(Continuação do conto começado a publicar na semana passada, de um autor cuja biografia foi referida no mesmo local. Segue no próximo sábado.)
E a vida de ambos, do Pontiac e da Condessa, foi sempre mais ou menos assim, a cheirar a canela e a flores, durante dez suaves anos, com a rotina quebrada algumas vezes apenas quando ela ia a Lamego para casa das primas na época das vindimas. Via-se então Setembro adentro aquele enorme carro, majestoso e em silêncio, por entre ruas estreitas e sinuosas, sempre com a prima Júlia igualmente pequenina como a Condessa e vestida de preto agarrada ao tabliê como se quisesse ajudar a guiar; e com a prima Prazeres, gorda e satisfeita, toda encostada, como se estivesse a andar de montanha-russa não nas mãos de Deus, mas nas do diabo. A prima Prazeres gostava de beber, outro desastre de que não se falava porque fazia cenas e graças a Deus mantinha a postura. Apenas se ria e chamava-lhes velhas baixinho, como se de um prazer profundo se tratasse. Dava cigarros aos sobrinhos mais novos e ensinava-lhes palavrões muito antigos, tão antigos que já nem ela sabia o que queriam dizer, mas não fazia mal.
Um dia o medo de lidar com aquele titã verde acabou por vencer, por causa das cataratas e da guerra que a Rosa iniciou, preocupada com os desastres que aconteciam aqui e ali cada vez mais. O Senhor Alves do táxi achou muito prudente e com ar sério pôs-se logo à disposição para o que fosse preciso. Ficou assim o Pontiac fechado numa garagem nada desconfortável de chão vermelho durante outros dez longos anos até ao dia que finalmente a Condessa morreu. O Regaleira tratou sempre dele com a maior ternura, claro!
A partir desse dia fatídico de Junho a vida de todos naquela casa mudou. O carro passou então a fazer parte de um imenso inventário, entre pratas, quintas, prédios, brasões e móveis. Longo, entre partilhas complicadas. Acabou, por fim, por ser herdado, junto com a Rosa, pelo Gonçalo, um sobrinho de Lisboa que lhe achava graça, mas não tinha lugar para ele no seu mundo, nem garagem tinha sequer! Por isso vendeu-o ao Senhor Antero da Garagem Preciosa lá da vila, que sempre tinha tratado dele com a maior atenção e cuidado, por adivinhar este desfecho e por ser para a senhora Condessa, que merecia o melhor e o mais caro.
Passou, então, ainda mais cinco anos esquecido num armazém, coberto por um oleado cheio de pó cinzento e azul, esquecido e a envelhecer ingratamente! Tanto tinha para dar e ficou-se por ali, rijo, novo e parado. Parecia eternamente parado! O Senhor Antero ao fim desses anos acabou por morrer também e os filhos com a intenção de fazerem o primeiríssimo parque de estacionamento da vila, resolveram vendê-lo ao primeiro que aparecesse e que não se importasse de gastar gasolina a rodos.
João “Besegol” era o ganzado mais psicadélico de toda a região. O pai era um conhecido comerciante de carnes verdes e tinha cabelos ruivos e encaracolados, sardas e ombros largos e grandes a saírem de t-shirts cavadas de cores gritantes, texanas azuis e roxas! Cintos de fivelas enormes e onda, muita onda; charros à abrir! Apaixonou-se logo pelo carro da Condessa quando o viu e comprou-o por tuta-e-meia ao gerente dos filhos do Senhor Antero da Garagem Preciosa. Andava sempre em estradas perto do mar e do vento, entre o Alentejo e o Algarve, nos bares dos velhos da batota, cheios de areia e de gente, a falar com montes de gaivotas e claro, sempre inevitavelmente a sentir o peso de toda aquela máquina quase nova e cheia de tesão. Braço de fora e cheiro a sal na boca, não podia pedir mais nada ao mundo, apenas talvez que lhe controlasse um bocado a adrenalina! As noitadas e os momentos que lhe tocavam profundamente eram cada vez menos, por isso procurava sempre um bocadinho mais em garrafas e em mulheres, dali de perto ou não. O Pontiac, sempre forte, galgava as dunas, desafiava as ondas, desbravava canaviais e esperava paciente, noites dentro descampados fora; curtes do dono dentro, sempre fora!
Gonçalo Ávila Ribadeneira, o sobrinho de Lisboa da Condessa descia naquele dia quase pela última vez a Serra da Cabreira enquanto desmontava a casa aos bocados, adivinhava segredos pelos cantos, vendia as vinhas e os pomares e inevitavelmente se irritava com os primos pelas partilhas, por causa de coisas pequeninas que não lhe diziam nada! A Rosa inconsolável, Cabreira abaixo, ao seu lado, serra fora, ainda não se conformava com a morte da Senhora e com o medo de ir viver para Lisboa. Só lá tinha ido uma vez em excursão, sempre com a sensação confortável de que ao fim do dia voltaria ao aconchego da sua cozinha, das suas brasas e do seu escuro confortável. Agora não, ia para aquele inferno para sempre, para um andar entre milhões, tratar dos filhos do menino Gonçalo; longe dos jardins, dos campos, da horta e do Senhor Regaleira. Chorava inconsolável. Gonçalo por seu lado, ao volante e em silêncio, estava descansado porque não dava um mês para que ela se tornasse no sargento da casa, que foi o que acabou por acontecer, claro. Entre os dias dele e da mulher que só chegavam a casa à noite, e os filhos pequenos que haviam de passar a ser mimados até à última por uma avó que vem nos livros de histórias, que lhes dava biscoitos e lhes contava coisas de tempos antigos.
Gonçalo acabava por acreditar mais em si e no seu trabalho do que em heranças e títulos, por isso as idas à Cabreira eram sempre uma obrigação que não lhe agradava nada. Aturar primos que discutiam cheios de raiva por causa de uma caixa de costura, antiquários de todas as bandas sempre certos que era tudo imitação e empreiteiros a quererem baixar os preços dos terrenos junto à estrada. Era realmente um frete que acabava por fazê-lo sentir abutre como os outros. E ele estava-se mesmo nas tintas para tudo o que tinha que não tivesse sido construído por si. Parecia que a única coisa boa que lhe tinha acontecido naquele dia era poder experimentar fora da cidade o seu novo 206. Era lindo, cheirava a novo, tinha uma série de botões para experimentar e até podia pôr o rádio mais alto sem tirar as mãos do volante, apenas com o polegar. Estava entre o utilitário e o familiar e a relação qualidade/preço tinha-lhe parecido vantajosa. Era escusado tentar partilhar tudo isto com a Rosa, sempre agarrada ao lenço a soluçar e a ser-lhe indiferente naquele minuto ir de carro ou de foguetão, mas também não fazia mal e se chegasse cedo a Lisboa ainda ia dar umas braçadas ao health club como todos os dias, falar das coisas que os homens falam e estar atento ao que se vai passando por aí.
No dia seguinte, enquanto arranjava a gravata com flores de lis, a gola da camisa de quadradinhos e o blazer com botões dourados, já atrasado para ir trabalhar e levar os filhos à escola com a mulher a berrar recados de coisas inadiáveis, entrou na cozinha e viu a velha Rosa ainda com o lenço da cabeça na mão para enxugar as lágrimas, aterrada com tantas máquinas brancas pelos cantos que não sabia para o que serviam; sumos de lata de cores gritantes, muito longe do que já tinha visto, mas que garantiam a vida eterna na embalagem; e pacotes de cerais com ares plásticos mas saudáveis por todo o lado que haviam de substituir o pão! O mulete normal, aquele para comer com manteiga, não se achava em lado nenhum naquela cozinha onde havia crianças e achou que o Abade Afonso tinha razão e que o fim do mundo estava para chegar. Pegou no lenço e pediu à Condessa que a levasse com ela para o outro mundo, tão perdida e desesperada que se sentia! Mas levou dois dias apenas, não o mês que Gonçalo previa, para que Rosa se tornasse no comandante não só da cozinha, mas da casa e da vida de todos, que era o que Gonçalo e a mulher queriam e esperavam com aquele pequeno rancho para gerir.
Bem giro pcp:)
ResponderEliminarObgd
PCP, what is this?
ResponderEliminarThank you both. So glad you liked it, Maria Lemos. It was not written by me!! Philip knows the author. A friend who died 3 years ago in London. Pedro Dantas. Hope you are following the story. This is the second part. It will last for about 10 Saturdays, more or less. Have a wonderful day. pcp
ResponderEliminar