14 maio 2024

Dos agradecimentos *

 Há um menor múltiplo comum forte entre a ideia de que "os homens não choram" e a ideia consubstanciada na frase "uma nova sonoridade do fado". O que as une? A deseducação. No primeiro caso a deseducação dos sentimentos - um homem chora, pois claro - e, na segunda, uma deseducação dos sentidos: afinal se progredirmos sem pudor nem limite em sonoridades novas permanentes, um dia o fado já não é nada. Sobre sonoridades de fado já por aqui falei, pela equivalência que têm com as novas experiências gastronómicas. Motiva-me agora a deseducação dos sentimentos. 

Conheço uma pessoa que não cessa de agradecer à família que a contratou há muitos anos para um determinado serviço e que se tornou, seguramente, na família nuclear dela; conheço uma pessoa que, tendo sido muito autónoma toda a vida, se vê agora numa situação de grande dependência; a todas as pessoas diz obrigado, por mais simples que seja a tarefa; eu próprio verbalizo com frequência um sentimento que não é consensual em quem me ouve: a ideia de ter dívidas de gratidão a pessoas cuja existência foi importante - ou mesmo determinante - em períodos da minha vida. 

Como é fácil perceber, nos três exemplos revelados acima há algo que é comum: o agradecimento. Em nenhum dos casos se agradece um serviço prestado; em nenhum dos casos o agradecimento é um simples - ainda que importante - acto de cortesia. Não se agradece um café, um lugar no comboio, alguém que se debruça para nos apanhar algo que caiu no chão. O agradecimento de que falei acima é um agradecimento que vai além do desfocado da educação - é uma delicadeza do coração. Talvez eu já tenha agradecido almoços que eu próprio paguei, porque o importante não foi a qualidade das iscas, mas a profundidade da refeição.  

Por trás da ideia de que um homem não chora há um estereótipo de força, de coragem, de ausência de medo, de uma certa auto-suficiência, de fragilidades que não se têm ou, seguramente, que não se mostram. Tendo a achar que as pessoas que perfilham estas ideias têm uma visão própria do agradecimento - seja à vida, seja aos outros. Afinal, pode dar-se o caso de de que aquilo que agradecemos é aquilo que não conseguimos fazer sozinhos - e isso prova que não somos auto-suficientes, o que pode ser constrangedor. Num certo sentido, o agradecimento é um nivelador: põe-nos a todos como criaturas iguais, com necessidades e fraquezas, dependências e disponibilidades.  

JdB

* publicado originalmente a 6 de Maio de 2019

12 maio 2024

Solenidade da Ascensão

 EVANGELHO – Marcos 16,15-20

Naquele tempo,
Jesus apareceu aos Doze e disse-lhes:
«Ide por todo o mundo
e pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem acreditar e for batizado será salvo;
mas quem não acreditar será condenado.
Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem:
expulsarão os demónios em meu nome;
falarão novas línguas;
se pegarem em serpentes ou beberem veneno,
não sofrerão nenhum mal;
e quando impuserem as mãos sobre os doentes,
eles ficarão curados».
E assim o Senhor Jesus, depois de ter falado com eles,
foi elevado ao Céu e sentou-Se à direita de Deus.
Eles partiram a pregar por toda a parte
e o Senhor cooperava com eles,
confirmando a sua palavra
com os milagres que a acompanhavam.

10 maio 2024

Poemas dos dias que correm

contributo para as estatísticas 

Em cem pessoas, 

sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;

inseguras de cada passo —
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;

sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;

dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;

aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;

individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;

cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;

com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;

agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;

dignas de compaixão —
noventa e nove;

mortais —
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações. 

wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006

09 maio 2024

Moleskine

Quanto tempo me sobra?

Comecei a perceber que, de certa forma, enfrentar a minha própria mortalidade não mudara nada e mudara tudo. Antes de o meu cancro ser diagnosticado, eu sabia que um dia iria morrer, mas não sabia quando. Depois do diagnóstico, eu sabia que um dia iria morrer, mas não sabia quando. Mas agora eu sabia-o de forma incisiva. O problema não era, na verdade, científico. A existência da morte é perturbadora. No entanto, não há outra maneira de viver.

Este texto (parágrafo traduzido por mim) foi publicado por Paul Kalanithi, um neurocirurgião de 36 anos diagnosticado com cancro do pulmão no The New York Times

***

Gratidão

Há gente que me é próxima que não gosta da expressão: tenho uma dívida de gratidão para com... Apesar disso continuo a usar a expressão por vários motivos, nomeadamente o facto de haver pessoas a quem devo muito mais do que finezas de amizade. Foram pessoas que, em determinados momentos mais desafiantes da minha existência, me estenderam a mão, me puxaram activamente para cima e, nalguns casos, me apresentaram projectos, ideias, horizontes que deram um sentido à minha vida. Que, por um certo prisma, me salvaram 

Gosto da ideia de gratidão; gosto da ideia de ser grato. A gratidão não assenta numa contabilidade, mas num desejo de alegria interior. Agradece-se a alguém um presente, uma mão estendida, um jantar, uma palavra. Agradece-se à vida o que ela nos deu. Mesmo que tenhamos sido nós a construir o nosso caminho, todos sabemos que grande parte do que somos é fruto de um acaso. Tudo se destrói numa curva da estrada, numa análise estranha, num acidente fatal. E por último, mas não menos importante, agradecem-se os perdões, as reconciliações, os recomeços, como se de uma dádiva se tratasse

***

Fotografias dos dias que correm

Fotografia de Herb Slodounik

Esta fotografia é curiosa, porque conta uma história. O interessante é que não se sabe qual é a história: pode ser a história de duas crianças curiosas; mas pode ser a história de duas crianças que, num museu cheio de obras de arte, escolhem não ver o óbvio, para se fixarem no que é, aparentemente, secundário.  

***

Aprendido por aí

Regra de ouro: trate os outros como gostaria que o tratassem a si

Regra de platina: trate os outros como eles querem ser tratados.

***

Lido por aí

No princípio da vida, quando somos crianças, precisamos dos outros para sobreviver, certo? E no fim da vida, quando ficas como eu, precisas dos outros para viver, certo? (...) Mas o segredo está aqui: entre uma coisa e a outra, também precisamos dos outros.

(Mitch Albom, in Às terças com Morrie, lido pela primeira vez em 2006)  

JdB

08 maio 2024

Vai um gin do Peter’s ?

MANO-A-MANO ENTRE DOIS NOBÉIS DA LITERATURA 

Dois dias depois de receber o Nobel da Literatura, Pablo Neruda (1904-1973) convidou um grupo de amigos e de artistas para irem até Paris festejar com ele o prémio. Um dos convidados foi Gabriel García Marquez (1927-2014), nessa altura a viver em Barcelona. Aproveitando o encontro dos dois colossos latino-americanos, na Cidade das Luzes, a cadeia de televisão chilena gravou, a 23 de Outubro de 1971, um frente-a-frente memorável entre ambos.  

Assumindo o papel de entrevistador, o colombiano faz o chileno discorrer sobre a criação poética e a escrita, em geral. A conversa fluí com enorme abertura e máxima valorização do trabalho do outro, percebendo-se a amizade que os une, além da admiração mútua. García Marquez enaltece a poesia – expressão maior de Neruda e diz que o chileno «era una especie de rey Midas, todo lo que tocaba lo convertía en poesia».  Por seu turno, o poeta declara o romance como o ‘bistek’ da literatura, assim atribuindo um lugar cimeiro ao trabalho do autor de «100 Anos de Solidão», que considera a obra-prima da literatura castelhana, depois de D.Quixote. Nos dois anos de vida que ainda lhe restaram, Neruda empenhou-se activamente na atribuição do Nobel a García Marquez, que veio a recebê-lo em 1982.

O colombiano arranca o diálogo, interpelando o poeta sobre a relação com a realidade, desabafando que o romance o distanciara do quotidiano. Tinha o termo de comparação dos tempos do jornalismo, onde começara a escrever, no ano de 1948. Mas largara os jornais há 16 anos para enveredar pela prosa literária, que o afastara da realidade.  

Neruda confirma a mesma experiência, mas parece menos preocupado com o tema: «O poeta tende a distanciar-se da realidade viva, da realidade atual».  Partilha, depois, a sua preocupação a respeito da arte poética: «invejo a condição do novelista (romancista) que, de uma maneira ou de outra, tem acesso directo ao relato para contar coisas, o que foi abandonado pela poesia». De seguida, foca-se na necessidade de retornar à poesia épica, à maneira dos clássicos, «como Homero e Dante, a uma poesia que contava uma história, e que, penso eu, foi perdida por essa nova geração de escritores, assim como a poesia didática. Eu propus-me fazer com que ensinassem coisas com minha poesia». 

Por seu turno, García Marquez disserta sobre as incursões líricas na sua escrita: «tenho, verdadeiramente, a tendência em converter o relato, a novela, o romance em poesia… Quase estou a consegui-lo. O que aspiro com meu trabalho é encontrar melhores soluções poéticas do que narrativas».  Depois, sublinha a importância de coexistirem romancista e poeta, naturalmente, de forma pacífica e construtiva. Propõe mesmo que «os poetas sejam, cada dia, mais narradores e os romancistas cada vez mais poetas».  Porém, Neruda declara-se incapaz de relatar em prosa e confessa ter momentos em que desejaria ter por perto alguém a quem contar as milhares de histórias que lhe fluem na cabeça. 

A célebre entrevista de 1971 (em gravação de fraca qualidade):  


Para concluir o mano-a-mano entre os dois Nobel amigos seguem três citações antológicas de um e de outro:

    «… E para não tombar, para afirmar-me sobre a terra, continuar a lutar, deixa no meu coração o vinho     errante e o pão implacável da tua doçura.» – Pablo Neruda, in “Canto general”. vol. 1, 1955.

«A felicidade é interior, não exterior, por isso, não depende do que temos, mas do que somos» - Neruda 

«A escrita tornou-se então fluída, e tanto que às vezes me sentia escrevendo pelo puro prazer de narrar, que é talvez o estado humano que mais se parece à levitação.» – Gabriel García Márquez, no prólogo de “Doze contos peregrinos”.

Entretanto, aproxima-se a passos largos o dia da grande festa dos Museus –  a 18 de Maio! E hoje mesmo, o Museu Medeiros e Almeida oferece uma visita guiada ‘Fora d’Horas’, às 18h00 (entrada gratuita - Avenida Open Week 2024 - Museu Medeiros e Almeida

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

07 maio 2024

Duas Últimas *

Quando saí de Portugal em 1989 achei que tinha que levar comigo alguma música portuguesa. Na altura e para além do fado, a escolha ainda não era muita. Lembro-me que comprei então dois CD's: o "Pássaros do Sul" da Mafalda Veiga e um do Jorge Palma de que não me lembro o nome, mas que tinha a música "Deixa-me Rir" como grande sucesso. Foram estes CD's que acompanharam pois a minha nova experiência de emigração e que tocaram desalmadamente de cada vez que a saudade apertou.

Em recordação desses tempos trago-lhes hoje os dois artistas numa só música. O Jorge Palma como compositor e a Mafalda Veiga como intérprete. É uma música que numa fase posterior da minha vida constituiu quase um hino de alento quando as coisas corriam menos bem.

Aqui deixo pois "A gente vai continuar" do Jorge Palma, cantado pela Mafalda Veiga.
 
JdC

* publicado originalmente a 1 de Novembro de 2011, embora não garanta que era esta a versão. Sempre actual.


06 maio 2024

Celebrações dos dias que correm

 

Campeão Nacional de Futebol 2023 - 2024

05 maio 2024

6º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 15,9-17

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos:
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei.
Permanecei no meu amor.
Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor,
assim como Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai
e permaneço no seu amor.
Disse-vos estas coisas,
para que a minha alegria esteja em vós
e a vossa alegria seja completa.
É este o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei.
Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida pelos amigos.
Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando.
Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas chamo-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai.
Não fostes vós que Me escolhestes;
fui eu que vos escolhi e destinei,
para que vades e deis fruto
e o vosso fruto permaneça.
E assim, tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome,
Ele vo-lo concederá.
O que vos mando é que vos ameis uns aos outros».

03 maio 2024

Paul Auster (1947 - 2024)

Todos queremos que nos contem histórias, e escutamo-las como fazíamos quando éramos jovens. Imaginamos a história verdadeira contida nas palavras, e para fazermos isto pomo-nos no lugar da pessoa que a história fala, fingimos que podemos compreendê-la porque nos compreendemos a nós próprios. Isto é uma ilusão. Existimos por nós mesmos, talvez, e por vezes até conseguimos ter um vislumbre de quem somos, mas no fim nunca podemos ter a certeza, e conforme as nossas vidas continuam, tornamo-nos cada vez mais opacos para nós próprios, cada vez mais conscientes da nossa própria incoerência. Ninguém consegue atravessar a fronteira para entrar dentro de outra pessoa - pela simples razão de que ninguém tem acesso a si mesmo

Paul Auster in A Trilogia de Nova Iorque

02 maio 2024

Daquilo que se dá - o braço ou a mão *

 Imaginemos uma ajudante de cozinheira da nobreza inglesa do início do séc. XX. Imaginemo-la no seu labor diário pesado e ignorado; imaginemo-la por fim no seu sonho, traduzido num modesto anúncio de jornal de província, de ser cozinheira num hotel. Ela verbaliza o sonho, di-lo alto para testar a sua própria existência, para se fazer ouvir fora do ruído das panelas, do calor das gorduras ou do cheiro dos faisões que apodrecem pendurados num trave de madeira. À sua volta ela não vê só vitualhas e horários a cumprir - ela vê o mundo que deixou de estar confinado às quatro paredes do andar de baixo de uma casa senhorial. Mais do que ver outro mundo, ela vê-se noutro mundo. Quem convive com ela na sua condição de ajudante de cozinheira abre a boca de espanto - não só pela ousadia do sonho, mas pela estupefacção de imaginar que há outro mundo para além daquele mundo. 

Imaginemos agora um casal que passeia à beira mar ao fim de uma tarde de Outono. Ele põe um chapéu que é mais adorno do que protecção, ela vai de sapatos confortáveis, agasalho ligeiro, olhos confiantes na rotina das marés. Ele vai de mãos nos bolsos, sorriso seguro, passada firme. Ela dá-lhe o braço que ele oferece - ou talvez seja ela a pedir que ele abra o braço para ela entrelaçar o seu próprio no dele. Seguem em direcção ao futuro, confiantes num certo mundo que se resume às quatro paredes metafóricas onde vivem, por onde circulam, onde estão as pessoas familiares, as casas familiares, as coisas habituais. Seguem de braço dado falando de petits riens, da vida que foi e há-de vir, dos projectos ou dos outros, das vicissitudes da existência. Sorriem - e nesse sorriso não há ausência de dor, mas segurança num modelo. Num repente, vindos em sentido contrário, um casal - ele de chapéu, ela de sapatos confortáveis - passeiam à beira mar. O que os diferencia? Este segunda casal vai de mãos dadas.  

Entre o casal que circula de mãos dadas e a ajudante de cozinheira que ambiciona ser cozinheira não há diferença, assim como não há entre o casal que passeia de braço dado e a casa senhorial da nobreza inglesa do início do séc. XX. 

O espanto de ver uma ajudante de cozinheira a querer ser cozinheira em 1920 não é o horror ao sonho, mas é a incapacidade de se imaginar um mundo para além daquelas paredes e daquelas rotinas. E não só imaginar um mundo, como imaginar-se num mundo. O espanto de ver um casal de mão dada não é um horror ao exibicionismo ou uma rejeição daquela estética moderna. O horror advém da constatação de um facto: o braço dado é uma rotina e uma parede que conferem segurança; há alguém que se apoia em alguém. Ora, a mão dada é a igualdade total. Ambos dão as mãos, não há ninguém a dar um braço ao braço que alguém oferece. As mãos dadas representam o fim da luta de géneros, mesmo que não haja luta de géneros. As mãos dadas representam a igualdade de géneros, mesmo que não haja igualdade de géneros. 

A ajudante de cozinheira sai e encontra o casal que segue de mãos dadas. Olha para trás, não com saudade, mas com ternura, e despede-se da casa, como o casal que dá as mãos se despede do casal que, de braço dado, vê um certo futuro a chegar. Quem parte ganha uma consciência da sua individualidade, da possibilidade de um outro mundo onde se vê de corpo inteiro. A contabilidade do que se ganha e do que se perde fica com cada um. Continuará a haver ajudantes de cozinha felizes, continuará a haver casais que, de braço dado e ao som das marés, nisso encontram conforto. E haverá felicidade em quem parte e se atira para longe. O importante é não deixar destroços, ou não se constituir destroços. 

JdB 

* publicado originalmente a 13 de Dezembro de 2018

30 abril 2024

Poemas dos dias que correm

É preciso

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles

29 abril 2024

Duas últimas

Penso que já contei esta história neste estabelecimento. Em 2002, no decurso do meu primeiro congresso internacional de oncologia pediátrica (Porto) durante o qual fiz a minha primeira intervenção pública a falar do caso que me tinha tocado à porta, ouvi o testemunho de uma sobrevivente, talvez com 15 ou 16 anos. Disse ela (e não cito de cor, mas o espírito era este): se tivesse de escolher, queria passar por tudo outra vez. A frase chocou-me e lembro-me de ter dito a quem estava ao meu lado: e será que os Pais quereriam passar por tudo outra vez? 

Eu imagino o que está por detrás desta frase. Quem passa por um processo destes na idade da adolescência vive tempos intensos de descoberta, de procura de sentido, de sofrimento transformado em força, de luta e conquista. O curioso é esta sobrevivente, que não me lembro de ter visto mais alguma vez, se cruzar de forma importante e próxima com uma parte da minha família mais directa. Ou seja, passados mais de 20 anos o caminho desta sobrevivente cruza-se com quem me é próximo, e a expressão "cancro infantil" adquire uma dimensão emocional diferente.

Contava este episódio a uma querida amiga, neste último sábado. Falávamos de sincronicidade, de Jung e das coincidências significativas, de serendipismo, dos acasos que nos mudam ou nos iluminam ou nos fazem sorrir. E esta amiga falou-me desta música de Serge Reggiani, que eu não conhecia. A letra, que coloquei abaixo, fala disto: se eu voltasse atrás no tempo queria ser tudo o que fui, ter passado por tudo o que passei, ter vivido a esperança e desespero que vivi. 

Lembro-me da frase da sobrevivente que agora se cruza com a minha família. Talvez ela tivesse gostado de cantar a música do Serge Reggiani, ou ter feito dela o seu hino. Isto foi há quase 22 anos; não sei se ela hoje ainda diria a mesma frase. Talvez lhe pergunte um dia.

JdB

Si c'était à recommencer

Si c'était à recommencer?Si je devais refaire ma vie?Je voudrais naître en Italie?Au mois de mai?Je voudrais être ce gamin?Qui courait pieds nus au soleil?Parmi les chèvres et les abeillesNe changez rien
Si c'était à recommencerDans un monde à feu et à sangJe voudrais être l'émigrantQue j'ai étéJ'aim'rais repasser la frontièreEt sans capuche ni manteauRedébarquer à YvetotUn soir d'hiver
Si c'était à recommencerJ'aim'rais un jour avoir vingt ansEtre con et perdre mon tempsDans les cafésJ'aimerais traîner mes illusionsDans des décors de cinémaMême s'il faut avoir l'estomacDans les talons
Si c'était à recommencerJ'aim'rais revoir tous mes amisMême celui qui m'a trahiC'est oubliéJe voudrais revivre ces heuresD'espérance et de désespoirCes nuits blanches et ces matins noirsUn vrai bonheur
Si c'était à recommencerJ'aim'rais aimer les mêmes femmesJe ne veux pas saouler mon âmeD'autres baisersJe voudrais qu'il ne manque pasUne larme, une déchirureAu revers de mes aventuresMea culpa
Si c'était à recommencerJ'aim'rais habiter le MidiY passer dix ans de ma vieÀ tes côtésJe voudrais avoir cinq enfantsPas un de plus, pas un de moinsEt les revoir tous un à unPrendre le vent
Si c'était à recommencerJe suivrais le même cheminJe manquerais les mêmes trainsSans un regretJe voudrais ne rien effacerDe mes joies, de mes solitudesQu'on n'oublie pas une virguleÀ mon passé...

28 abril 2024

5º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 15,1-8

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor.
Ele corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto
e limpa todo aquele que dá fruto,
para que dê ainda mais fruto.
Vós já estais limpos, por causa da palavra que vos anunciei.
Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós.
Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo,
se não permanecer na videira,
assim também vós, se não permanecerdes em Mim.
Eu sou a videira, vós sois os ramos.
Se alguém permanece em Mim e Eu nele,
esse dá muito fruto,
porque sem Mim nada podeis fazer.
Se alguém não permanece em Mim,
será lançado fora, como o ramo, e secará.
Esses ramos, apanham-nos, lançam-nos ao fogo e eles ardem.
Se permanecerdes em Mim
e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis o que quiserdes e ser-vos-á concedido.
A glória de meu Pai é que deis muito fruto.
Então vos tornareis meus discípulos».

26 abril 2024

Dos espelhos

Encontrei a imagem acima num post do Linkedin. Não sei o autor, nem o significado. Encontro-me, assim, em território totalmente livre: a interpretação que eu quiser dar-lhe, coincidente ou não com a original, é a verdadeira. Como verdadeira será outra interpretação, de outra pessoa, que nesta imagem verá coisas diferentes das que eu verei.

O que vemos quando nos olhamos ao espelho? Marguerite, da ópera Fausto, de Gounod, canta numa ária do terceiro acto: Ah! je ris de me voir si belle en ce miroir (Bianca Castafiore, personagem de Tintim, afirmará o mesmo). Voltada para o seu espelho, Branca de Neve fará uma pergunta retórica, porque já sabe a resposta: espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?

O que vemos quando nos olhamos ao espelho? E que perguntas dirigimos ao espelho? Fazemos as perguntas cujas respostas já sabemos ou fazemos as perguntas sabendo que só algumas respostas são certas - ou aceitáveis?

Num sentido literal, o meu espelho só reflecte olheiras mais ou menos cavadas, barba por fazer, uns olhos castanhos que revelam as noites difíceis ou as alegrias do momento. O meu espelho menos literal são os outros, mais ou menos próximos. É (também) neles - no que oiço, no que me respondem, no que me dizem, na forma como reagem às minhas interpelações - que eu vejo o que sou e quem sou. É neles que vislumbro o que gosto e não gosto de ver acerca de mim próprio. Esta certeza de que o reflexo do que sou nem sempre é agradável, é o preço que pago pela exposição das minhas fragilidades, dos meus defeitos; da minha humanidade, no fundo. Este preço não é um custo, é um investimento. O que ganho com esta interacção é superior ao que perco com esta interacção, mesmo que nem sempre goste do eu que se reflecte nos olhos dos outros. Porque é aqui que pode começar o caminho da melhoria. A imperfeição tenho-a sempre, resta saber se quero fazer alguma coisa com ela.  

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Esta frase de Clarice Lispector é de uma grande sapiência. Não diz que não devemos melhorar, mas diz - pelo menos isso diz - que precisamos de saber os nossos defeitos, mesmo que seja para identificar os que sustentam o nosso edifício. Ou sobretudo para isso...

A maçã da imagem é Marguerite, Bianca Castafiore, Branca de Neve. Apesar da parte meia comida, ou mais imperfeita, aquilo que estas personagens vêem é uma maça inteira, perfeita, luzidia, imaculada. Vêem o que querem ver, talvez o que acham que os outros querem ver, mas não vêem o que são. Mesmo que seja a parte imperfeita o que dá encanto à maçã.

JdB

24 abril 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 MAORIS E ZECA AFONSO 

Uma instalação aerodinâmica da autoria de um colectivo de artistas maoris arrebatou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza deste ano. O grupo nasceu em 2012, especializando-se em enobrecer materiais pobres e vulgares transpondo-os para o universo artístico. O objectivo (dizem) é elevar o espaço visual de quantos trabalham em fábricas, indústrias pesadas, oficinas, convertendo as matérias mais prosaicas em obras de arte. O resultado do entrançado de fios de lã, na forma aconchegante e protectora de uma casa impressiona pela beleza tranquila, sustentada por um jogo de luz e sombra fabuloso. O título «Takapau» remete para a indústria de moagem neo-zelandesa situada nas planícies homónimas.

Mataaho Collective, constituído pelas 4 neo-zelandesas de ascendência maori, que gostam de trabalhar a:
 ‘8 mãos, inspiradas por 4 cabeças’ (da esq. para a direita): Terri Te Tau, Bridget Reweti, Sarah Hudson e Erena Arapere-Baker.



Na véspera da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, muitas histórias pessoais se cruzam nesta data marcante, lembrado por quantos o viveram com idade mínima para guardar memórias de um dia sem ir à escola, com a televisão suspensa até meio da tarde, uma vozearia confusa nas diferentes frequências de rádio, os telefonemas dos pais a trocar impressões em surdina para perceber como tudo ia evoluindo, amigos (com idades entre os 10 e os 13) que um pai historiador fez questão de levar ao Largo do Carmo para lhes mostrar um momento de viragem da história nacional, etc.  

Sophia de Mello Breyner e o seu poema de 27 de Abril de 1974: «REVOLUÇÃO: Como casa limpa / Como chão varrido / Como porta aberta / Como puro início / Como tempo novo / Sem mancha nem vício / Como a voz do mar / Interior de um povo / Como página em branco / Onde o poema emerge / Como arquitectura / Do homem que ergue / Sua habitação»  


Depois, sucederam-se as celebrações dos que confiavam na liberdade, enquanto as alas comunista, trotskista e de esquerda radical variada cerrava fileiras para arrastar o rumo dos acontecimentos para outra direção, sonhando com uma ditadura pró-soviética. Segundo a private joke sussurrada entre comunistas (e contado por uma ex-comunista) sobre os efeitos intencionalmente devastadores do bolchevismo para tomar o poder de assalto, a primeira e maior vítima é sempre a verdade. Assim, tudo deve ser dito ao contrário para manobrar e baralhar as populações, além do ataque cerrado a todas as estruturas do regime a depor. Quanto mais caos melhor, como se infere da tal graça soprada entre camaradas: «os comunistas lutam tanto, mas tanto, pela paz no mundo, que não deixam pedra sobre pedra»!  

Quantas noitadas de vaticínios sobre o futuro ouvimos aos adultos mais próximos. Quanta tensão, quanto combate corajoso nos bastidores, até se chegar a um patamar mais sólido de liberdade real. Muito ficámos a dever a um punhado de heróis, que arriscou a vida para implantar a democracia, a liberdade em Portugal. As entrevistas de Maria João Avillez documentam com limpidez esses claros-escuros pós-revolucionários (no livro de 1994 agora reeditado «Do Fundo da Revolução» e no podcast do Observador).  

Por junto – ao jeito dos amigos adolescentes conduzidos ao local mais famoso da Revolução, imortalizado em pintura por Maria Helena Vieira da Silva (gin de 28.ABR.2021) – sinto-me privilegiada por também ter testemunhado em vida (embora com pouca idade), o dia inaugural de um novo tempo. Confirmei, anos depois, quanto aquela quinta-feira primaveril marcara a História do país. Mais crescida, senti-me agradecida aos verdadeiros democratas, que abriram caminho a custo, durante o PREC, aceitando que o processo seria demorado, difícil, com altos e baixos e até algumas regressões. Mesmo no mais recente índice de democraticidade publicado pelo The Economist, Portugal ocupa um lugar próximo de países com democracias débeis. Percebe-se que ainda há um caminho a percorrer para o Estado assegurar as funções de soberania, aceitar ser escrutinado no exercício do poder, garantir a qualidade da Justiça para combater e desincentivar a corrupção, relançar a economia sem comprometer a sustentabilidade das finanças públicas, inverter a tendência descendente do ensino, etc. Desafios não faltam. Haja vontade de continuar o caminho.  

Aqueles anos 70 do século XX, vibrantes e plenos de mudança em Portugal e em Espanha, sentiram-se na música. Dos talentosos aos gozões, a nova toada musical alterou-se. Nas vésperas da revolução dos cravos, as criações musicais pré-anunciavam um ciclo diferente, impregnando as sonoridades da moda de uma poesia cheia de metáforas interpelativas, também úteis para se esquivarem à censura descarada, mas primitiva, dos detentores do lápis azul. A voz comovida e pura de Zeca Afonso ajudou a dar cor àqueles anos turbulentos, antes e depois do 25 de Abril, embora sejam especialmente bonitas as suas baladas menos políticas, mais oníricas:  

 

Um benefício directo da revolução foi o surgimento dos artistas censurados e dos discos proibidos, finalmente com direito de cidadania. No entanto, a arte voltava a politizar-se fortemente e, outra vez, em sentido único (enfim, o país moldável de 24 de Abril não mudara tanto assim, como lembrou sempre o diplomata José Cutileiro), só que virando esquerdista.  Mas muitas no repertório de Zeca Afonso continuam nostálgicas e de uma harmonia cristalina: 






Solnado na personagem do “Baladeiro” e outros comediantes souberam parodiar com o lado menos interessante (de doutrinação radical) dos ventos de mudança, a partir do final dos anos 60. Até no país pacato à beira-mar plantado, a hora pertencia aos poetas, a par de uns outros que se arvoravam em ‘educadores do povo’, revolucionários militantes a levar-se muito a sério, como cumpre aos ‘iluminados’. Chegara o ‘canto de intervenção’, que se ouvia por todo o lado, até em serões de algumas casas da alta burguesia lisboeta. Tudo fluía à portuguesa, semi clandestinamente, semi consentido pelo regime, que evitava enfrentar as elites. Já bastava as dores de cabeça com os estudantes, que punham as universidades e ferro e fogo, alimentando as manchetes da imprensa estrangeira ocidental, muito críticas do salazarismo e do marcelismo.  


Voltando à música de Abril: Zita Seabra conta um episódio divertido passado num comício, que lhe coube animar, em pleno PREC. Estava no auge da sua carreira no PCP e o sucesso a galvanizar as massas, naquela tarde, fê-la continuar ao microfone e alinhar com a multidão, quando começou a entoar a Grândola Vila Morena. Carlos do Carmo, mesmo à boca de cena, correu para o palco e arrancou-lhe o altifalante, segredando-lhe: isso não pode ser! Referia-se à inépcia musical da camarada Zita, inaceitável para os ouvidos melómanos do fadista. Revolução sim, mas desafinação não!  

Se 10 anos já era “muito tempo” para Paulo de Carvalho, fará meio século volvido sobre o 25 de Abril. Não me esqueço do que ouvi ao grande professor de História Jorge Borges de Macedo: a qualidade de um país depende, em grande parte, da capacidade de escolher e renovar as elites. Num país que se tem revelado incapaz de reter os mais novos, o futuro fica perigosamente tremido. Urge criar condições para a actual vaga migratória diminuir, gradualmente. Assistimos a uma sangria suicida de talentos num silêncio de aço, nada condizente com a liberdade que era suposto ter sido conquistada há 50 anos. Dos 3 D’s desejados pelos pais da democracia, como Sá Carneiro, Soares e outros, apenas 2 se cumpriram (com deficiências): Descolonização e Democratização. Falta o Desenvolvimento, crucial para uma democracia ser funcional e saudável. As gerações mais novas bem o merecem, para poderem dar continuidade a um país antigo, sábio no seu estilo muito próprio, herdeiro de uma História extraordinária. Que orgulho ser portuguesa! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

23 abril 2024

De um desporto que proíbe a corrida

Ontem tomei conhecimento de um desporto de que nunca tinha ouvido falar - e sempre que acontece esta ideia do 'nunca tinha ouvido falar' cresce em mim a certeza de que a dimensão da minha ignorância enche várias bibliotecas de Alexandria.

(Surge-me um pensamento peregrino: o que sei é quase mensurável, porque sei identificar as minhas áreas - poucas - de especialidade; e o que não sei, consegue medir-se? Consegue identificar-se, é uma dimensão finita?)

Retomo o assunto: ontem, num evento na Rinchoa, falaram-me de um novo desporto: o walking football. Inventado, ao que parece por um cavalheiro inglês (cuja obesidade era notória) consiste em regras mito simples: 6 pessoas de cada lado (é um jogo misto), balizas mais pequenas que as de futebol de salão (parece que metade), sem guarda-redes. Dois pormenores fundamentais: a bola não pode ser levantada acima da cintura e, pasme-se, é proibido correr. O jogo é para maiores de 50 anos. Antes disso não há maturidade suficiente para se praticar um desporto onde a transpiração vem da lycra e da falta de arejamento, não do cansaço.  

O video que aqui partilho é fracote mas, mesmo assim, do melhor que encontrei. Penso que a falta de divulgação decorre do desejo de manter esta prática restrita a uma elite - a das pessoas que não vêem vantagem na corrida. Podia dizer que vou já a correr inscrever-me, mas tenho medo de não ser aceite caso se saiba que fui a correr...

JdB 

22 abril 2024

Poemas dos dias que correm *

Litania da Rua dos Fanqueiros

Ó porque será este chulé ibérico
Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico 

Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Salazar com teu rebanho de sacristas
Pensar que isto já foi terra de sardinha assada e de fadistas

Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Lisboa ó Lisboa enjoada e indecente
Ó cidade sifilítica, são carochas ou gente? 

Ó Rua dos Fanqueiros
Ó Portugal minha pátria de meia-tigela

- Aqui para nós, passa-se tão bem sem ela!

Cristovam Pavia

* por sugestão involuntária de mão amiga

21 abril 2024

4º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 10,11-18

Naquele tempo, disse Jesus.
«Eu sou o Bom Pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.
O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas,
logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge,
enquanto o lobo as arrebata e dispersa.
O mercenário não se preocupa com as ovelhas.
Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas
e as minhas ovelhas conhecem-Me,
do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai;
Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas.
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil
e preciso de as reunir;
elas ouvirão a minha voz
e haverá um só rebanho e um só Pastor.
Por isso o Pai Me ama:
porque dou a minha vida, para poder retomá-la.
Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente.
Tenho o poder de a dar e de a retomar:
foi este o mandamento que recebi de meu Pai».

18 abril 2024

Ainda das viagens (ou uma espécie de Duas Últimas) *

 Nos anos 30 do século passado Claude Lévi-Strauss estava na selva amazónica para estudar antropologicamente algumas tribos índias - Cadineus, Bororos, Nambiquaras e Tupi-Cavaíbas. Dessa experiência - e de muitas outras - saiu um livro chamado Tristes Trópicos que, escrito na primeira pessoa, começa de uma forma esperançada: odeio as viagens e os exploradores.     

Diz Lévi-Strauss a certa altura: 

Do mesmo modo que os homens e as paisagens, à conquista dos quais eu tinha partido, perdiam, quando eu os alcançava, o significado que deles esperava, do mesmo modo a essas imagens decepcionantes, ainda que presentes, substituíam-se outras, guardadas no meu passado e às quais não dera valor algum, quando ainda faziam parte da realidade que me rodeava. Caminhando, por regiões que poucos olhares tinham contemplado, partilhando a experiência dos povos cuja miséria era o preço - pago em primeiro lugar por eles - para que eu pudesse recuar no curso dos milénios, eu já não apercebia nem uns nem outros, mas sim visões fugitivas da província francesa que a mim próprio tinha negado ou fragmentos de música ou de poesia que eram a expressão mais convencional de uma civilização contra a qual seria bem necessário que eu me persuadisse de ter optado, com riscos de desmentir o sentido que tinha dado à minha vida. Durante semanas inteiras, nesse planalto do Mato Grosso Ocidental, tinha estado obcecado, não mais por aquilo que me rodeava e que eu não voltaria a ver, mas por uma melodia muito batida que a minha recordação ainda empobrecia mais: a do Estudo número três, Opus 10 de Chopin, na qual me parecia, por uma ironia a cujo amargor eu também era sensível, que tudo o que deixara para trás de mim nela se resumia. 

Há quem vá a Budapeste e só veja Budapeste. Há quem vá a Budapeste e, de frente para o Danúbio, consiga ver a calçada de Portimão, o cheiro da sardinha assada e do pingo em cima do pão, a força de uma mão maternal que nos confere segurança nas ondas do nosso mar. Viajar é, parece-me que li, partir para longe à procura de um regresso. Quem em Budapeste só vê Budapeste talvez nunca tenha partido, ou o pudesse fazer sem nunca sair do quarto. 

Deixo-vos com o estudo número três, opus 10 de Chopin, aquele que Lévi-Strauss ouviu no Mato Grosso. 

JdB

* publicado originalmente a 8 de Novembro de 2016


17 abril 2024

Poemas dos dias que correm

Ode à Paz 

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego,
dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida! 

Natália Correia
in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, II 

15 abril 2024

Da narrativa e do storytelling


Acima estão as capas das minhas últimas leituras: o de cima sugerido por mão amiga, o de baixo encontrado por acaso, mas de um autor de quem já li pelo menos um livro. Há uma relação entre as duas obras: a primeira, escrita na primeira pessoa do singular, relata o percurso de uma rapariga que, aos 22 anos, é diagnosticado com um cancro. A segunda, escrita por um filósofo sul-coreano radicado há muito na Alemanha, fala da crise da narração que advém, também, da ascensão do storytelling

A diferença entre narrativa e storytelling parece-me óbvia; talvez seja um óbvio intuitivo, mais do que racional. A narrativa cria comunidades que se juntam à volta de uma fogueira, exige leitores  / ouvintes atentos e interessados, transforma "o estar-no-mundo num estar-em-casa". O storytelling, por seu lado, "produz narrativas como formas de consumo e contribui para que os produtos venham associados a emoções." O tempo moderno, feito de virtualidade, de monitores, de imediatismo, de "posts, likes shares",  não convida à narrativa. O tempo moderno é feito de factos e de informações e "[a] narração e a informação são forças antagónicas. A informação intensifica a experiência contingente, enquanto a narração a reduz, transformando a contingência em necessidade."

As estantes das livrarias estão cheias de livros como o de Suleika Jaoud. Pessoas que passaram por doenças diversas, por traumas, por dificuldades várias, querem escrever livros e partilhar a sua experiência com a sociedade. De repente dou por mim a pensar: estes livros - de apresentadore(a)s de televisão, actores / actrizes, gente comum, etc., são narrativa ou são storytelling? São de pessoas que querem contar a sua história ou dar publicidade à sua história? A minha resposta é: não sei. O meu preconceito talvez seja simples: Suleika Jaoud teve um cancro e é uma jovem adulta, pelo que o tema se cruza com a minha esfera de interesses diversos. O livro dela é uma narrativa. E se for escrito por uma apresentadora de televisão, pessoa do jet-set, que teve cancro de mama? A motivação de quem escreve é relevante?

Penso muito nos Pais de crianças com cancro que não têm ninguém que oiça as suas histórias. Todos eles querem partilhar a sua narrativa - para dar sentido àquilo que lhes aconteceu mas, também, como forma de sobrevivência, para não sucumbir àquilo a que alguém chamava a tirania do silêncio. Contar a sua história do seu drama é tornar a história do seu drama suportável.

JdB  

14 abril 2024

3º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – Lucas 24,35-48

Naquele tempo,
os discípulos de Emaús
contaram o que tinha acontecido no caminho
e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão.
Enquanto diziam isto,
Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito.
Disse-lhes Jesus:
«Porque estais perturbados
e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações?
Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo;
tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos,
Como vedes que Eu tenho».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés.
E como eles, na sua alegria e admiração,
não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes:
«Tendes aí alguma coisa para comer?»
Deram-Lhe uma posta de peixe assado,
que Ele tomou e começou a comer diante deles.
Depois disse-lhes:
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco:
‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito
na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’».
Abriu-lhes então o entendimento
para compreenderem as Escrituras
e disse-lhes:
«Assim está escrito que o Messias havia de sofrer
e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
e que havia de ser pregado em seu nome
o arrependimento e o perdão dos pecados
a todas as nações, começando por Jerusalém.
Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

12 abril 2024

Pensamentos dos dias que correm

Convento de Cristo (Tomar), Fevereiro de 2024

 Afirmação da Verdade

Se queres convencer alguém da tua verdade, não a expliques ou demonstres - afirma-a. E ela será tanto mais convincente quanto mais força puseres na afirmação. A afirmação é compacta, a demonstração é cheia de buracos. Uma pedra não tem intervalos para os ratos se intervalarem nela. Se queres ser chefe e dominador e senhor, berra o teu sim ou o teu não e deixa aos fracos o talvez. E terás ocupado o baldio das almas humanas em que elas não sabem que semear. E serás histórico, se fores grande, mesmo no crime. Porque o homem é míope de sua natureza e só vê acima do tamanho do boi.

Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

10 abril 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

BOA MÚSICA BRASILEIRA E UMA LONGA PEREGRINAÇÃO 

Vale a pena recuperar, nos arquivos dos anos oitenta, a actuação histórica de músicos brasileiros de primeira água com a argentina Mercedes Sosa (1935-2009), passada no programa da TV Globo: ‘Chico & Caetano’. Nesse 14 de Março de 1987, Chico Buarque e Caetano Veloso juntarem em palco Milton Nascimento, Gal Costa e a argentina para interpretarem em quinteto a canção chilena «Volver a los 17». É contagiante a cumplicidade amiga que os une, bem sintonizados entre os momentos corais e os solos lindos na voz única de cada um: 


Outro momento sublime de poesia e música coube a Maria Bethânia, sempre no seu melhor para homenagear a devoção salerosa e sentida, que o povo baiano devota à Mãe do Céu. Começou por uma declamação vivida da ladainha de Santo Amaro: «Mãe de todos nós / Roga por tudo, que tudo é teu… / Maria de todas as vidas, Maria de todas as horas /… Cuida de tudo, que tudo é teu»(1)  e concluiu com a oração-cantada de Elis Regina sobre o encontro reconfortante da compositora com a Senhora da Aparecida, com quem desabafou e abriu um coração angustiado, ferido, mas de filha que se confia sem hesitações, nem fingimentos: 


Neste Domingo 7 de Abril, festa da Misericórdia instituída por S.João Paulo II, o Papa Francisco lançou a longa peregrinação do ícone da Misericórdia, para o fazer chegar a todos os recantos habitados do planeta: «às igrejas, às praças, aos lares do mundo». 

A viagem urbi et orbi demorará uma década, até 2033, ano do Jubileu comemorativo dos dois mil anos da Ressurreição de Cristo. Ficou a cargo da Pequena Casa da Misericórdia de Gela (Itália), a quem pertence o ícone, concebido para comemorar uma década de existência daquela instituição, criada a pedido do Papa. 

O ícone de aspecto antigo, porque concebido segundo os cânones da tradição bizantina, só data de 2023. O interior contém relíquias dos santos associados à Misericórdia, como os dois polacos S.João Paulo II e Santa Faustina Kowalska, e ainda Santa Teresinha do Menino Jesus, Santa Teresa de Calcutá e o beato Carlo Acutis. No 10º aniversário da Pequena Casa de Gela (Novembro de 2023), foi abençoada pelo próprio Papa, estreitamente ligado àquela instituição italiana: 

Bênção do ícone da Misericórdia (NOV.2023), que iniciou a missão de Peregrinatio Misericordiae, confiada pelo Papa aos voluntários
e hóspedes da Pequena Casa da Misericórdia de Gela, para que chegue a todas as geografias. 

De facto, a Casa da Misericórdia é a resposta a um sonho de Francisco, que considerava urgente criar um espaço de abrigo e de ajuda eficaz às multidões de imigrantes e desamparados, que vagueiam por Itália. Em novembro de 2013, a Pequena Casa começava a funcionar no povoado de Gela (Itália), sob a liderança do Pe.Pasqualino di Dio. Cumprindo o projecto original, acumulou multifunções enquanto centro de acolhimento, simultaneamente, ponto de distribuição de comida e de roupa, cantina, dormitório e posto médico. Por isso, nas palavras do Papa, proferidas na audiência privada com os 300 peregrinos da Casa (6.Nov.2023), o trabalho realizado por e naquele oásis de generosidade foi descrito como «um farol de luz e esperança na escuridão do sofrimento e da resignação. (…) Pode ver-se que se deixaram provocar e inquietar pelas necessidades dos irmãos e irmãs que Deus colocou no vosso caminho, especialmente os últimos, os mais necessitados». 

Assim ressoa e ganha vida a mensagem de Misericórdia confiada por Jesus à mística polaca: «A humanidade não encontrará paz, enquanto não se voltar com confiança para a Minha Misericórdia».  Tão simples, quanto exigente e demasiado actual para estes tempos turbulentos e belicosos, ensombrados por guerras e ameaças insidiosas à liberdade e à dignidade humanas. 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
___________________
(1) «LADAINHA DE SANTO AMARO 
Nossa Senhora, mãe de Jesus, 
Mãe de todos nós, 
Roga por tudo que tudo é teu, 
Por cada coisa, por cada ser, 
Pelos que cantam, pelos que choram,
Pelos os que te esquecem, pelos os que Te imploram. 
Santa Maria Nossa Senhora, 
Maria dos tamarineiros, dos riachos, manguezais 
Dos dendezeiros bonitos, 
Maria dos canavias, Maria das fontes limpas,
Maria das Cachoeiras, Maria das águas claras, 
Que brincam por sobre os seixos, 
Maria do Subaé, 
De águas tristes, pesadas, 
Maria dos barcos, canoas, 
De velas cheias de vento, 
Maria dos pescadores, 
Maria das canas doces, 
Dos alambiques, do mel, 
Maria das flores e folhas, 
Das sementes, dos espinhos, 
Maria de cada casa 
E de todos os caminhos,  
Maria de nossa infância, 
Maria de toda gente, 
Maria de todo amor, 
Maria de cada Igreja 
De azulejos, alfaias, redomas, lindos altares, 
Maria das procissões, 
Das festas, das romarias, 
Dos cânticos, da alegria, 
Maria de cada noite, 
Maria de todo dia, das praças, coretos, cinemas, 
Maria dos meus amores, 
Dos meus sobrados tristonhos, 
Dos meus mais doces sonhos, 
Maria dos seresteiros 
Dos cantadores, poetas, 
Maria dos sinos plangentes, 
Maria das torres acesas, 
Das palmeiras solitárias, 
Das pontes, muringas e rios, 
Maria de todo o sonho, 
De música e harmonia, dos pratos e dos pandeiros, 
Das festas de fevereiro, 
Maria das chegadas 
E também das despedidas, 
Maria de todas as vidas, 
Maria de todas as horas, 
Maria Nossa senhora, 
Mãe do Menino Jesus, 
Rainha de toda a luz, 
Cuida de tudo que tudo é teu.»
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