14 setembro 2009

O polícia

Chama-se Curdo, um nome assaz bizarro para quem é natural do Alandroal, mas há quem o apelide de Surdo. De facto, como agente da autoridade, é totalmente desprovido de audição quando toca a multas. Implacável e rigoroso ao limite, não tem contemplações nem ouvidos para as desculpas habituais. Foi só um instantinho, já me ia embora, deixe lá, senhor guarda, só desta vez.

Mora num rés-do-chão direito de um prédio velho e escuro, engavetado numa rua onde o sol se esquece de ir. Nos dias de serviço entra e sai de casa impecavelmente fardado, como se o aguardasse uma parada presidencial, ou a rotina da autuação fosse incompatível com o desleixo.

O agente Curdo gosta de manter rotinas. Durante o dia zela pelo fluxo saudável do trânsito e pelo desimpedimento escrupuloso dos passeios. Mantém um registo particular de multas por dia, porque gosta de indicadores desafiadores e potencialmente contraditórios: a atenção à infracção versus o grau de cumprimento do cidadão.

Ao fim do dia chega a casa, despe-se e arruma a farda com zelo. Pendura as calças pelos vincos e ajeita o casaco num cabide para evitar deformações que tirem o decoro que se requer à autoridade. Veste umas calças de fato de treino e uma T-shirt de alças, escorropichando uma mini para a qual dispensa copo.

O agente Curdo senta-se então ao computador e digita uma série infindável de endereços e palavras-chave, troca informações com um interlocutor cibernético, consulta auxiliares de memória. Durante as duas horas seguintes entreter-se-á com jogos informáticos nos quais as forças de lei travam uma luta sem quartel contra a delinquência: raptos, assaltos, tráfico de droga, assassinatos, terrorismo urbano.

Durante duas horas, repete-se, o agente Curdo gritará, agitará as mãos, vociferará, soltará palavrões, premirá a tecla enter com uma genica inusitada.

- Estúpido, não é por aí! Ah! Grande camelo que vais ser apanhado! Força, força, pela direita, rápido! Atenção que ele está ali, ao virar da esquina. Tem cuidado. Ah! sacana que estás feito, não percebes nada disto. Nada! Se fosse eu havias de ver…

São 120 minutos de combate árduo - ainda que virtual – contra o crime. E, durante todo esse tempo, acompanhado da sua mini e da sua ausência de mangas, o agente Curdo estará indiscutivelmente do lado dos fora-da-lei, pondo todo o seu saber ao serviço dos que atemorizam os cidadãos e zombam das regras.

Pela hora de jantar chega a Susana, empregada recente de uma empresa de vigilância. O agente beija-a com ardor, admira-lhe a farda e pede-lhe:

- Importas-te de não apertar tanto as algemas? Ontem aleijaste-me…

No dia seguinte voltará à multazita, à pequena reprimenda, à surdez ao apelo do infractor:

- O senhor automobilista reparou que o rodado dianteiro esquerdo passou por cima do traço contínuo? Vou ter de o autuar…

Conheço-o bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

JdB

Nota: texto publicado sábado no Porta do Vento

1 comentário:

arit netoj disse...

Parabéns pelo retrato tão mordaz e certeiro. Você é especial a descrever este tipo de pessoas.
Só pode ser do mesmo bairro!
Beijinhos

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