É o meu dia-a-dia, alucinante, alucinado, destravado. Partilho a casa, não só com os que pagam a renda como com quem vai aparecendo, personagens mais ou menos difusas, mais ou menos engraçadas, algumas peculiares o suficiente para figurarem num texto insónio. A casa e a vida, que se não somos todos partilha, devíamos ser. Para mim a vida é uma singularidade plural. Não sou muito de me afligir, mas quando penso nisso, na descontracção com que a pontapeamos de um lado para o outro, a vida, nossa e dos outros, revolto-me todo por dentro. Vezes há em que me apanham desprevenido, desfocado das coisas e todo aflito com a curriqueirice do trato que dão ao que temos de mais precioso, e eu acabo por dizer alguma estupidez pouco oportuna, das que caem nas conversas como copos de água gelada na digestão do almoço. Nada a que as personagens principais do meu filme não se tenham já habituado a dar pouca importância.
Somos três, quatro, cinco, de cada vez. Cinco e um chinês. Quase seis, portanto, que o rapaz não tem peso para ser pessoa inteira. Eu apostava uns tostões como ele só paga meio bilhete lá nos transportes orientais. Não se apressem no julgamento, que eu não estou a ser mau só porque ele é amarelo e tem um cheiro estranho, aliás, afianço já que não sou nada má pessoa, e longe de mim ficar apoquentado com a diferença. Até ia a dizer que ele é muito boa meia-pessoa, apesar do vocabulário limitado e da surrealidade das conversas que tenta manter com quem não fala a língua dele, que é como quem diz, toda a gente ca de casa. O choque de culturas é flagrante e hilariante, um relato detalhado dava uma pequena obra, que escrita com cuidado, poderia ser publicada como comédia levezinha para se ir lendo nos lavabos. Resumindo depressa e bem, viver com ele é como ter um cãozinho. O afecto é inegável, porque ele é de facto, adorável, mas tirando isso, é um pesadelo, incluindo a porcaria no chão e os fios elétricos roídos.
Agora estou de férias, uma ilusão temporária que gosto de festejar, como se tudo fossem passarinhos e nuvenzinhas e florzinhas. A verdade é que ando no rescaldo de mais uma época de exames que foi demasiado má para ser sequer credível. A melhor metáfora que me ocorre é a do castelo de areia. O exercício é fácil, imaginem um miúdo entusiasmado, munido da ferramenta plástica do costume e de uma vontade inabalável de fazer a diferença, de joelhos na areia dá início a um empreendimento ambicioso. O brilho nos olhos dele denuncia o planeamento exaustivo, a análise cuidada de todas as variáveis, a confiança que o muro de areia, desta vez, vai ser suficientemente alto e largo para segurar a maré, vai levar pauzinhos espetados, vai levar todas as pedras que houverem na praia, vai aguentar. Vem a maré e alaga tudo, aparentemente com a mesma facilidade que tinha alagado o último muro que ele se lembrava ter construído, muito mais pequeno e fraco. O meu semestre é o castelo, a maré são as épocas de exames. No fim da batalha, afoga-se o desgosto com o lanche que a mãe trouxe de casa e volta-se a atenção para outra coisa qualquer, tentando iludir o orgulho ferido e o desgosto do insucesso com distracções menores.
Não sei o quão semelhantes têm de ser os dias para que nos seja permitido adjctiva-los de rotina, na acepção negativamente repetitiva da palavra. A minha vontade é adjectivar-lhes o estado de espirito, que é sempre o mesmo.
Falei de partilha no início, sublinhei-a como essencial. Não costumo gabar-me das coisas realmente importantes, só das que não interessam para nada, das que puxam umas gargalhadas, mas a verdade é que tenho orgulho no meu sentido de justiça, ou coisa que o valha, e ia estar a ser injusto se me fosse deitar sem partilhar com estas linhas quem partilha tudo o resto comigo. Não há aflição que não se apazigúe com um esfregar de nariz e um abraço apertado, e o amor é isso mesmo, um esfregar de nariz mágico. Os meus dias caóticos são como uma bola presa a um elástico seguro a uma mão firme. Resvalam por todo o lado, vão e vêm, pulam e batem, rodopiam, mas sempre seguros num ponto, numa certeza. E vale-me isso, mais do que tudo.
ZdT
Somos três, quatro, cinco, de cada vez. Cinco e um chinês. Quase seis, portanto, que o rapaz não tem peso para ser pessoa inteira. Eu apostava uns tostões como ele só paga meio bilhete lá nos transportes orientais. Não se apressem no julgamento, que eu não estou a ser mau só porque ele é amarelo e tem um cheiro estranho, aliás, afianço já que não sou nada má pessoa, e longe de mim ficar apoquentado com a diferença. Até ia a dizer que ele é muito boa meia-pessoa, apesar do vocabulário limitado e da surrealidade das conversas que tenta manter com quem não fala a língua dele, que é como quem diz, toda a gente ca de casa. O choque de culturas é flagrante e hilariante, um relato detalhado dava uma pequena obra, que escrita com cuidado, poderia ser publicada como comédia levezinha para se ir lendo nos lavabos. Resumindo depressa e bem, viver com ele é como ter um cãozinho. O afecto é inegável, porque ele é de facto, adorável, mas tirando isso, é um pesadelo, incluindo a porcaria no chão e os fios elétricos roídos.
Agora estou de férias, uma ilusão temporária que gosto de festejar, como se tudo fossem passarinhos e nuvenzinhas e florzinhas. A verdade é que ando no rescaldo de mais uma época de exames que foi demasiado má para ser sequer credível. A melhor metáfora que me ocorre é a do castelo de areia. O exercício é fácil, imaginem um miúdo entusiasmado, munido da ferramenta plástica do costume e de uma vontade inabalável de fazer a diferença, de joelhos na areia dá início a um empreendimento ambicioso. O brilho nos olhos dele denuncia o planeamento exaustivo, a análise cuidada de todas as variáveis, a confiança que o muro de areia, desta vez, vai ser suficientemente alto e largo para segurar a maré, vai levar pauzinhos espetados, vai levar todas as pedras que houverem na praia, vai aguentar. Vem a maré e alaga tudo, aparentemente com a mesma facilidade que tinha alagado o último muro que ele se lembrava ter construído, muito mais pequeno e fraco. O meu semestre é o castelo, a maré são as épocas de exames. No fim da batalha, afoga-se o desgosto com o lanche que a mãe trouxe de casa e volta-se a atenção para outra coisa qualquer, tentando iludir o orgulho ferido e o desgosto do insucesso com distracções menores.
Não sei o quão semelhantes têm de ser os dias para que nos seja permitido adjctiva-los de rotina, na acepção negativamente repetitiva da palavra. A minha vontade é adjectivar-lhes o estado de espirito, que é sempre o mesmo.
Falei de partilha no início, sublinhei-a como essencial. Não costumo gabar-me das coisas realmente importantes, só das que não interessam para nada, das que puxam umas gargalhadas, mas a verdade é que tenho orgulho no meu sentido de justiça, ou coisa que o valha, e ia estar a ser injusto se me fosse deitar sem partilhar com estas linhas quem partilha tudo o resto comigo. Não há aflição que não se apazigúe com um esfregar de nariz e um abraço apertado, e o amor é isso mesmo, um esfregar de nariz mágico. Os meus dias caóticos são como uma bola presa a um elástico seguro a uma mão firme. Resvalam por todo o lado, vão e vêm, pulam e batem, rodopiam, mas sempre seguros num ponto, numa certeza. E vale-me isso, mais do que tudo.
ZdT
3 comentários:
Ever tried? Ever failed?
No matter.
Try again. Fail again.
Fail better.
Samuel Becket.
('be better')
gi.
Que bem escreve, ZdT. Gosto imenso das suas colunas. Tanto em conteúdo como em forma. Obrigada por esta primeira leitura matinal. pcp
Obrigado por lerem, gi e pcp. =)
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