30 junho 2010

Vai um gin do Peter’s ?

Logo que «O SEGREDO DOS SEUS OLHOS» entrou em cartaz, corri para as salas de cinema, visto o Melhor Filme Estrangeiro (2010) ser o Óscar em que costumo sintonizar com a Academia de Hollywood.

É um filme pesado (até pelo jargon bastante boémio e hiperbólico mas com partes muito cómicas), apesar do sentido de humor hiper lúcido e refrescante ou não estivesse a concorrer com outros candidatos à mesma estatueta, ainda mais pesados… Refiro-me ao do realizador austríaco, «O Laço Branco», também interessante mas em espiral de ódio, onde a soberba e a crueldade se mascaram de um moralismo repugnante, com uma rigidez desumana. Não por acaso, «O Laço…» decorre em vésperas da I Guerra Mundial, que parece ser urdida pelas mentes castigadoras daquele povoado remoto. Mais dantesco ainda é antever os adultos da II Guerra… Diria que não alcança o horizonte arejado do filme vencedor, apesar do esforço muito louvável da voz off, devidamente demarcada de todo aquele horror clandestino e indomável. Um registo cansativo, acantonado num microcosmo psicológico demasiado retorcido e monolítico.

Voltando ao thriller argentino, «O SEGREDO…» baseia-se no romance de outro argentino, Eduardo Sacheri, com um título ainda mais revelador: «A PERGUNTA DOS SEUS OLHOS».

Num esforço para expor os pontos fortes do filme sem quebrar, minimamente, o suspense – crucial ao desenrolar da narrativa – avançarei com pinças...

Todo o fluir da trama é marcadamente latino, quer pela forte carga afectiva, quer por todo o enquadramento social, quer pelo perfil das personagens, definidas sobretudo pela teia dos relacionamentos humanos.

Os diálogos de tragicomédia vão do burlesco à tirada filosófica ou ao desabafo intimista, passando pela dialéctica tribunícia, em segundos. O espectro de comunicação é incrivelmente amplo, enriquecido por uma mímica magistral, zooms geniais a olhares que dizem tudo, ou a nesgas de planos captados por frinchas de luz que nos desvendam os mistérios mais intrincados. Inimagináveis. Curiosamente, a viagem ao interior das mentes é bem mais empolgante que a exploração dos meandros de um crime hediondo. Abreviando, poderíamos dizer que o filme traça não só os mapas mentais, como mergulha no código das motivações psicológicas, desenhando a matriz irrepetível de cada personalidade. E aqui, a descoberta da chave de leitura do homicídio, pela personagem superior que é o contraditório Sandoval, lança-nos na chave de leitura do próprio ser humano: «Uma pessoa pode mudar de nome, de morada, de aspecto… mas há uma coisa que não pode mudar… não pode mudar de paixão». Corresponde à tradução em linguagem judicial de «Onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu coração.» Adensa-se a trama para vir a revelar, no final, o “tesouro” – mais ou menos assumido, mais ou menos consciente – de cada personagem. Um tesouro que, embora de fórmula simples como é apanágio das opções afectivas, pode numa fase da vida assumir a forma de um amor fortíssimo e, escassos segundos depois, sustentado pelo mesmo amor (quando frustrado…), assumir os contornos da pura vingança que se vai tingindo de ódio. No fim, fica-nos a dúvida sobre a identidade do condenado à pena maior: não será o que se deixou aprisionar no ciclo vingativo, sempre insaciável?

Os perfis psicológicos são apaixonantes. Todos, diria. O realizador conduz-nos por círculos concêntricos, partindo do epicentro dos 3 companheiros do tribunal. Um triângulo unido por uma cumplicidade densíssima, de vida e de morte, onde há lugar para a amizade e para a paixão, dispensando-me de mais caracterizações para não interferir no efeito surpresa. O pequeno círculo alarga-se, progressivamente, a mais pessoas envolvidas no homicídio, que é o pretexto da narrativa, até abranger toda a sociedade.

As variações entre o presente e os múltiplos flashbacks são de mestre. Assim como a alternância de perspectivas entre o olhar individual e o plural, entre as vivências pessoais e os episódios “colectivos”, entre os grandes planos de uma personagem, isoladamente, e os efeitos da constante interferência dos outros, conforme os laços e as circunstâncias de vida que os interligam.

A problemática do tempo assume uma reflexão especialmente mordaz na análise dos mecanismos da memória, um arquivo de natureza eminentemente afectiva. O regresso do inspector reformado ao processo de há 25 anos é também a oportunidade de ajustar contas com o que ficou por acontecer. No fundo, o presente mantém-se em aberto, até para o “milagre”… E fico-me por um par de falas muito ilustrativas (citadas por aproximação):

- Tu tens o presente, mas a mim só me resta o passado. – Esposito a Irene

- Vivi sempre virada para o futuro. O passado não é a minha jurisdição. (Para o rever) declaro-me incompetente. resposta de Irene

- Se não se esquece (do homicídio de há 25 anos), vai acabar com mil passados e nenhum futuro... Vai acabar só com lembranças. – Morales

- Já não sei se é a lembrança ou se apenas me resta a lembrança de uma lembrança, percebe? – Morales

O argumento é desfiado numa escalada de deixas extraordinárias, que não se perdem no exibicionismo verbal, inconsequente, ao jeito do discurso puramente demagógico e oco. Aqui, sente-se a força de cada palavra, até pelo valor que assume no desenrolar da acção:

- Os olhos falame é melhor que se calem. – Esposito a Sandoval, embriagado

- Não. Que (o assassino) viva muitos anos! Assim, acabará com uma vida cheia de nada. – a fórmula da justiça, segundo Morales

- Diz-lhe, ao menos, que fale comigo. – Gomez, o homicida.

- Estou cansado de ser feliz. – Esposito, em resposta ao cumprimento do inspector

Nada é óbvio enquanto não for visto até ao âmago da alma, embora se deixe adivinhar num esgar involuntário, num desabafo extemporâneo. Mas nada fica por desvendar se se toma o pulso da vida! Poderá soar estranha esta associação de ideias entre o sucesso de uma investigação criminal e a postura de vida do investigador. Indo mais longe – propõe-se aqui uma relação causa-efeito. Vale a pena transcrever dois ditos de Esposito, para avaliarmos a ousadia da proposta:

- Parecia-me que tudo se tinha passado noutra vida… mas foi nesta… Porque esta é a vida.

- Como se faz para viver uma vida vazia? Uma vida cheia de nada?

Talvez a personagem que melhor ilustre o olhar profundo que todo o ser humano merece, para superarmos a falácia das aparências, seja o copofónico e irascível Sandoval, afinal um sábio sem pose nem estatuto, antes autêntico druida. Auto-define-se assim: «O que se passa, Benjamin (Esposito), é que vocês me vêem assim, vestido de sapo. Mas, na realidade, sou um príncipe encantado.» Cabe-lhe uma função decisiva, oscilando entre o coro das tragédias gregas e o bobo das peças de Shakespeare, a pontificar ao longo do curso da história. Será o mais paradoxal do variado panorama humano em cena. Se dúvidas houvesse, a sua última aparição na tela faz jus à grandeza do seu carácter, encoberta por um dia-a-dia de vícios e desleixo. Aliás, o final torna-se o momento supremo de cada personagem, a manifestação mais límpida do respectivo “tesouro”.

Convidando-nos a redescobrir a substância da realidade, para lá do invólucro, o filme de Campanella sugere-nos a pergunta inscrita nos olhos de cada um, uma bússola também recomendada pela sabedoria popular, que vê nos olhos o espelho da alma.

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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FICHA TÉCNICA

tulo original: El secreto de sus ojos Título traducido: O Segredo dos seus olhos

Realizador: Juan José Campanella

Elenco: Ricardo Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago, Javier Godino, Guillermo Francella, José Luis Gioia, Carla Quevedo, Bárbara Palladino.

Produção (argentino-espanhola): Mariela Besuievski

Argumento: Juan José Campanella, baseado no romance La pregunta de sus ojos de Eduardo Sacheri

Fotografia: Félix Monti Banda sonora: Federico Jusid e Emilio Kauderer

Duração: 127 min. Ano: 2009 País: Argentina /Espanha

2 comentários:

Anónimo disse...

Ainda há bem pouco tempo tive uma conversa sobre o tema dos olhos, aquilo que alguns apelidam de "porta da alma". Não só o que os outros vêm em nós ao olhar-nos nos olhos, e a que não temos acesso a não ser que nos digam, mas aquilo que nós vemos nos outros como um todo. E nesta segunda perspectiva, que parece redundante, está inscrito o que somos: os olhos são só a porta de passagem para a nossa leitura pessoal do mundo e dos outros. Uma leitura necessariamente subjectiva e feita das nossas próprias experiências. É por isso que há pessoas que são diabos aos olhos de uns e anjos aos olhos de outros (salvo as devidas distâncias). Porque os nossos olhos, a nossa experiência, e a própria experiência vivida com o outro, nos fazem "ver" coisas diferentes. Obrigada, MZ. pcp

Anónimo disse...

Mto gira a imagem "porta da alma". De facto, os olhos resulta num daqueles temas infindáveis, porque abre muitas portas, para além da da alma. Na obra que inspira o filme, parece-me especialmente feliz a maneira de abordar a riqueza do olhar através de "a pergunta dos seus olhos". Há assim expressões muito simples que dizem tanto! É extraordinário. Bj, MZ

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