23 abril 2009

Cartas


Mão simpática, e que conhece bem o meu apreço por cartas, fez-me chegar um caixote poeirento onde se amontoava a generalidade das que me foram endereçadas ao longo dos tempos.

Naquela caixa de cartão canelado em mau estado e sujo estavam anos de correspondência sem o menor interesse para a cultura nacional: não revelam pensamentos superiores, não evidenciam versos redentores, não mostram textos que mereçam publicação. Nada daquilo - confesso sem a menor vontade de diminuir o que quer que seja - tem valor a não ser para uma pessoa: eu! Talvez, por mera curiosidade revivalista, para alguns dos remetentes.

Ao passar a mão por aquela quantidade de envelopes velhos, e na tentativa de os organizar minimamente (podia chamar-lhe classificação mas afigura-se-me demasiado pomposo…) encontrei uma carta de 1971, sobre a qual escrevi quando me referi à minha amizade com o JdC. Do meu acervo (como soa bem esta palavra...) talvez seja a mais velha: um papel trivial, uma caneta de feltro trivial, palavras triviais e demolidoras para quem tem anseios do alto dos seus 13 anos.

Mas, o facto é que naquela correspondência, simples e despretensiosa, está grande parte da minha vida. Reli, entre outras, cartas de amores e desamores, de amigas que morreram cedo de mais, de gente que me brinda com o gosto da sua amizade há mais de 30 anos, de pessoas que nunca mais vi e que há três décadas já encontravam características que ainda hoje tenho, de amigas estrangeiras que não reconheceria na rua e que alegravam os verões estorilenses, de gente que, no Brasil, recomeçou a vida após a revolução.

O correio electrónico matou a carta, transformando algo que podia ser fascinante do ponto de vista da grafologia, da ordenação de ideias, escolha do papel e envelope, num exercício de eficácia duvidosa, palavras encurtadas, siglas, pontuação que, arrumada de certa forma, revela bocas que choram ou que riem. Raras são as pessoas que escrevem por email e que revelam cuidado pela forma e pelo conteúdo. Na maioria dos casos (e contra mim falo) queremos apenas que nos entendam. Sinal dos tempos...

O meu caixote não tem encanto científico nem cultural. Mas, repito, está ali a minha vida de jovem imberbe, adolescente apaixonado e infeliz, militar garboso e exilado em quartéis próximos, filho, marido, pai, amigo. No futuro, estou convencido, não se publicarão mais cartas, porque a voragem do espaço que se ocupa obrigará as pessoas a fazerem delete e, posteriormente, empty recycle bin. Um dedo apenas apaga uma vida de partilha.

Sempre gostei da epistolografia, porque acredito que é numa carta que nos revelamos. Mas isso sou eu.

JdB

2 comentários:

  1. O seu caixote... lol, eu pelava-me para ver esse caixote

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  2. O prazer dessa leitura revivalista deve ter sido imenso. Ainda bem que teve esta sorte e soube saborear o passado. Espero que tenha amealhado muito ânimo.
    Beijinhos

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