30 abril 2009

A mala Louis Vuitton

Olhos negros de veludo. Olheiras românticas, naturais, nariz perfeito, cabelo grosso apanhado na nuca, pele translúcida. Mulher fatal, mulher menina, que conhece os seus encantos e que os usa alegremente, a seu belo prazer. Mancebos e homens, todos caíam aos trambolhões quando o seu olhar se cruzava com o dela. Olhar expressivo, trocista, divertido mas, tantas vezes, longínquo, introspectivo, intenso. E que gozo era vê-la rir alto, abrindo a boca grande e bem desenhada. Confiança transbordante, inteligência rápida, cortante, modos ora elegantes ora bruscos, nervosos. Adivinhava-se-lhe um temperamento forte e indomável. Ou talvez não … talvez tanta graça ocultasse muita fragilidade e uma fuga para a frente de um passado de dor, de dias e noites solitárias, ela com os seus livros, os seus livros com ela, tentando abstrair-se duma infância e juventude sem amor ou atenção.

Quem era ela afinal? Aparecia todas as noites, qual rainha, no pub barulhento e cheio de fumo. Do fundo da sala cheia, duma juke box que mais era uma velharia, arfava uma música country que ninguém ouvia. Sofás puídos, bancos forrados a couro encarnado, cervejas douradas brilhando à luz das lanternas baixas. A atmosfera era pesada mas animada, ao gosto da gente das redondezas. Gente ruidosa, mal lavada, rude e honesta, tal era a população que vivia naquele pedaço de terra fria e brumosa. Por isso se encantavam todos com os seus modos, a sua elegância e a sua aura de mistério.

Passava os dias em casa e as noites no pub, falando com todos e com nenhum, alegrando-os com a sua presença requintada, o seu olhar sedutor e aquele riso de perder a cabeça! Nunca explicava o que fazia durante o dia e muito menos as suas origens ou passado.

Chegara certa manhã, em meados de Setembro, com uma enorme mala Louis Vuitton, já velha e coçada, um casaco de astracã e um chapéu de aba larga e arredondada. A primeira coisa que fez foi dirigir-se à mercearia local, que sabia de todos os quartos para alugar. Alugara um com vista rasgada para o porto de mar e para uma pequena escola primária. Não tinha qualquer luxo, mas era agradável na sua simplicidade e tecidos desbotados.

E assim se passaram 3 meses. Em casa durante o dia, à noite no pub. Não saía, não se encontrava com ninguém. Havia quem a tivesse visto à janela do quarto, olhando demoradamente o recreio da escola primária. Mas para além disso, nada. Sempre elegante, fina, bem maquilhada. Só tinha dois vestidos, de corte impecável, ainda que antiquado, que usava alternadamente, e que lembravam tempos mais fartos. Se calhar tinha esbanjado a fortuna em casinos. Era o que constava …

E um belo dia, já próximo do Natal, apanhou o primeiro autocarro da manhã, era ainda noite, e abandonou a povoação sem se despedir de ninguém.

A senhoria, que nunca tinha trocado mais que duas palavras com ela, nem sequer entrado no quarto durante aquele tempo, e que se limitara a preparar-lhe as refeições servidas religiosamente às 8, 13 e 19:30, assustou-se quando o vizinho do lado a informou que tinha visto a sua inquilina na paragem de autocarro antes do raiar do dia. Ainda o homem não tinha acabado de falar, já ela lhe virara as costas, correndo escada acima rumo ao quarto dos tecidos desbotados.

O quarto estava meticulosamente arrumado. Os lençóis da cama usados dobrados aos pés da cama, um pequeno monte de notas num envelope e um bilhetinho azul claro, pousado na escrivaninha, com a seguinte mensagem: Obrigada por tudo. Encontrei o que precisava neste recanto do mundo: sossego, liberdade, convívio com gente sã e despreocupada que me fez rir e voltar a ser eu. Pedia-lhe o grande favor de entregar o que aqui deixei, na mala junto à janela, a uma menina de tranças loiras, alta e esguia, bibe verde às riscas e laçarotes cor-de-rosa no cabelo, que todos os dias via da janela deste quarto. Diga-lhe que encheu de alegria os meus dias tristes. Até sempre. M.

A senhoria, intrigada, voltou-se e deparou com a enorme mala Louis Vuitton debaixo da janela. Lentamente, um pouco a medo, aproximou-se e abriu-a. De tantos nervos, a tampa caiu-lhe das mãos e a mala voltou a fechar-se com um ruído seco. Tentou novamente, agora com as duas mãos. Desta vez a mala abriu-se, revelando o seu conteúdo. Cuidadosamente dobrada e maravilhosamente executada, estava uma colcha de cama em magnífica renda de Bilros cor de pérola.

Então era isso, disse a velhota com os seus botões, aqui fechada a fazer renda… deve ter trazido o baú cheio de novelos em vez de vestidos. Para o que lhe havia de dar ... ele há cada maluco…

PCP

29 abril 2009

15.000 - há horas felizes...

No dia em que ATM nos brindou com um belíssimo e cirúrgico tema sobre pessimismo, desânimo, conformismo e fatalismo, é-me grato constatar, como editor e dono deste estabelecimento, que atingimos os 15.000 visitantes desde que este espaço nasceu.

Aos visitantes que por cá passam, assim como aos meus colegas bloguistas que abrilhantam este canto, um agradecimento especial.

Tal como alguém vaticinava, alcançámos este número numa 4ª feira. Há horas felizes...

JdB

Largo da Boa-Hora

Primeira de Duas

Hoje, aqui sentado no meu banco, tomei uma decisão que é arriscada, inovadora e experimental, mas da qual espero colher os maiores benefícios, e que partilho convosco para, se resultar, me acompanharem.
O meu projecto é adoptar em mim tecnologias da informática que tão bons e eficientes resultados proporcionam nos computadores, conforme todos constatamos.
Assim, decidi instalar em mim, pelo adequado download, um antivírus que imunize o meu hardware (alma, cérebro, coração) e o meu software (aplicações emocionais e racionais) contra ataques dos vírus mais ameaçadores para a sua estabilidade e performance, quer impedindo a sua entrada no meu sistema, quer neutralizando eventuais infecções já provocadas.
Como é sabido, a aplicação destas tecnologias ao ser humano ainda não foi tentada, quanto mais testada, mas eu arrisco a ser cobaia.
Ora, a primeira tarefa é delimitar, na panóplia dos vírus existentes, quais os elegidos para lhes impedir o acesso e expurgá-los do sistema se por acaso já passaram.
Como é sabido, não existe, ainda, no mercado, o produto de que falo, pelo que tenho eu de construir a aplicação a instalar, a qual será assim artesanal, protótipo, e, porque não sou especialista, muito limitada no seu alcance.
Acresce que não saberia cobrir todo o espectro dos vírus danosos, nem arriscaria ir tão longe na introdução experimental de tal novidade no meu sistema, porque certa cautela e prudência são mais do que recomendáveis, desconhecendo-se, como desconheço, os efeitos colaterais e demais sequelas possíveis destes caminhos nunca dantes navegados.
Tudo meditado e sopesado, e privilegiando as urgências e importância nociva, elegi como vírus alvo, a interditar ou expurgar, o desânimo, o pessimismo, o conformismo e o fatalismo.
Aqui começam as dificuldades deste artífice informático. É que tenho, primeiro que tudo, de caracterizar cada um dos elencados vírus para incorporar no programa o respectivo antídoto. Vamos, pois, lá tentar.
Desânimo, patologia da alma, que provoca no sujeito desalento, abatimento, esmorecimento, gerando uma incapacidade de acção e reacção para enfrentar a vida e as suas dificuldades. Em casos extremos reduz o ser humano, por excesso de inércia e inactividade reactiva, à condição de autómato, apenas capaz de agir e reagir a estímulos básicos e necessidades vulgares, decorrentes da mera sobrevivência. Importam consigo, sempre, o apagamento da alegria, da vontade de fazer, da confiança em conseguir alcançar, ou pelo menos de cair a lutar, a tentar.
Arrastam-se em quotidianos de tédio, em que está indistinta a distinção de si mesmos, engrossando caudais de seres que, por causa nenhuma, seguem os mesmos caminhos, na mesma ordem das coisas banais e vulgares, como que agrilhoados a um não destino qualquer, pois todos são indiferentes.
Pessimismo, patologia da alma, que provoca no sujeito a convicção profunda, a certeza absoluta de que no itinerário da vida o mal prevalece sobre o bem, o mau sobre o bom, o desamor sobre o amor, a dor sobre a felicidade, o infortúnio sobre a boa ventura, o insucesso sobre o êxito, a ruína sobre a edificação, a frustração sobre a obra, o pesadelo sobre o sonho. Em casos extremos reduz o ser humano, por premonições e visões dantescas, à condição de apavorado, tolhido e transido de medos e maus augúrios, mortificando-se por antecipação de sofrimentos certos, que lhes cobrem a alma com mantos pesados e negros de luto, e lhes encovam os olhos num negrume de breu. Arrastam-se em quotidianos que são cortejos fúnebres de um constante enterramento da vida, lamuriento e lúgubre.
Conformismo, patologia da alma, que provoca no sujeito a aceitação incondicional e reverente do actual estado das coisas, do se ser o que se é, do se sentir o que se sente, do se desejar o que se deseja, do se estar onde se está, do viver o que se vive e como se vive, numa renúncia e abdicação conscientes e voluntárias à alteração, inovação e até revolução, se necessário. Em casos extremos reduz o ser humano à condição de amorfo, de discípulo obediente acrítico, de subserviente da ordem e estado das coisas tal como configurados, formatados, no tempo em que vão passando. A vontade própria, privada que está do alimento do sonho, da imaginação e fantasia, do projecto, da ambição e desejo, esbate-se e dilui-se até se liquefazer em curso para uma qualquer vala comum.
Arrastam-se em quotidianos que são cortejos de cegos que recusam ver o sol e o horizonte, apenas lhe importando a corda guia que, estendida pela hierarquia e poder, lhes vai atando os caminhos.
Fatalismo, patologia da alma, que provoca no sujeito o convencimento da sua impotência para influenciar o curso dos acontecimentos, de modo que o destino de cada um, por mais que se faça, está fixado “a priori”, e seguirá inexoravelmente essa determinação, desacreditando-se, assim, a autodeterminação como expoente da condição humana, cujo exercício, na verdade dita, ou pelo menos influencia, decisivamente o futuro de cada um. Em casos extremos, reduz o ser humano à condição de testemunhas de si próprios, com abdicação de criadores de si mesmos, numa deprimente troca do lugar no palco pela cadeira de plateia, de intérpretes da sua vida passam a espectadores de uma vida que, por pormenor despiciendo, até é a sua. Desacreditando na sua vontade, esclarecimento, coragem, inteligência, capacidades, talentos, vontade, sonhos e desejos, desprendem-se de si próprios, largando o seu destino ao sabor das correntes, marés e ventos, como coisa que lhes não pertence guardar, definir e seguir como coisa própria. Quando se entrega o destino à discricionariedade do que está escrito nos astros, vai também, nessa entrega e desprendimento, a alma, que existe precisamente para animar a escolher e cumprir o que se decidiu livremente ser. A alma é o sopro, o vento, que enfuna as velas da nossa barca no rumo que o homem do leme lhe deu.
Arrastam-se em quotidianos que são cortejos de bruxos e adivinhos, astrólogos e magos, curandeiros e adivinhadores, curiosos e dedicados a descobrirem e lerem o que sabem já estar escrito no futuro, desprezando nessa ânsia o presente que vai passando e que não vivem na ganância da antecipação.
Escolhidos os mais ameaçadores vírus, e descritos sumariamente (desânimo, pessimismo, conformismo e fatalismo), cabe agora a este aprendiz de feiticeiro informático desenhar o antivírus, coisa que farei noutra jornada de trabalho, que o Sol vai alto e o tempo de estada neste Largo por hoje terminou.

ATM

28 abril 2009

Quase História

Nunca passou desse quase
o quase de te beijar.
E, sem passar dessa fase
(da fase do desejar),
sem te dizer uma frase,
sem sequer me aproximar,
sabe tão bem esse quase
que assusta só de pensar
que o quase só chega a quase
se for a sério o tentar.

JCN

27 abril 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de S. Gabriel, padroeiro dos correios.

Meu querido Igor, amor do meu coração,

Levantei-me descrente da previsão meteorológica. Do apartamento onde vivo ouvem-se, ao longe, rumores de ondas a bater nas rochas, respira-se um ar de maresia que encanta, tão diferente do que temos em Moscovo.

Tinha algum tempo antes da aula seguinte neste instituto onde ensino os poetas russos - a sua profundidade, o seu patriotismo e devoção à Mãe Rússia. Assim, fui dar uma volta rápida até à praia, sorver o ar salgado, senti-lo na pele e nos cabelos, deixar-me envolver por uma qualquer inspiração que me leve a escrever esta carta, e que ela te revela a felicidade em que vivo, apesar da tua ausência.

O mar estava batido, fruto do mau tempo que tem assolado esta área do país. A praia, completamente deserta, era varrida por ondas que iam e vinham com uma cadência própria, indiferentes à minha vontade. Soprava um vento forte, mas, mesmo assim, virei a cara para o enfrentar. Fechei os olhos e, por momentos, estavas ali comigo: as tuas mãos delicadas de pianista, os teus cabelos desgrenhados tão característicos de qualquer artista, os teus olhos oscilando entre o vivo de quem apanha tudo à volta e o absorto de quem se refugia num mundo próprio. Sentei-me numa rocha e observei a tonalidade do mar, entre o azul claro e o azul-escuro, com manchas esverdeadas salpicadas de espuma branca. Senti-te ao meu lado.

Não sou escritora, não te saberia descrever poeticamente o ambiente que me rodeava. Há uma sensação difícil de partilhar na visão de um temporal. Haverá quem se atemorize, quem seja vencido por tristezas, quem se refugie na segurança e conforto de um lar. Eu quis vivê-lo, porque é no vento forte, na ameaça de chuva, no presságio de trovoadas que me elevo e vivo, sigo em frente, me confronto com as dificuldades, encontro criatividade e força para ultrapassar obstáculos.

Não deixei de sorrir. Tudo parece conjugar-se para levar a bom porto o que me trouxe aqui: um emprego regular a ensinar o que a Rússia produz de melhor em termos de literatura, um dinheiro que vou juntando para compormos a nossa vida. Na visão quase em permanência do mar - algo que se vai tornando perigosamente viciante - suspiro pelo tempo em que nos poderemos abraçar, ler juntos ao som dos nossos clássicos. Quero olhar para ti e sentir que acreditas quando te digo que és o homem da minha vida, e que a passagem por este país não é mais do que o intervalo para um segundo acto - tu e eu - que se adivinha glorioso.

Guardo todos os meus abraços para ti, amor da minha vida. Tua, Olga.

Olga, a russa licenciada em Literatura cuja avó foi protegida da Czarina e cita os poetas quando recebe clientes, não é mentirosa. Traduziu-me a carta que escreveu ao seu namorado e, no seu rosto, não havia vestígios de desonestidade, laivos de um espírito enganoso. Estou certo de que quando ela fechou os olhos e a escreveu, vertendo lágrimas saudosas sobre um papel de média qualidade, viu o mar, sentiu o ar salgado, tentou vislumbrar a rotina certa das ondas que se desfazem num areal vazio. Há cartas que se escrevem às escuras, sem ver as letras que se ordenam ao longo de linhas direitas, sem atentar na precisão da pontuação, sem qualquer preocupação sobre as palavras escolhidas, porque as mais verdadeiras são as que nos saem da ponta de uma caneta sem que passem pelo crivo da artificialidade.

É neste mundo que Olga vive, porque quando desperta para a realidade e olha pela janela vê o tapume do prédio que vai sendo demolido junto a esta Fábrica da Ilusão. O ruído ambiente não é o das gaivotas que planam sobre o mar, mas o dos martelos pneumáticos que destroem tijolo e cimento. O cheiro não é o da maresia, mas o dos corpos humanos, do pó que anda pelo ar, das águas-de-colónia baratas ou inexistentes que classificam quem lhe entra pelo quarto adentro. Quando destapa os ouvidos não é Rachmaninoff que ouve, mas a frase fatal,

- Olga, tem aqui um cliente
.

ainda que dita com um tom de voz simpático, de quem tenta conciliar humanidade e rentabilidade.

Olga, a rapariga alta e de olhos esverdeados que veio de Moscovo, não mente. É naquele mundo que ela vive, porque o outro (será o da realidade ou da fantasia?) não é mais do que um devaneio. Todos temos luz e sombra, assumidas de forma própria por quem se olha ao espelho da vida. De facto, quantos somos dentro de nós?

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

Interpretações dos dias que correm



A propósito de um concerto fantástico. Sábado à noite no Centro Cultural de Belém.

Nota: a interpretação termina aos 5:17s. Vale a pena.

Lanterna Vermelha - explicação

Não sei se terá sido a ASAE ou o SEF, mas o facto é que a Lanterna Vermelha abrirá hoje ligeiramente mais tarde, talvez pelas 11 da manhã. Informação dada a pedido de MTS. Fiquem por perto.

JdB

26 abril 2009

3º Domingo da Páscoa

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

A minha vida não será muito diferente da existência da maioria das pessoas: momentos bons, em que tudo parece correr sobre rodas fruto de um alinhamento favorável dos astros, da sorte, do nosso esforço; outros haverá em que me vem à memória uma frase dita por um amigo de longa data à mesa das cartas: quando a sorte é maniversa, nada vale ao desinfeliz: em cima de uma vida profissional periclitante surge um pneu furado numa estrada secundária às escuras, depois de detectada uma dor de dentes descontrolada a horas impróprias de dentista.

Algumas pessoas com quem vou conversando solidarizam-se com os meus momentos menos bons, assim como se regozijam com os que me alegram. Para os primeiros têm palavras de estímulo, de conforto, de ânimo. Não raras vezes surgem frases retiradas da alma, da sabedoria popular, dos livros de auto-ajuda: vais ver que Deus te ajudará, ou, ainda, um dia descobrirás o sentido para isto que acontece; já devo ter ouvido que não há acasos, tudo tem uma razão.

Confesso com humildade e convicção em partes iguais: tenho a certeza de que Deus não tem nada a ver com o interruptor que é a minha (nossa) vida, no sentido de não ser Ele quem o activa. Se assim fosse, qual a justiça de ver gente de um lado a quem tudo parece correr bem e, do outro, gente a quem a vida parece um permanente carreiro de silvas? De facto, o que nos acontece faz parte das leis terrenas, do acaso, da nossa atitude, também, perante alguns acontecimentos que ensombram ou iluminam os nossos passos.

Quanto ao sentido que damos aos acontecimentos, tudo fia mais fino… Há muito que me habituei a não perguntar porquê?, mas para quê?. Há uma sensação de déja vu, tantas as repetições do raciocínio. Confesso, no entanto, que nem sempre consegui obter respostas. Nalguns casos, mesmo, a minha mente tem dificuldade em formular a pergunta. Quedo-me pelos sentimentos mais negativos e que não acrescentam qualquer valor à resolução dos vários problemas com que me defronto. Quando me indicam criaturas de Deus que fizeram isto ou aquilo, que reagiram com sucesso desta ou daquela maneira, respondo silenciosamente com o encanto na diversidade da vida: nem todos resolvem todos os problemas da mesma forma, e alguns só conseguem mesmo resolver parte.

E, de facto, pergunto: será que tem de haver um sentido para aquilo que nos acontece, ou, independentemente de sabermos as causas de determinadas ocorrências, a nós não nos resta mais do que apanharmos os despojos em que nos tornámos e talharmos um fato novo à medida do que sobra ou se reconstruiu? Haverá, na realidade, um motivo para tudo o que nos sucede, ou desse mesmo tudo apenas podemos e devemos tirar um ensinamento? Será que determinados eventos na nossa caminhada fazem parte de um esquema global e misterioso, cujo sentido nem sempre temos tino para descortinar? Essa coisa de um dia mais tarde perceberás porque te aconteceu isto baralha-me o raciocínio, confunde-me, leva-me ao determinismo e ao livre arbítrio. Não te metas nisto - seria conselho amigo de um professor de Ciências Naturais às dúvidas legítimas de alunos curiosos...

Muito se fala, a propósito do que referi acima, de felicidade, do que isso é, do que queremos e de como lá chegamos. Textos há que nos surpreendem, não pelo raciocínio brilhante, mas pela oportunidade do seu surgimento. Será uma prova da tal ordenação de factos e acontecimentos à escala planetária e oculta? Texto do Pe. Vasco P Magalhães, retirado daqui:

Uma mentira, por mais que se proclame e repita, não passa a ser verdade. Uma das mais frequentes e destruidoras é esta: Tenho direito a ser feliz! E esta mentira instala-se na cabeça de imensa gente a ponto de justificar tanto abandono e sofrimento, tanto acto egoísta. Tudo por um prazer, quase sempre efémero, tornado direito. Com isto avança um mundo doente e em ruptura. Ser feliz não é direito, mas dever! Tenho o dever de procurar a felicidade e só me aproximarei dela fazendo felizes os outros! Mas, atenção, felicidade não é ausência de sofrimento.

JdB

25 abril 2009

Meu caro 25 de Abril

Naquele último ano em Angola eu tinha feito uma exemplar 1ª classe. Lia todos os reclames da cidade com destreza, contava dinheiro sem dúvidas e inaugurava-me nos caminhos da Liberdade. Vagueava pelas ruas, juntava-me a uns quantos como eu, e a praia Morena era toda nossa. Eu já estava lançada e a minha família habituada, quando vossemecê apareceu todo badalado. Foi vir e ver: só desgraça, só confusão. A bem dizer, tramaste-me a vida. E não foi pouco. Estava tudo muitíssimo bem encaminhado lá em Benguela. Tudo sobre rodas 25! A minha Liberdade acabou quando a tua começou. Isso não gostei. Não gostei mesmo ó 25.

DaLheGas

24 abril 2009

(Alguns d)os Discos da Minha Vida

(continuação da semana passada)

por vezes, em particular comentando o peso da música no blog "flores de inverno", chegam-me reacções do género: "fala muito de música, de bandas, de artistas, de canções que não conheço de todo!". ou ainda coisas como: "nem sempre é fácil de seguir os seus textos sobre música!". e também tiradas como esta: "isso de música moderna não é bem para mim!".

pois bem, para todos vós, eventuais interessados em aprofundar este mundo, resolvi dar uma ajudinha. nada de transcendente, apenas e só uma lista, devidamente comentada (mas não no sentido mais técnico ou contextual dos artistas ou de cada disco, antes de uma forma que apelidarei de "mais impressiva"), contendo duas dúzias de discos fundamentais no meu próprio percurso enquanto ouvinte atento de tudo o que se faz no (cada vez mais vasto) campo da música popular moderna (desde os anos 60 até aos dias de hoje, em termos de balizas temporais).

estes são alguns dos que resistiram à passagem do tempo, esse teste decisivo. poderiam estar aqui outros tantos, bem o sei. no entanto, quando fazemos estas coisas o coração também conta. faltarão aqui, seguramente, discos fundamentais. por uma questão de critério, resolvi excluir toda a música portuguesa mais pop-rock, toda a música brasileira, toda a world-music, toda a música electrónica mais experimental, os projectos declaradamente mais underground, bem como áreas que humildemente pouco domino (à cabeça, desde logo, música clássica, canto lírico, jazz) ou até música dos dias de hoje (por lhe faltar exactamente nem que seja meia-dúzia de anos de perspectiva..).

é, por outro lado, uma lista essencialmente criada & interpretada em língua Inglesa. com poucas excepções, pode ser arrumada na gaveta da "música pop rock de origem anglo-saxónica". começa na segunda metade dos anos sessenta e termina no início do XXI. repito: muito longe de exaustiva, é apenas e só uma possível porta de entrada para novas descobertas, que vos oferece uma "garantia mínima de qualidade".

uma leitura mais atenta (e, idealmente, a sua escuta) conduzirá a uma outra conclusão: quase todas estas obras têm em comum uma propensão para o formato canção, para o que se chama o "singersongwriting". é uma música fortemente pessoal, fortemente emocional, escrita e cantada na primeira pessoa. ninguém tem culpa do que gosta (ainda que o gosto se eduque, dentro de certa razoabilidade) e, muito menos, do que é (ainda que tenhamos todos a possibilidade e a obrigação, diria étca, de nos aperfeiçoarmos continuamente). mas isto são já, como dizer?, outras músicas!

que vos seja minimamente útil, são os meus votos. podem sempre descobrir estas coisas devagarinho, via "you tube". ou então imprimirem a lista e, de vez em quando, arriscarem comprar um destes disquinhos.

boas descobertas!

lambchop, is a woman
tão bonito, mas tão bonito. tão terno, mas tão terno. tão zen, minimal, que parece música de outro mundo. melódico, cifrado, cheio de palavras inglesas que quase não se entendem.. e, no entanto, é tão fácil perceber que eles falam de jardins. de flores. de coisas assim. e sim, "is a woman". ou "is a man". nada mais importa, tantas vezes.

lloyd cole & the commotions, rattlesnakes
um quase clássico. há muito que admiro este rapaz-hoje-homem. não é um génio, mas tem "qualquer coisa". neste disquinho há música que nos leva "on the road". pele perfeita, corações despedaçados, fogos de verão, animais do deserto. metáforas perfeitas e linhas musicais perfeitas de um certo tempo - o tempo certo.

lucinda williams, essence
country-rock, com um pouco de chanson americana, algum blues.. um disco que poucos conhecem. o melhor desta senhora, que, numa voz marcada pelas agruras da vida, nos canta um amor carnal, o desejo - a par do amor divino - de uma forma que é sublime. é esta a palavra, sublime.

neil young, after the goldrush
o disco de neil young. mais um que não tem uma ruga. e que começa em 20 valores e acaba em 2o valores, sem oscilar um décimo de segundo. música com nervo, música com riffs de guitarra e com guitarras que choram. é um disco que nunca me cansa, que está sempre pronto para me receber, é um disco generoso - "don't let it bring you down, it's only castles burning", não é tio neil?

perry blake, perry blake / still life / california
um génio da modernidade, nos seus primeiros 3 discos: tão negros, tão tristes - e tão bonitos, mas tão bonitos, que, sem hesitar, o coloco ao lado dos maiores. os discos mais recentes estão abaixo, mas os primeiros 3 talvez não tenham igual na sua qualidade homogénea, dentro dos singersongritters dos últimos 15 a 20 anos. música de sombras, de sussurros, de saudades, de mágoas, de abandono, de dor. e, contudo, cada canção é uma estrela cadente.

david sylvian, secrets of the behive
clássico deste rapaz fundador dos japan. disco de 1987, cuja descrição possível poderia passar por: atmosférico, literato, lento, lírico - música celestial, se por acaso um deus grego fosse hoje poeta pop.

spain, the blue moods of spain
slow core. grupo algo obscuro, mas que nos deixou esta obra-prima (entre os 3 que gravou, nos finais dos anos 90). desta música se diz que é aquela que nos embala numa noite de verão, enquanto deitados numa cama de rede ao relento, olhamos a estrelas e dentro de nós construímos e depois destruímos universos inteiros. rima com bandas como low, mazzy star, coisitas assim.

gavin friday, each man kills the thing he loves
este senhor fez, a meu ver e do que conheço, uma única coisa "a sério" : este disco. mas este disco é o disco, mais um, da ressaca amorosa. mistura kurt weill com tom waits, mistura oscar wilde com brecht. tem um grupo de instrumentistas que é um all-stars. mas tem, antes de mais, uma alma negra. nele se canta a queda. o que era, o que já foi. é assim como um único grito.. o estertor da beleza. e do sentido.

jay jay johanson, whiskey
uma estreia em grande, nos idos de 1996. um pastiche que arrisca o ridículo e ganha a dignidade. crooner romântico envolto em electrónica quase de feira. vicia. e tem uma coisa que é "apenas" jay jay a fazer de michael nyman a fazer de mozart a fazer de.. deus? lá para meio do disco e chama-se "i am older now"..

camané, uma noite de fados / na linha da via / pelo dia dentro
a minha descoberta do fado. os concertos. os café-concertos. o repertório perfeito. a voz que canta de dentro. uma experiência, para mim, quase religiosa. eu me confesso: adoro camané. como nunca pensei.. foi assim, aos 30 anos, amor à primeira vista. é só emoção.

micah p. hinson and the gospel of progress, sem título
este disco de 2004 ou 2005, narra, em estilo autobiográfico, a queda do seu autor (mais uma vez, um amor louco..). é o disco mais negro que escutei nestes últimos anos. e isto é dizer muito, porque, como já deu para perceber, sobre as sombras sei alguma coisa ;-). arrepia tanta exposição, tanta dor, tanta coisa que sabemos ser.. exactamente assim. a escutar, mas com cinto de segurança bem colocado..

azure ray, hold on love
duas meninas que criam uma atmosfera introspectiva, extremamente doce e harmoniosa, para cantar coisas sérias, daquelas que poucos de nós sabemos exactamente como articular. uma porta aberta, mágica e linda, para o coração, para as geografias interiores. um disco soberbo, repleto de recantos preciosos. intemporalmente belo.

rufus wainwright, poses
"poses", "the tower of learning" e "cigarrettes and chocolate milk" - 3 canções que nos mandam para cima, muito para cima. descobri-o, deitado numa cama, a olhar o céu estrelado de um quarto decorado com estrelinhas reflectoras. aqui entro na minha história pessoal. uma forma de dizer que cada disco de que atrás falei tem um outro nível. aquelas coisas que são o que de mais precioso guardamos em nós. é isto a música. a banda sonora da aventura humana.

gi

Cartas


Mão simpática, e que conhece bem o meu apreço por cartas, fez-me chegar um caixote poeirento onde se amontoava a generalidade das que me foram endereçadas ao longo dos tempos.

Naquela caixa de cartão canelado em mau estado e sujo estavam anos de correspondência sem o menor interesse para a cultura nacional: não revelam pensamentos superiores, não evidenciam versos redentores, não mostram textos que mereçam publicação. Nada daquilo - confesso sem a menor vontade de diminuir o que quer que seja - tem valor a não ser para uma pessoa: eu! Talvez, por mera curiosidade revivalista, para alguns dos remetentes.

Ao passar a mão por aquela quantidade de envelopes velhos, e na tentativa de os organizar minimamente (podia chamar-lhe classificação mas afigura-se-me demasiado pomposo…) encontrei uma carta de 1971, sobre a qual escrevi quando me referi à minha amizade com o JdC. Do meu acervo (como soa bem esta palavra...) talvez seja a mais velha: um papel trivial, uma caneta de feltro trivial, palavras triviais e demolidoras para quem tem anseios do alto dos seus 13 anos.

Mas, o facto é que naquela correspondência, simples e despretensiosa, está grande parte da minha vida. Reli, entre outras, cartas de amores e desamores, de amigas que morreram cedo de mais, de gente que me brinda com o gosto da sua amizade há mais de 30 anos, de pessoas que nunca mais vi e que há três décadas já encontravam características que ainda hoje tenho, de amigas estrangeiras que não reconheceria na rua e que alegravam os verões estorilenses, de gente que, no Brasil, recomeçou a vida após a revolução.

O correio electrónico matou a carta, transformando algo que podia ser fascinante do ponto de vista da grafologia, da ordenação de ideias, escolha do papel e envelope, num exercício de eficácia duvidosa, palavras encurtadas, siglas, pontuação que, arrumada de certa forma, revela bocas que choram ou que riem. Raras são as pessoas que escrevem por email e que revelam cuidado pela forma e pelo conteúdo. Na maioria dos casos (e contra mim falo) queremos apenas que nos entendam. Sinal dos tempos...

O meu caixote não tem encanto científico nem cultural. Mas, repito, está ali a minha vida de jovem imberbe, adolescente apaixonado e infeliz, militar garboso e exilado em quartéis próximos, filho, marido, pai, amigo. No futuro, estou convencido, não se publicarão mais cartas, porque a voragem do espaço que se ocupa obrigará as pessoas a fazerem delete e, posteriormente, empty recycle bin. Um dedo apenas apaga uma vida de partilha.

Sempre gostei da epistolografia, porque acredito que é numa carta que nos revelamos. Mas isso sou eu.

JdB

22 abril 2009

Largo da Boa - Hora

Este meu Largo está luminoso, ensolarado. Predomina o azul do céu e a claridade emana das fachadas; esvoaçam os pombos e os pardais depenicam por entre as pedras alvas da calçada, as árvores agitam-se pela força da Primavera que lhes dá vida e movimento. Na calçada desenham-se esguias sombras, os meus bancos retomam o seu sentido, as janelas estão escancaradas a sorver o ar fresco e límpido. As pessoas que surgem já não correm, caminham como em passeio. Enfim, tudo flui na simplicidade e ligeireza dos tempos amenos e primaveris que adoçam e pacificam.
Olho o meu Largo que suportou estoicamente o inverno e que agora se aconchega na ternura da primavera. Sinto-me bem, sinto-me alegre, apetece-me estar a desfrutar esta calmaria, esta serenidade.
Mas não posso ficar, tenho de partir, tenho uma agenda a cumprir. São horas de ir, são sempre horas para qualquer coisa.
Sinto raiva deste viver que não consente momentos de indolência, de recolher o sol, a luz, a cor e os sons que me aquecem, abraçam e embalam, suspendendo-me para me diluir neste quadro que me rodeia, sem mais ser do que uma parte dele e com ele, como se estátua aqui pousada fosse.
Mas não. Não sou, nem nunca serei mais do que inquietação em movimento, sempre em afazeres, sempre em acção, sempre ocupado, sempre em caminho.
A causa de não poder fazer parte de quadro algum, nem que seja por umas horas, está no excesso de coisas, de assuntos, de eventos, de pessoas, de compromissos, de empreendimentos em que nos deixamos envolver e que acumulámos nas nossas vidas.
Sinto-me presa de uma teia de aranha, em que falta sempre suprir um emaranhado de fios para alcançar a liberdade de estar livre de compromissos, de obrigações, de tarefas e prazos a cumprir.
Há sempre um mais a fazer, um ainda a realizar, um último toque ou retoque que impede, adia aquele tempo de dissolução, como inerte, num quadro qualquer de que eu queira fazer parte.
Por vezes apetece-me gritar pelo direito a ser coisa, sem outro fazer do que estar e ficar sem mais na paisagem que quero desfrutar. Ser pessoa cansa…
No fundo, do que estou a tratar é do direito, melhor, necessidade emocional, de existir tempo de contemplação na nossa vida, por contraposição ao permanente tempo de acção em que nos vamos esgotando, sem oportunidade para o primeiro.
Dir-me-ão que o segredo para a viabilização, para a conciliação destes tempos e modos de vida estará na selectividade, na escolha criteriosa das “acções” que assumimos e aceitamos, para que sobeje tempo para a contemplação que reclamamos, para a diluição nos quadros que elegemos, para fazer parte deles como paisagem.
Em teoria, esse segredo, essa recomendação, não terão contradição. Mas, na prática, a sua eficácia já não será tão evidente.
Com efeito, ser pessoa tem inexoravelmente, por inerência, uma série de qualidades (títulos) extra, que se adquirem automaticamente, e que limitam por natureza a possibilidade dessa selectividade.
O primeiro título inerente a ser-se pessoa é o de cidadão. Ora, ser cidadão importa uma série de trapalhadas, trabalhos e burocracias que, além de imensas, a respectiva necessidade de realização se renova logo que está concluída a última etapa (tratado o cartão de cidadão caduca a carta de condução, obtida o cartão de utente da saúde caduca o passaporte, e assim por diante, até ao infinito).
Ser cidadão consome agenda, porque o Estado acalenta uma relação com os seus cidadãos que exige contactos amiúdes e prolongados, havendo sempre, em cada mês, ou até semana, um assunto a tratar conexo com essa relação de cidadania.
Existem, ainda, os subtítulos de contribuinte fiscal e beneficiário da segurança social, os quais, todos sabemos, são assuntos constantes no dia-a-dia da pessoa.
O segundo título que acompanha a pessoa é o de profissional. Ser-se profissional hoje, seja do que for, é um sacerdócio, e não um modo de sustento. Aparentemente, e só aparentemente, somos todos absolutamente indispensáveis, preponderantes, importantíssimos nas organizações para as quais trabalhamos, sendo cada um conditio sine qua non para o respectivo êxito. Com este grau de responsabilidade, até sentimentos de culpa temos por gozar fins-de-semana ou férias, quanto mais não viver nos dias úteis obcecados e completamente comprometidos e disponíveis, a toda a hora, modo e para o que seja.
Como terceira inerência da categoria pessoa, temos o título de consumidores. Arrepia pensar nos trabalhos, diligências, esforços e angústias que consumir bens e serviços importam. Tratar de seguros, abastecimentos das redes públicas, televisão, telemóveis, computadores, e toda a demais panóplia de comodidades e utilidades que nos rodeiam é agenda. E que agenda! Há sempre um pendente, esta é uma constatação sem excepção, e, se incluirmos o banco….então não falhará um dia em que não tenhamos de cumprir qualquer diligência ou tarefa.
E poderia seguir enunciando os demais títulos inerentes à categoria pessoa, como seja o de proprietário, social, etc, etc., mas tal talvez não se justifique, porque já entenderam o meu pensamento sobre a pretensa liberdade de sermos selectivos na escolha do tempo que dedicamos à acção, para sobrar o necessário para a contemplação.
Lamentavelmente, a conclusão é que a pessoa, porque é, em simultâneo, cidadão/contribuinte/profissional/consumidor/proprietário/social/etc, etc, tem os seus santos dias preenchidíssimos para dar conta dos recados e incumbências destes títulos todos, pouco lhe sobrando para a almejada contemplação.
Parece-me irrefutável o que venho descrevendo – acumulamos dever fazer, sem oportunidade para o nada fazer. Mas, e aqui é um paradoxo, apesar de todos sentirmos este excesso de deveres, a verdade é que, inexplicavelmente, ainda complicamos mais as nossas vidas com voluntárias e suicidas sobrecargas de “deveres” que limitam, ainda mais, a nossa liberdade.
Exemplos não faltam: alimentamos dependências como seja a da (des)informação, da televisão, do cinema, do consumismo, ou inventamos necessidades que realmente não temos e que colmatamos com dispêndio da nossa liberdade e tempo.
Sabem, pode ser que não haja outra forma, que a realidade, sendo esta, não possa ser modificada, e que tenhamos de nos conformar., Mas dói, faz pena e até revolta que ninguém veja as árvores crescerem, apenas nos espantamos pelo tanto que entretanto cresceram.
Deixo aqui um desafio que aceito para mim: vou escolher uma árvore pequena e comprometo-me a diariamente gastar alguns minutos a vê-la crescer; vou quotidianamente contemplar esse pedacinho de natureza, em homenagem a toda a Natureza que a agenda me rouba.

ATM



21 abril 2009

História para pintar - IV

O horizonte passa de tom em tom
por todos os cinzentos,
e do azul ao rosa velho.

Não passa lá do fundo o mar.

Nisto, o sol desaparece sem se dar por isso
na abundância da paisagem.

Um fresco vago
atravessou o ar
como uma asa de anjo.

Como uma asa de anjo.

JCN

20 abril 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, data irrelevante.

Eram seis da tarde e o sino da Igreja Paroquial repicava chamando os fiéis para a missa da tarde. Os meus pensamentos - o Marco, a vida, os anseios, a temperatura morna de dois corpos que se enroscam durante a noite - eram embalados por um pôr-do-sol manso e lento, e por uma brisa talvez fresca de mais. Fui arrancado aos meus devaneios pelo som electrónico do telefone. Do lado de lá da linha (ou de um satélite, sei lá eu…) uma voz que revelava algum nervosismo perguntou:

- Boa tarde. Posso marcar hora com uma das raparigas?

- Muito boa tarde. Com certeza que sim. Tem alguma preferência ou quer deixar ao meu critério?

- Talvez seja melhor aceitar o seu critério.

- Pois muito bem. Quer dizer-me o seu nome?

- Álvaro Marques… Espere, talvez seja melhor Adalberto Marinho.

- São duas pessoas? Em simultâneo?

- Talvez, talvez… Acho que sim, não sei bem.

- Vai ter de aguardar um momento para eu falar com a Dra. Clara. Quer ligar-me daqui por 15 minutos?

- Com certeza.

Dirigi-me ao gabinete da Dra. Clara que consultava alguns mapas com estatísticas diversas: grau de satisfação de clientes e raparigas, taxa de ocupação, tendências das fantasias, contratações em mercados emergentes, relatos de fetiches com burkas, etc. De facto, a situação de duas pessoas em simultâneo com uma das nossas raparigas era inédita e carecia de autorização superior. A voz parecia-me educada, mas sabe-se lá o que uma voz pode esconder.

Depois de alguma ponderação – e consultada a rapariga em questão – escolhemos a Mary Jo, uma norte-americana do Missouri. Era uma rapariga alta, forte, muito loira, vinda directamente de Jefferson City, a capital do Estado, situada nas margens do rio com o mesmo nome. Mary Jo encarou a experiência como um desafio à sua performance competitiva, à sua vontade de ganhar dinheiro, ao enriquecimento do seu palmarés, ao possível ascendente em relação às colegas da Casa. Iria preparar-se, física e psicologicamente, mas avançaria, naquela perspectiva de que não há impossíveis para um americano.

Passava pouco das oito horas da noite quando assomaram à porta. Um cavalheiro de estatura média, óculos redondos de lentes grossas, um casaco puído e fora de moda chegava-se ao balcão, ligeiramente incomodado com a minha cicatriz, facto que demonstrou recuando instintivamente um passo, como se quisesse assumir uma posição de defesa perante um animal feroz. Ou talvez, simplesmente, esta visão abrupta e súbita da realidade lhe perturbasse o prenúncio de fantasia.

- Senhor Álvaro Marques?

- Sim, sou eu.

- A Mary Jo está à vossa espera, vou já mandar chamá-la. O senhor Adalberto Marinho demora-se?

O cliente pigarreou e limpou os óculos com um lenço azul claro, onde um A e um M se entrelaçavam como ramos de hera atraídos por um magnetismo tecido a vermelho. Percebi nitidamente o seu nervosismo, revelado por uns lábios perlados de suor e uma testa húmida em permanência.

- Não se incomode, caso o seu amigo esteja atrasado. A Mary Jo aguardará. Estou certo de que vos proporcionará uma hora de satisfação. É uma rapariga profissional e atenta, vinda dos EUA. Está cá, ao abrigo de uma bolsa, para terminar um estudo sobre Gestão de stocks na época dos descobrimentos - a visão do Infante D. Henrique. Um tema fora do vulgar, mas, estou certo, precioso nesta época em que vivemos de desperdício e consumismo, crise e escassez.

O cavalheiro guardou o lenço, colocou os óculos e voltou a atentar nas minhas deficiências físicas.

- Enfim. O meu nome é Álvaro Marques.

- Sim, sim, já me tinha dito.

- Mas o meu nome é também Adalberto Marinho. Percebe a coincidência de iniciais?

- Estou a ver.

- O que se passa é que tenho um problema com uma identidade dupla. Eu sou um e sou o outro, e ambos são diferentes entre si, coabitando no mesmo corpo, tendo os mesmos hábitos básicos de higiene, as mesma necessidades comezinhas de alimentação. Mas nem sempre sei quem é quem. Ou melhor: quem sou eu em cada momento. Daí a minha dúvida sobre o cliente que viria cá. Percebe, D. Amália?

- Com certeza, senhor Adalberto Marinho. Ou será Álvaro Marques?

- Pois não sei muito bem. É uma convivência difícil dentro deste corpo anónimo e de altura mediana.

Ao fundo do corredor, Mary Jo assomou deslumbrante num roupão de seda cor-de-rosa, ligeiramente aberto, naquela medida certa que não anuncia um oferecimento banal mas revela uma nudez perturbadora. Surgiu alta, passadas largas e firmes, sorriso aberto nuns dentes de primeiríssima qualidade, fruto de tecnologia norte-americana. Notei-lhe um desânimo quase imperceptível pelo facto do trio erótico já não se realizar, como se, num repente, o Iraque desaparecesse do mapa antes da invasão vencedora, deixando o exército num estado compreensível de inactividade desalentada. Cumprimentou-o, profissional e ofereceu-lhe o braço. Havia uma diferença óbvia de alturas, com predominância clara para o Novo Mundo.

- Tenha uma boa hora, senhor... -, desejei-lhe solícita, não sabendo com qual dos personagens falava.

O cliente olhou para o lado, vislumbrando um seio generoso e uma coxa forte por baixo de uma seda fina. Tentou acompanhar a passada larga da americana que vinha do Missouri para investigar a gestão de stocks no séc. 15 e balbuciou um desabafo:

- Quem me dera ser dois…

De facto, quantos somos dentro de nós?

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

19 abril 2009

2º Domingo da Páscoa - fragmentos de pensamento

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

No dia em que saía a Lanterna Vermelha de segunda-feira passada, neste mesmo blogue, alguém me comentava, como editor e dono deste estabelecimento, o carácter demasiado bonzinho do personagem descrito por MTS. Fui ler o texto com mais atenção. Não sabendo o que presidiu à criação daquele senhor Abílio Rente, condenado a 25 anos de prisão pela morte de duas jovens, fiquei a pensar naquele final.

Numa destas associações de ideias que nem sempre têm uma explicação lógica, lembrei-me de actos redentores, do final do filme Gran Torino, do sentido para a vida, do arrependimento e do perdão. E lembrei-me de uma passagem da Bíblia que sempre me comoveu:

Ora, um dos malfeitores que tinham sido crucificados insultava-O, dizendo: «Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também!»
Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o: «Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós fez-se justiça, pois recebemos que as nossas acções mereciam; mas Ele nada praticou de condenável». E acrescentou: «Jesus, lembra-Te de mim, quando estiveres no teu Reino».
Ele respondeu-lhe: «Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso»

***


***

Nesse mesmo dia, ao jantar, contava a minha experiência de peregrino por terras de Santiago de Compostela. Senti-me incapaz de explicar, a quem me ouvia, que, sendo contra a mortificação do corpo – promessas cumpridas de joelhos, auto-flagelação, cilícios, etc. – havia uma qualquer dimensão espiritualmente benéfica no esforço físico de uma caminhada, nuns músculos maltratados e numas pernas doridas. Falha-me o raciocínio, mas foi isso que senti. Não falo de uma caminhada por montes e vales com intuitos mais físicos ou de lazer. Falo de uma peregrinação, no que o termo tem de religioso. Sou vencido pela incongruência?

***



***

Recebi e reproduzo uma frase que achei interessante:

Não há santo sem passado, não há pecador sem futuro...

(Grafitti numa parede de Melbourne referido pelo Cardeal Nguyen van Thuan no seu livro Testemunhas da Esperança)

***

Do Evangelho de hoje:

Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».

***



O casamento entre o som e a imagem não será o melhor, mas, mesmo assim, vale a pena ouvir

JdB

Palavras

Aqui, da Lisboa onde me encontro, que em sorte me calhou este romântico Chiado e uma rua que acaba em rio azul – que meu braço atirado à janela lhe sente a aragem e os olhos míopes me enervam, que não distinguem o que vai nos azulejos que meu vizinho da frente exibe desde o tempo da senhora D. Maria II – sinto-me muda de palavras, essas mesmas que respeito não conhecem, se esgatanham todo o tempo cá por dentro e chegam quando bem lhes apetece. Tenho quilómetros delas e tantas vezes duvidei que fossem minhas. Impossíveis de tanta força. Densas como nunca fui, leves como horas bem passadas. Gozam que nem perdidas, como se fossem donas de todas as avenidas. Ohh e rimam. Quem manda em ti, sou eu, segredam elas. Engraçadinhas. Quanto estragos já provocastes? Tendes noção? Claro que não. Desgraçadas. Sabem que tenho de escrever à sexta-feira, que a sensação é a de não ter eira nem beira. Aqui, deste Chiado onde me encontro, turvou-se o céu de uma noite que promete, acedem-se todos os candeeiros, e eis-vos, a bailar sem passo certo. Pára com a dança. Agora, nem que queiram, vos soletro. Tenho o meu orgulho, sou boa gente, não aturo. Se me der, sou bem capaz de aprimorar uma nova Língua, outro alfabeto. E vós, nem para eco prestarão. Pois se é esta a resposta que dão. A nega, a tampa... ingratas! Logo numa sexta-feira. Quando preciso mais de vós. Ficai. Falai sozinhas, como loucas, presas, encurraladas nas vossas bocas. Eu já me vou. Ah! Agora é tarde. Nunca! E escusais de ensaiar alarde. Tende um riquíssimo fim-de-semana.

DaLheGas

17 abril 2009

(Alguns d)os Discos da Minha Vida - Parte 1

por vezes, em particular comentando o peso da música no blog "flores de inverno", chegam-me reacções do género: "fala muito de música, de bandas, de artistas, de canções que não conheço de todo!". ou ainda coisas como: "nem sempre é fácil de seguir os seus textos sobre música!". e também tiradas como esta: "isso de música moderna não é bem para mim!".

pois bem, para todos vós, eventuais interessados em aprofundar este mundo, resolvi dar uma ajudinha. nada de transcendente, apenas e só uma lista, devidamente comentada (mas não no sentido mais técnico ou contextual dos artistas ou de cada disco, antes de uma forma que apelidarei de "mais impressiva"), contendo duas dúzias de discos fundamentais no meu próprio percurso enquanto ouvinte atento de tudo o que se faz no (cada vez mais vasto) campo da música popular moderna (desde os anos 60 até aos dias de hoje, em termos de balizas temporais).

estes são alguns dos que resistiram à passagem do tempo, esse teste decisivo. poderiam estar aqui outros tantos, bem o sei. no entanto, quando fazemos estas coisas o coração também conta. faltarão aqui, seguramente, discos fundamentais. por uma questão de critério, resolvi excluir toda a música portuguesa mais pop-rock, toda a música brasileira, toda a world-music, toda a música electrónica mais experimental, os projectos declaradamente mais underground, bem como áreas que humildemente pouco domino (à cabeça, desde logo, música clássica, canto lírico, jazz) ou até música dos dias de hoje (por lhe faltar exactamente nem que seja meia-dúzia de anos de perspectiva..).

é, por outro lado, uma lista essencialmente criada & interpretada em língua Inglesa. com poucas excepções, pode ser arrumada na gaveta da "música pop rock de origem anglo-saxónica". começa na segunda metade dos anos sessenta e termina no início do XXI. repito: muito longe de exaustiva, é apenas e só uma possível porta de entrada para novas descobertas, que vos oferece uma "garantia mínima de qualidade".

uma leitura mais atenta (e, idealmente, a sua escuta) conduzirá a uma outra conclusão: quase todas estas obras têm em comum uma propensão para o formato canção, para o que se chama o "singersongwriting". é uma música fortemente pessoal, fortemente emocional, escrita e cantada na primeira pessoa. ninguém tem culpa do que gosta (ainda que o gosto se eduque, dentro de certa razoabilidade) e, muito menos, do que é (ainda que tenhamos todos a possibilidade e a obrigação, diria étca, de nos aperfeiçoarmos continuamente). mas isto são já, como dizer?, outras músicas!

que vos seja minimamente útil, são os meus votos. podem sempre descobrir estas coisas devagarinho, via "you tube". ou então imprimirem a lista e, de vez em quando, arriscarem comprar um destes disquinhos.

boas descobertas!

leonard cohen, songs of love and hate
o disco do desespero. um disco perfeito, se porventura o negro tiver a propriedade de ser perfeito. é gelo, lâmina, lágrima. é quando já nem acreditamos na raiva, quando fica só a ironia amarga, a auto-indulgência, a desistência. não é programa de vida, mas é belo, terrivelmente belo. "dress rehearsal rag", "famous blue raincoat", "love calls you by your name", "avalanche", "diamonds in the mine".. perfeitas, absolutas, esmagadoras. desesperadas.

john cale, fragments of a rainy season
um génio. escutei este disco em 1991, ao vivo, no teatro são luiz. nem sabia quem era, na altura (um dos fundadores da mítica banda "the velvet underground" : é chuva ácida, é a fúria da melodia doce contra o piano de ferro, é o lirismo de dylan thomas (letra de 3 canções) em vôo rasante, é o despojamento máximo instrumental, é quando a alma é o verdadeiro instrumento. de john cale se disse ser "deus com minúsculas".

the smiths, qualquer compilação e qualquer disco
a excepção que confirma a guerra: o melhor disco dos the smiths é qualquer das suas muitas compilações. uma banda perfeita, com canções perfeitas, liderada por um génio da palavra e da pose (morrissey) e por um génio da composição musical pop, faceta indie (johnny marr) - uma das duplas maravilhosas que a música nos legou. a adolescência e a juventude são assim, ternura exaltante, sombras e luzes, o reino maravilhoso dos superlativos íntimos.

jeff buckley, grace
um disco abençoado. gosto muito do pai buckley, mais folk, expoente de um certo lirismo. jeff gravou aqui um disco que permaneceu. memória de um rapaz que eu amaria se fosse mulher. gosto de "hallelujah", "mojo pine", "grace", "the last goodbye" e, talvez acima de tudo, de "lilac wine" e de "lover you should've come over". um dia todos fomos assim - puros e tocados pelo dedo de deus.

the divine comedy, a short album about love
o amor está aqui todo. os 32 minutos, na versão de 7 canções (original) mais perfeitos da música popular moderna. um dia alguém dirá: isto era estar apaixonado (e vibrar, e sofrer, e desesperar, e rir, e voar) no século xx e xi. melodias de açúcar, arranjos sublimes, uma orquestra em estado de graça. um disco apaixonante e apaixonado.

tindersticks, tindersticks (e quase todos)
deles se disse, há uma década: "o melhor grupo pós-tudo". fazem-me pensar em palavras como etéreo, clássico, gravado em pedra, sangue a correr nas veias, clubs de outro tempo, atmosferas pardacentas, sensualidade lânguida. que dizer mais? escrever o título de 10 ou 20 canções que já gastei de tanto ouvir?

massive attack, protection (e 1/4 do anterior blue lines)
um disco menos amado e que sempre me cativou. do primeiro, o marcante "blue lines" , ficou uma canção chamada 'unfinished simpathy' e mais uns quantos momentos. mas deste segundo disco ficou quase tudo. um disco de um azul moderno. e azul é a minha cor favorita. a estética "trip hop" no seu apogeu (electrónica lenta, influência do hip hop na vocalização, mas sem abandonar o formato canção).

alpha, come from heaven
à primeira, obra prima. é um disco de uma beleza lancinante. fusão perfeita entre classicismo e modernidade. tem 2 canções - o amor supenso pelo espaço e pelo tempo, visto "por ela" e visto "por ele" - que rimam entre si. são duas canções que condensam os crooners do século xx e os blips do século xxi. "sometime later" e "somewhere not here" . escutá-las, em repeat contínuo, dá vertigens..

ryan adams, heartbreaker
um dos meus meninos bonitos, apesar de falhar discos atrás de discos. faz muito e muito depressa e não se sai sempre bem. mas este, salvo erro o primeiro a solo, é um disco que da faixa 1 (uma conversa sobre morrissey, entre ele e o engenheiro de som..!) à faixa 9 ( "come pick me up") é simplesmente estarrecedor. americana, blues, folk-rock, rock and roll, country-rock.. nomes há muitos. coisas assim há poucas.

the go-betweens, 16 lovers lane (e mais 10 canções de outros, mas como este..)
o disco perfeito da música pop. canções perfeitas atrás de canções perfeitas, melodias que nos conquistam à primeira e para sempre, letras cultas e directas, rendilhados de guitarra vindos dos céus. a pop acabou aqui. porque, e não sou só eu que o digo, elevaram a fasquia a um nível..

explosions in the sky, how strange, innocence
o disco renegado e, mais tarde, recuperado pela banda. gravado em poucos dias, apenas música (sem palavras) é um disco de um lirismo absolutamente arrebatador. para ouvir no carro, bem alto e subir ao céu. ou de como a música abstracta pode, por vezes, dar-nos sensações bem concretas.

bright eyes, i'm wide awake it's morning
este miúdo - conner o'berst - é um predestinado. neste disco, talvez a obra-prima de um menino que já tem vários discos antes de ter 25 aninhos!, encontramos coisas da adolescência, cantadas com aquele negrume e aquela energia que só aos 17 anos temos. é um disco que nos conquista pela ternura do que já fomos ou do que ainda somos: "this is the first day of my life / i am so glad i did'nt die before i met you". e cantarolamos todos.

bob dylan, the bootleg series, the royal albert hall concert, live in 1966
dylan é dylan. quem sou eu para falar de dylan? poeta superlativo, anjo entre nós com feitio de diabo, profeta de certa maneira. este disco é a célebre gravação em que liga a electricidade, na segunda parte, para desespero e supresa dos atónitos espectadores, que dele esperavam o rei da folk política. e ele dá-lhes um "wall of sound" demolidor, palavras de desprezo gritadas ao microfone, uma maneira de dizer que é performance pura, uma geração a dizer: "está tudo podre, arrasemos tudo, para que o "flower power" nasça enfim". é um disco histórico, com canções históricas. uma experiência.

(Continua na próxima semana)

16 abril 2009

Ausência

Devido a uma indisponibilidade absoluta e compreensível, a Mónica Bello não nos fará companhia hoje, sendo substituída - tão a contento quanto possível - pelo editor e dono deste estabelecimento. Contamos tê-la de volta para a semana para nos deleitar com o seu olhar jornalístico sobre as coisas do mundo.

i até para a semana, portanto.

JdB

Caminhos de Santiago


Em Maroñas, uma pequena localidade desinteressante no mapa da Galiza, parei no café Vitoriano, um estabelecimento sem brilho nem graça, mas onde param muitos peregrinos que percorrem aquele caminho. É o único café num raio grande, e está assinalado nos roteiros que muitos levam na mão. Ali conheci dois alemães que tinham começado a sua caminhada em Sevilha, a 934 km. Como tivessem chegado a Santiago mais cedo do que o previsto, entenderam atirar-se a Fisterra, juntando mais 90 km ao seu palmarés. Nesse mesmo dia, mas em Oliveiroa, num café com uma opacidade semelhante e desprovido dos alimentos mais básicos, cruzei-me com uma jovem alemã que, desde Pamplona, a 693 km, marchava sozinha.

Cada um dos que percorre as dezenas de caminhos que vão dar a Santiago – ou de lá partem – tem uma motivação própria: o exercício puro, a vontade de conhecer novas paragens, uma experiência diferente, uma jornada interior, uma devoção ao santo, um desafio à sua própria resistência. Dizer que sei pouco dos Caminhos de Santiago é um overstatement, porque, de facto, não sei praticamente nada. A minha percepção – e vale o que vale – é que a componente religiosa destas caminhadas é reduzida. Não se vai a Santiago como se vai a Fátima – independentemente da posição hierárquica celeste de ambos os objectos de devoção.



Não obstante as motivações diferentes de cada um, há uma espécie de fraternidade que nos une. Os peregrinos cumprimentam-se pelo caminho; os habitantes das localidades acenam e desejam boa viagem; os automobilistas param para nos corrigir uma rota porque falhámos uma indicação 500 metros atrás. Há, em tudo isto, um fio condutor que nos liga, como se fossemos todos necessários para manter uma tradição que nasceu e morrerá independentemente da nossa passagem por esta vida.



O caminho que escolhemos, por questões logísticas que se prendiam com tradições familiares de Domingo de Páscoa, fez-nos voltar as costas a Santiago e olhar para Fisterra, a quase 90 km. Não chegaríamos lá, porque seríamos obrigados a fazer dois troços directos de cerca de 30 km, uma distância relativamente dura para quem caminha, sem grande treino, com uma mochila às costas. Quedámo-nos pelos 55 km em três dias de marcha.

Entre o ponto de partida e o ponto de chegada a paisagem é variada. Atravessamos eucaliptais onde o cheiro da terra molhada se nos entranha pelos poros; cruzamos estradas e caminhamos ao lado do alcatrão; passamos por localidades pobres, tristes, sujas; palmilhamos horas com a visão ampla de campos vastos, ondulações suaves de terreno, prados verdes onde apetece descansar o corpo e a mente.

Muitas vezes caminhei sozinho, muitas vezes o fiz acompanhado. Mas, mesmo naqueles longos momentos em que comigo ia apenas a minha sombra – que me precedia ou perseguia de acordo com a hora do dia – nunca peregrinei isolado. Comigo seguiram sempre as lembranças do passado, as convicções do presente, os projectos do futuro; seguiram as dúvidas e os desaires, as alegrias e os encantos; seguiram, ainda, todos aqueles que, e , me acompanham e inspiram nas escolhas.



Ainda que durante horas me tenha entregue a um silêncio quase absoluto e à introspecção, nunca experimentei a tristeza da solidão, porque a verdadeira solidão das pessoas está, tantas vezes, no meio das multidões estranhas. O bem-estar connosco próprio é um privilégio, porque nos oferece um espaço de sossego e de conforto, não torna dissonante o diálogo interior que mantemos entre nós e nós. Nem sempre o consigo, mas ali, naqueles três dias, fui bafejado pela sorte.

Gostava de sentir que rezei por toda a gente, talvez para que toda a gente também reze por mim: por aqueles cujo nome verbalizei, mas, também, pelos outros que, por falha minha, atravessam o meu pensamento a correr. Pedi por aquilo que me alimenta genuinamente a alma, e pedi para não ser tentado pelo repentismo, pela facilidade, pelo entusiasmo das coisas efémeras, ilusões instantâneas, estímulos com prazo de validade mais do que curto. Mesmo não tendo reconhecido formalmente, estou certo de que quem me ouve sabe onde tenho ainda muito caminho a fazer.



Todos os peregrinos de Santiago se vão encontrando nos cafés, nos trilhos entre árvores, nos descampados, à chegada e à partida dos albergues. Entusiasmados, cheios de força, mas, também, desanimados, vencidos pelo cansaço e pelas dores. De todos sai um desejo sincero:

Buen camiño
.

JdB

PS: fica uma nota de agradecimento aos meus parceiros de peregrinação pela companhia, pela conversa, pelo respeito que sempre tiveram pelos meus silêncios e isolamentos.

15 abril 2009

Largo da Boa -Hora

Bom dia.

Tudo magnífico.

Regresso de umas férias em Família (restrita) na qual a regra de ouro é concentrarmo-nos recíproca e intensamente uns nos outros, sem cuidar de mais nada que não de nós os quatro.

Por esse compromisso de exclusividade e dedicação não escrevi para o nosso Blogue, tendo tido a condescendência do Editor e Dono do Estabelecimento, JdB. Fico-lhe grato pela compreensão destas prioridades sazonais.

Registo, porém, que ser ausente custa menos quando, como sucedeu, fui substituído por dois textos excepcionais, destacando o de PCP a quem convoco – na medida da minha reduzida autoridade - para escrever sempre e quando quiser em minha vez.

Mas eis-me de volta, sentado no meu banco deste Largo da Boa-Hora, palco de meditação e cogitação, para partilhar, como sempre, o que me vai na alma e no coração (que são coisas distintas).

Como é de supor, o tema elegido não poderá ser outro que não o da concentração existencial de afectos que sucede numa viagem de família.

À semelhança de todos nós, vivo uma vida, sistemática e quotidianamente, apartada do meu núcleo essencial: a minha mulher e os meus filhos.

Todos sabemos e sentimos que o desenrolar de cada dia vulgar separa mais do que une, atentas as tarefas, preocupações e prioridades diárias que se vão impondo.

A vida real atribui, a cada um, um papel quotidiano, uma missão diária que é necessário ser cumprida e que, no melhor, gera uma oportunidade ao fim do dia de balanço partilhado do que com cada um se passou.

Cumprimos o dia-a-dia, com contas do sucedido ao jantar; naturalmente e saudavelmente, aplaudimos o bom, anima-nos o menos conseguido e censuramos o mal que aconteceu. Uma reza, uma palavra, uma ternura, um beijo, a meias com as modernices da comunicação e as invasões dos media, e outro dia se passou…, recolhendo cada um ao seu “coito” de pernoita.

Na verdade, cada jornada não é vivida por todos e com todos. O que acontece, na realidade, é cada um partir na sua cruzada diária, solitária, a fazer o que tem de ser feito, reunindo-se a tribo pela noite, mais para aferir o como individualmente se passou do que para apreciar o como passámos.

Não é, nem está errado, nem sequer pode ser de outra forma. Mas este isolamento, distanciamento, que arrasta todos é um somatório de solidões, e não a conjugação de uma vivência comunal, no sentido romântico, literário e infantil do um por todos e todos por um.

Ora, nestas viagens em que não se consente diverso do que a comunhão plena de estados de alma, de vivências, de quereres, de “ à uma”, a vida é totalmente em grupo, em matilha, em uníssono.

Tudo acontece e vai sucedendo com uma preocupação natural de conveniência e adequação a todos os envolvidos. É a preocupação pelo máximo denominador comum, não serve o que serve a uns, só é querido o que serve a todos, ainda que cada um tenha de condescender um pouco nas suas apetências individuais.

Esta conjunção gera um grupo, cuja existência e identificação como tal traz felicidade, bem-estar, realização, “à uma” entramos e jornamos nos restaurantes, nas lojas, nos museus, nos transportes, nos hotéis, em todo o lado.

Somos “e pluribus unum” e é bom. Confere-nos sentido de família, de história, de presente e futuro, de continuidade, de transmissão de valores, de partilha de presentes, de legado para o futuro.

Estarmos por uns dias concentrados uns nos outros, em exclusividade, em intimidade e cumplicidade, e libertarmo-nos, também, de tudo quanto nos é estranho e que, no fundo, invectivamos, porque no subconsciente sabemos que esse estranho é aquilo que nos separa quotidianamente dos nossos.

Por mim, não tenho dúvidas: o meu lugar é no seio destes quatro que formam o meu bando. Por estas razões quedava-me com eles na gargalhada fácil que brota naturalmente, no afago que acontece, na cumplicidade permanente, na repetida companhia e encontro.

Nestes quadros de conjunção, a realidade do mundo exterior – profissional, social – parece-nos tão longínquo, pouco importante, despiciendo, que até surge como descartável. Não é, só que esta sensação de autonomia e auto-suficiência para a felicidade é realmente gratificante, muito retemperadora, dando-nos ânimo, coragem e até vontade de voltar ao real, na esperança de repetir estes momentos de família e em família, inesquecíveis e marcantes na alma e no coração.

Gostei de Nova Iorque, como gostei de tantos outros lugares que vivi com os meus.

ATM

História para pintar - III

Desenho com o dedo
o teu corpo
neste muro onde bate o sol,
ressoando no gesto um eco
que enche a tua falta.

O movimento surge exacto
caminhando,
efémero, vivo e luminoso,
até o fim da tarde te guardar
na sombra destes versos que escrevo
onde estás sempre.

JCN

13 abril 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, 2ª feira de Pascoela, mas dia, também, de uma qualquer libertação.

Abílio Rente entrou na Fábrica da Ilusão pelo fim da tarde. É um homem magro, alto, que mais parece um ramo de salgueiro que se partirá à menor ventania. Tem umas olheiras fundas e um cabelo grisalho muito ralo, penteado para o lado. Aparenta ter 60 anos, mas talvez ande no meio dos 50, embora estragados. Quando conversou um pouco comigo, e me disse apenas

- haverá alguma rapariga com 22 anos, morena e magra?

senti que o seu olhar se perturbava com a minha cicatriz e com a minha perna coxa, quase como se a realidade lhe fosse algo difícil de suportar – uma luz demasiado intensa, um frio desagradável, um calor de derreter. Ou talvez, e apenas, um desajuste imperceptível com o mundo em seu redor.

A Dra. Clara foi chamada a pronunciar-se e recomendou a Laura, uma minhota que, aos 22 anos, vai a meio de um curso de enfermagem ao qual se entrega como quem presta um serviço humanitário por vocação. É uma rapariga dócil, simpática, atenciosa, e que agradaria seguramente ao senhor Rente – para além de estar coerente com os seus pedidos. O cliente agradeceu, perguntou se era para pagar antes e baixou os olhos, como quem não quer enfrentar algumas pessoas, ou como quem tem medo de ver a vida de frente.

O par seguiu para o quarto, onde, durante a hora seguinte, se entregaria ao prazer, à sensualidade, à exploração dos corpos. Talvez mesmo ao carinho, à atenção e à companhia, afectos cuja raridade prejudica tanta gente.

Abílio Rente despiu-se revelando algum pudor e, estranhamente, algum incómodo pela nudez simples, descomplexada e levemente clara da Laura, fixando os seus olhos com mais intensidade numa borboleta tatuada onde ele suporia a cicatriz de uma qualquer apendicite.

Foi sempre com algum embaraço que, deitado na cama e com um lençol por cima, se foi confrontando com o corpo da rapariga - uns seios pequenos e levemente levantados, umas nádegas bem feitas e descaídas ao limite da estética, umas pernas magras mas elegantes, um ventre liso e sem vestígios de gorduras.

Laura foi, como sempre, carinhosa, disponível, amável.

- O que lhe apetece, senhor Rente? Ainda está em boa forma física! Gosto muito que me acaricie. Prefere a luz acesa?

O senhor Abílio Rente, um homem que estará na recta final dos 50, com olheiras fundas e cabelo grisalho ralo, fez amor com ela usando o cuidado de quem toca um cristal finíssimo, evidenciando a suavidade com que um alfaiate profissional e competente ajeita uma peca de tecido que cortará ao jeito do cliente, revelando a prudência de um explorador que se aventura, cauteloso, por terras que lhe são estranhas.

No fim murmurou-lhe um pedido

- abraça-me

naquele tom de voz que revela desejo, mas pouco à-vontade devido a desabituação, e chorou como uma criança, ou talvez como uma barragem que rebenta por não aguentar mais a pressão a montante.

Levantou-se e vestiu-se, enquanto Laura, na cama, fumava um cigarro, surpreendida com o choro súbito, vagamente apreensiva com um exame na semana seguinte. Afastou os lençóis para que Abílio Rente a mirasse de novo, sem que naquele olhar houvesse uma luxúria para além do saudável, mas apenas um motivo para dizer a frase:

- És linda, Laura! Linda.

Depois, em pé, pronto para sair, virou-se para trás e disse:

- Saí a semana passada da cadeia onde cumpri uma pena de quase 25 anos pela morte de duas raparigas, morenas, altas e com 22 anos. Foi um impulso, uma raiva, sei lá o quê. Consideraram que já não seria um perigo para a sociedade, mas tinha que ser eu, acima de tudo, a perceber a minha cura, a estar certo de que sou inofensivo. Tu foste a prova. Parto amanha para a Líbia para trabalhar na construção civil, pelo que foi a última vez que nos vimos. Obrigado por tudo.

O ex-presidiário não teve tempo – ou talvez não tenha querido ter a oportunidade - de perceber o olhar angustiado de Laura, a estudante que terá de saber perfurar uma veia com uma agulha, ou estender com mestria os instrumentos a um cirurgião.

Quando passou por mim na recepção, Abílio Rente revelou um olhar diferente para as minhas deficiências, como se a realidade fosse algo a que se começasse a habituar. É possível que eu tenha vislumbrado um sorriso, não sei. Se calhar apenas o esboço, um ensaio, uma preparação. É segunda-feira de Pascoela, e talvez se note um perfume de redenção pelo ar.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

12 abril 2009

Domingo de Páscoa

Hoje é Domingo de Páscoa, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

«No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predilecto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.»

Também aqui – como em várias outras passagens do Evangelho – Pedro desempenha um papel estranho e infeliz: é o papel de um discípulo que continua a não sintonizar com Jesus e com a sua lógica. No entanto, não podemos ser demasiado duros com Pedro: ele é, apenas, o paradigma de uma figura de discípulo que conhecemos bem: o discípulo que tem dificuldade em perceber Jesus e os seus valores, pois está habituado a funcionar de acordo com outros valores e padrões – os valores e padrões dos homens. A lógica humana ensina-nos que o amor partilhado até à morte, o serviço simples e sem pretensões, a doação e a entrega da vida, só conduzem ao fracasso e não são um caminho sólido e consistente para chegar ao êxito, ao triunfo, à glória; da cruz, do amor radical, da doação de si, não pode resultar realização, felicidade, vida plena, êxito profissional ou social.

A ressurreição de Jesus prova, precisamente, que a vida plena, a vida total, a transfiguração total da nossa realidade finita e das nossas capacidades limitadas, passa pelo amor que se dá, com radicalidade, até às últimas consequências. Garante-nos que a vida gasta a amar não é perdida nem fracassada, mas é o caminho para a vida plena e verdadeira, para a felicidade sem fim.

(
Comentários ao Evangelho retirados daqui)

Os renovados votos de uma Boa Páscoa para todos.

JdB

11 abril 2009

dá a borracha,

apaga isso tudo. quero a folha em branco. começa do zero. a vida é toda para a frente. tira isso da memória. doi-me a garganta. o nó. da angústia. isso não é nada. é. só sabe quem sente. nem digas que passa. quem quer ter nunca sossega. é ter para ser porra. engano. ser és sempre. e agora também és. vê o que sou. és a mente. um estupor. mas sente. que quer ter. não te alcanço. hás-de chegar.

DaLheGas

10 abril 2009

Uma reflexão, a propósito da memória e da justiça


estamos na semana da Páscoa. por outro lado, este este vosso escriba, como já uma vez aqui escreveu, não gosta particularmente de temas conotados com a 'actualidade'. por tudo isto, este 'post' é um pouco inesperado - talvez sim, talvez não, logo me dirão..

no domingo à noite, calhou sintonizar o televisor no programa 'câmara clara', de paula moura pinheiro, no canal 2 da RTP. o tema era pesado, nada mais, nada menos do que revisitar a guerra civil espanhola, a partir da polémica que, há uns tempos a esta parte, atravessa e divide a espanha, em torno da chamada 'lei da memória histórica'. de forma sucinta, esta lei estabelece o direito aos legítimos herdeiros / descendentes / representantes de pessoas desaparecidas no decorrer desses fatídicos anos (entre 100 a 150 mil pessoas, segundo várias fontes), cujos corpos estarão, em larga escala, depositados em valas comuns, de requerer a exumação dos corpos, a sua identificação e um enterro condigno, digamos assim. claro que uma operação desta envergadura tem custos enormes - e não é claro neste momento quem deve suportar os custos, individualmente, o que pode constituir uma discriminação económica inaceitável para as famílias com menos recursos e, dizem os críticos, um aligeirar de responsabilidades inerentes ao próprio Estado.

criticável ou não, na sua letra, esta lei tem dividido a sociedade espanhola, quanto ao seu espírito:

a) vale a pena remexer num passado, tão recente e tão trágico, quando se conseguiu uma transição pacífica para a democracia e uma espécie de "entente cordial" entre sectores ideologicamente opostos, herdeiros afectivos das facções que se guerrearam?

b) estando centrado no lado dos perdedores da guerra civil - os, algo simplisticamente, denominados 'republicanos', por contraponto aos ditos 'franquistas' -, não há aqui algo de revanchismo histórico, desajustado dos dias que correm? por outras palavras, se sabemos já que a história foi escrita, como sempre, pelos vencedores, é mesmo necessário exercer uma espécie de revisionismo histórico, mesmo que, no caso, em prol da mais absoluta verdade dos factos?

para se responder a estas e outras questões, cuja complexidade é incontornável, será preciso relembrar factos básicos.

franco e os seus generais - a ala militar mais conservadora - ganharam a guerra contra os republicanos e iniciaram um exercício sistemático de censura dos factos, utilizando a propaganda e os meios intelectuais alinhados com o lado vencedor, para espalhar as suas próprias teses. é um facto indesmentível. há por isso, um sentido básico de justiça que passa por recuperar, de forma isenta (se tal for possível, o que só por si valeria 'n' posts mais), o que se passou. ora, dar um tratamento condigno a quem se encontra em valas comuns pode ajudar, na medida em que permitirá identificar e singularizar um conjunto de realidades históricas e humanas que não se devem confundir. de forma simples, lado a lado, jazem diferentes tipos de pessoas. e elas merecem não ser confundidas umas com as outras, tão diferentes foram as razões para serem massacradas, tão distintos terão sido os seus comportamentos.

o que nos leva a outro elemento fundamental desta equação: do lado republicano, rapidamente a conjugação negativa (contra o lado franquista) se fez notar. não existiu um lado republicano, existiu uma república, de princípios democráticos, com as suas instituições, e um conjunto de diferentes facções revolucionárias (anarquistas, comunistas, comunistas trotskistas, proto-socialistas, etc) que se aliavam e combatiam entre si e contra a própria república, enquanto que, nos intervalos, combatiam todas juntas o inimigo comum. ora o que é notável é não só o desconhecimento desta 'pequena (mas decisiva) história', mas a noção, só hoje possível, de que os dois lados tinham, na sua génese, uma assimetria de disciplina cujo impacto no conflito só poderia dar no resultado que deu.

claro que isto tudo ainda antes de se introduzir o papel do apoio internacional a um e outro lado e que, naturalmente, foi decisivo. também aqui a um apoio efectivo militar ao lado franquista, correspondeu um apoio mais simbólico (quando não meramente neutral, em virtude de desconfiança quanto às reais forças dominantes do lado republicano - o sempiterno medo de uma deriva esquerdista?), bem representado pela legião de intelectuais, artistas, escritores que se voluntarizaram para ajudar, mas cuja capacidade, nesses dias, de fazer a diferença junto das opiniões públicas de então mostrou ser relativamente diminuta.

ora, na conversa do programa de televisão, entre paula moura pinheiro e dois historiadores, chamou-me a atenção o discurso extremamente bem construído, sereno mas civilizacionalmente empenhado, do senhor espanhol (professor universitário, escritor, ex-embaixador e actual membro do conselho superior, creio eu, do jornal 'el país'). para além de nos relembrar factos históricos básicos, com clareza luminosa, construi 'insights' sobre o que tudo isto, hoje em dia, representa para a espanha moderna, mas também para todos os outros países. falou de coisas tão simples como esta: os vencedores, por usarem métodos criminosos, não tornaram automaticamente dignos os vencidos; do lado dos republicanos, muitas facções usaram igualmente de métodos terroristas no seu desesperado combate; uns e outros massacraram civis, ainda que, pelos vistos, franco tenha conduzido um exercício mais sistemático e brutal.

no meio desses dias de ferro e fogo, há que recuperar a memória (e continuamos a seguir o discurso de alguém cujo nome, infelizmente, não recordamos) de que:

a) a dignidade ficou com quem praticou actos dignos; e, como disse o ilustre senhor espanhol, é um alívio perceber que não é hoje forçoso escolher, retrospectivamente, entre dois lados, igualmente bárbaros nalguns métodos utilizados. existiram, afinal, pessoas que escolheram outra via, a qual lhes custou seguramente a vida, mas que lhes atribuiu a dignidade do exemplo;

b) por exemplo, do lado republicano, os detentores do poder instituído, mesmo em guerra, mesmo assoberbados por toda a pressão que nos é impossível reconstituir nas nossas casas climatizadas deste século XXI, tentaram, até ao fim, manter os princípios democráticos em que acreditavam, lutando contra o inimigo externo e contra os inimigos internos que, a partir de dentro, proclamavam a revolução (socialista/comunista/anarquista).

é este trabalho sobre a memória, sobre a justiça, sobre a nobreza de espírito em momentos limite, esta espécie de luz sobre o desespero, que me fez absorver tudo isto e que me conduziu a esta necessidade de partilhar convosco esta reflexão.

que me desculpem os mais formalistas, os historiadores que detectem uma ou outra imprecisão, aqueles que não têm paciência para matérias mais densas ou menos agradáveis, até os eventuais defensores de um ou outro lado (que os há). este é essencialmente um testemunho subjectivo (o importante não é, pois, a ideologia de uma ou outra parte) sobre uma certa maneira de se estar na vida, verticalmente, 'no matter what'. rara e preciosa, como as especiarias mais finas, há séculos atrás.

porque pensar, no sentido mais humano e nobre do termo, é preciso. sempre.

boa Páscoa.

09 abril 2009

Horizontes dos dias que não correm


Há pouco mais de um ano, era esta a minha vista para o horizonte - a umas dezenas de quilómetros da cidade da Beira, em Moçambique, e a caminho do Búzi, pequena vila nas margens do rio com o mesmo nome. Chama-se a isto ter saudades de horizontes mais largos. Sinto a terra debaixo das solas de novo, atravesso a ponte, perco o olhar lá longe. Como se diz por aqui, e muito, ultimamente, i num instante tudo muda...

Mónica Bello

08 abril 2009

"Aprendo a rezar com os pés"

Caminham em filas ao lado das estradas nacionais, por trilhos de terra batida, atravessando pequenos povoados que antes desconheciam, cruzando horas e horas a paisagem de giestas e silêncio. Têm em português um nome que deriva de uma forma latina: Per ager, que significa “através dos campos”; ou Per eger, “para lá das fronteiras”. Definem-se, assim, por uma extraterritorialidade simbólica que os faz, momentaneamente, viver sem cidade e sem morada. Experimentam uma espécie de nomadismo: não se demoram em parte alguma, comem ao sabor da própria jornada, dormem aqui e ali. Num tempo ferozmente cioso da produção e do consumo, eles são um elogio da frugalidade e do dom. Relativizam a prisão de comodismos, necessidades, fatalismos e desculpas. E o seu coração abre-se à revelação de um sentido maior.

A verdade é que é difícil ter uma vida interior de qualidade, se nem vida se tem, no atropelo de um quotidiano que devora tudo. Na saturação das imagens que nos são impostas, vamos perdendo a capacidade de ver. No excesso de informação e de palavra, esquecemos a arte de ouvir e comunicar vida. Damos por nós, e há, à nossa volta, um deserto sem resposta que cresce. E quando nos voltamos para Deus, parece que não sabemos rezar.

Estes peregrinos que tornam a encher as estradas de Fátima (mas também de Santiago, de Chartres, do Loreto…) assinalam-nos o dever de buscar a estrada luminosa da própria vida. Já não separam a existência por gavetas estanques, mas o seu corpo e a sua alma respiram em uníssono. A oração torna-se natural como uma conversa, e as conversas enchem-se de profundidade, de atenção, de sorrisos. A parte mais importante dos quilómetros que percorrem não está em nenhum mapa: eles caminham para um centro invisível onde pode acontecer o encontro e o renascimento.

Queria dedicar este texto a um amigo que, neste mês de Maio, fez a sua primeira peregrinação. A meio do caminho enviou-me uma mensagem a dizer: «Aprendo a rezar com os pés».

***

Há cerca de um ano, o Padre José Tolentino Mendonça escrevia este texto lindíssimo, que alguém teve a amabilidade de me enviar. Socorro-me dele para partilhar com os meus queridos e pacientes leitores uma informação de somenos importância: parto hoje, através dos campos, em direcção a Santiago de Compostela. Aceitei o desafio de uma amiga.

Serão poucos dias, apenas, mas que espero me dêem alguma tranquilidade, ânimo de espírito, focagem naquilo que é verdadeiramente importante. Será um tempo de recolhimento e introspecção, de gozo de um silêncio repousante, mas desafiador. Gostaria de poder dizer que levo aqueles que precisam no meu pensamento e nas minhas orações, mas sabe Deus se me conseguirei lembrar de todos, resistindo à tentação de me pôr em primeiro lugar.

Em espírito, e num canto especial, vão comigo dois miúdos, filhos de dois casais de quem sou amigo: o SA, que engrossou, este ano, a lista das crianças da Acreditar, e o DS, de dois anos, que, no dia em que escrevo, ainda trava uma batalha árdua com uma doença traiçoeira.

Para todos os que me lêem, os votos de um Boa Páscoa. E agora sim, com alguma propriedade, Adeus, até ao meu regresso...

JdB

PS: tal como já tinha sido anunciado, o saudoso ATM estará ainda ausente esta semana. De hoje a oito dias senta-se de novo no Largo da Boa-Hora, derramando o seu olhar perscrutante sobre o mundo que o rodeia.

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