por recurso a Osama bin Laden e a outros líderes guerrilheiros anti invasão russa), a declaração pública do Presidente Ronald Reagan a acusar a União Soviética de personificar o «Império do Mal», o investimento substancial dos EUA em defesa, a somar aos exercícios da NATO na simulação de cenários de conflito nuclear. Por seu turno, o Presidente russo Jurij Andropov denunciara o que considerava ser a escalada, sem precedentes, da maior crise entre as duas superpotências da Guerra Fria. Os serviços secretos do Pacto de Varsóvia continuavam a influenciar os grupos pacifistas ocidentais híper críticos do Ocidente (apenas!, como lembrava Miterrand) na corrida às armas nucleares, além de desferirem outros golpes corrosivos para a economia e a coesão social das democracias ocidentais, sobretudo via braços sindicais extremistas e partidos políticos de extrema esquerda (à época). No dia 1 de Setembro desse ano de 1983, os soviéticos chegaram a alvejar um avião comercial das Korean Air Lines, quando sobrevoava a península de Kamchatka, vitimando os 269 passageiros.

Foi nesse ambiente internacional de hostilidade acintosa que o chefe de turno do bunker russo – o tenente-coronel Stanislav Evgrafovich Petrov – detectou a mensagem de disparo do míssil norte-americano. Em vez de cumprir o protocolo e dar o alerta imediato aos superiores para o lançamento de mísseis contra os EUA, Petrov preferiu esperar, admitindo a probabilidade de ser um falso alarme, até pela alta improbabilidade de um ataque através de um míssil isolado, de reduzido efeito bélico. Porém, a máquina informou do lançamento de mais quatro mísseis mortíferos. Já não era um disparo solitário, embora em número ainda insuficiente para uma ofensiva eficiente. Percebendo o risco de estar a desencadear um confronto destrutivo para o planeta com base em possíveis erros electrónicos, Petrov voltou a ignorar os alertas surgidos no seu monitor, para espanto e enorme desconforto dos outros oficiais russos. Decidiu não dar o alarme antes de os radares terrestres corroborarem a aproximação das armas, pois continuavam sem sequer as detectar. Como os mísseis intercontinentais atingem o alvo em menos de meia hora, passado esse tempo mínimo ficou evidente para todos a inexistência dos disparos indicados pelo potente aparelho Krokus. Apurou-se, mais tarde, que o erro se devia a um fenómeno raro de refração da luz solar, que incidira sobre nuvens a alta altitude. Em conclusão: só a inteligência humana tinha sido capaz de ver para além da máquina, apercebendo-se do provável ferro mecânico e assim poupando o mundo a uma catástrofe nuclear. Só o sábio escrutínio humano ao automatismo electrónico pudera salvar a humanidade! 

Este episódio só veio a público no início da década de 1990, depois da implosão da URSS. Petrov, que viveu até 2017, comentava com enorme humildade o seu papel naquela noite histórica, no bunker soviético: «o que eu fiz? Nada de especial, apenas o meu trabalho. Eu fui o homem certo, no lugar certo, à hora certa». 

A necessidade da supervisão humana à máquina, comprovada na arrojada decisão de Petrov, aplicam-se em cheio à IA, capaz de produzir conteúdos interessantes e cumprir tarefas utilíssimas, mas também de errar clamorosamente. Como recomendam filósofos, sociólogos e o próprio Papa: a IA precisa do factor humano. Na mensagem para o Dia Mundial da Paz (em 2024), Francisco frisou o papel insubstituível de uns e de outros, em especial em contexto militar: «A exclusiva capacidade humana de julgamento moral e de decisão ética é mais do que um conjunto complexo de algoritmos, e tal capacidade não pode ser reduzida à programação de uma máquina que, por mais «inteligente» que seja, permanece sempre uma máquina. Por esta razão, é imperioso garantir uma supervisão humana adequada, significativa e coerente dos sistemas de armas [e de outros automatismos]. (…) Fazer a guerra escondendo-se atrás de algoritmos, confiando na inteligência artificial para determinar os alvos e como atingi-los e, assim, limpar a consciência porque, no final, a máquina escolheu, é ainda mais grave. Não vamos esquecer-nos de Stanislav Evgrafovich Petrov

A curta-metragem «O OUTRO PAR» (The Other Pair, de 2013-14) realizada pela egípcia Sarah Rosik, aos 20 anos de idade, tem somado galardões, precisamente pela riqueza humana da trama. O volte-face generoso, que altera radicalmente o rumo inicial, é estranho e sem sentido para a lógica dos algoritmos. Só o coração humano o percebe, pois sustenta-se em razões que, frequentemente, a razão desconhece: 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

02 julho 2024

Em memória de Fausto Bordalo Dias (1948 - 2024)

Fausto Bordalo Dias é, para usar uma expressão antiga, um artista muito cá de casa. Tanto eu como o meu querido amigo fq o trouxemos várias vezes a este estabelecimento, seja para falar de poluição, por causa do seu Se tu fores ver o mar (Rosalinda), para falar de danças e cartas, por causa do seu Namoro, ou de programas de família, a propósito do seu Todo este Céu. Ou para celebrar o aniversário de um disco, por causa do seu Por este rio acimaSoube ontem que tinha morrido em casa, vítima dessa enfermidade que se chama doença prolongada

Estou muito longe de dominar a discografia de Fausto, que era extensa e de qualidade. As músicas de que me lembro - ou as que estão mais à tona do meu cérebro - são as que aqui foram postadas ao longo dos anos. Vejo-me, por isso, em terreno de alternativa difícil: ou vou à procura de uma originalidade ou aposto na repetição, para meu deleite.

Deixo-vos, por isso, com um tema que ainda não passou neste estabelecimento: Lembra-me um sonho lindo. O título suscita-me dúvidas: há algo que o lembra de um sonho lindo ou ele pede a alguém que o lembre de um sonho lindo? O que quer que seja, que o título da música seja um bom mote para os dias que correm: a importância dos sonhos lindos. 

JdB

 

Lembra-me um sonho lindo

Lembra-me um sonho lindo, quase acabado
Lembra-me um céu aberto, outro fechado
Estala-me a veia em sangue, estrangulada 
Estoira no peito um grito, à desfilada
 
Canta, rouxinol, canta, não me dês penas
Cresce, girassol, cresce entre açucenas
Afaga-me o corpo todo, se te pertenço
Rasga-me o ventre ardendo em fumo de incenso 

Lembra-me um sonho lindo, quase acabado
Lembra-me um céu aberto, outro fechado
Estala-me a veia em sangue, estrangulada
Estoira no peito um grito, à desfilada 

Ai! Como eu te quero! Ai! De madrugada!
Ai! Alma da terra! Ai! Linda, assim deitada!
Ai! Como eu te amo! Ai! Tão sossegada!
Ai! Beijo-te o corpo! Ai! Seara tão desejada!

01 julho 2024

Músicas dos dias que correm *

 


* enviado por mão amiga

Não deixe eu me arrepender De um dia eu ter te amado, João Não deixe eu escapar assim Me prende nos seus braços, João Cola do meu lado Tranca um cadeado Ponha alarme em mim Não deixa eu chorar no quarto Pensando em você, João Não deixe o tempo apagar Eu posso te esquecer, João Me liga toda hora Vigia a minha porta Cuida do meu coração Resolve os meus problemas Me leva pro cinema Depois até a lua Me traz uma estrela Me faz a gentileza Comete uma loucura Me leva no seu bolso Me faz de travesseiro Me pendura em seu pescoço feito um amuleto Você me tem nas mãos Mas não aperta, João Que eu escapo entre os seus dedos

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