adoro a vida que tenho, não me esqueço de o dizer a mim própria, a cada manhã que Deus me concede. bem sei que sou pouco exigente, para os dias que correm. uma velha pateta, sofrida, pobremente vestida
- decerto que é assim que me retratam, virando costas com a displicência e a alegria que a juventude, a beleza física, o dinheirito no bolso, normalmente trazem consigo. quem os censura? não eu. não eu. todos os dias carrego comigo, como esta cidade que me viu nascer, viver e onde provavelmente morrerei, a memória dos dias de antigamente. como quando, a partir desta cidade, os mouros ou lá o que eram, dominavam parte importante do que hoje é este país. provavelmente tenho sangue deles, talvez sim. nunca estudei, não sei explicar estas coisas, o ar torrado que os rapazes, em nova, diziam que eu tinha. esplendor (aprendi com um senhor, no outro dia, esta palavra) - ou não será esplendor sentirmo-nos jovens e amadas pelos rapazes da terra? cada qual sabe de si, mas, para mim, isso foi o melhor que tive, até hoje. agora a vida é outra, num rame-rame próprio dos velhos, dos que não contam para as contas. graças a Deus que o tino ainda ficou aqui na cabecinha. e é por isso, se querem saber, que ainda me mantenho viva. todos os dias, à força de pernas e braços, desço do bairro e instalo-me nas ruas mais movimentadas, onde vendo os chocolates, os rebuçados, os doces, que turistas (muitos) e companheiros de luta (poucos) me vão comprando. no dia em que parar, não duro duas estações, é como digo. a sorte de ter uma ocupação, a sorte de ter o que fazer, e o dinheirinho que sempre ajuda a manter a casa arrumada, uma roupita limpa, a pôr comida na mesa. coisas que quem me compra os doces provavelmente não entenderá, mas também para que é que seria preciso que entendessem, bem vistas as coisas? cada um na sua, aprendi com a senhora minhã mãe (Deus a guarde, pobrezinha), que uns nascem para serem poucochinho, mas que talvez haja uma razão para isso. cala-te, mulher, que sabes tu da vida? tantas vezes o teu pai (Deus o guarde, pobrezinho) te deu nas mãos, por meteres o bedelho onde não és, nem nunca foste, chamada. cala-te, mulher. adoro a vida que tenho, já vos disse? podia ser melhor, claro que sim. para outros, mas não para mim. gosto de me levantar bem cedo, de cruzar as ruas com os turistas que querem ver o palácio em sentido contrário. não há lá nada, já morreu tudo, mas querem ver, dizem que é um monumento importante. não sei, nunca estudei, mal sei ler. dizem que sim, que é, e eu acredito. levanto-me cedo, desço do bairro, dou uns dedos de conversa a quem calha, monto a tenda devagarinho, numa sombra que dê jeito e traga gente, e sigo o dia, vendendo o que posso. uns euros aqui, uns euros ali, coisa pouca, mas honesta, como aprendi com quem já não está cá (Deus guarde as minhas tias e o meu homem, pobrezinhos).
hoje, vi um rapaz a olhar para mim, tão triste, que nem queiram saber. coitadinho dele. apesar de estrangeiro, ninguém merece tanta tristeza. uma velha tonta, até ao fim, é o que é.
gi.
gi
ResponderEliminarGostei muito do post. Retrata a nossa cidade e gentes, nos tempos difíceis que atravessamos, com precisão, humor e optimismo.
Faz pensar que vale a pena contemplar este grupo crescente de pessoas que retrata.
Já agora deixo aqui o que vi nos últimos tempos.
Uma velha a pedir sentada nas escadas numa das estações de metro. Nada fora do habitual a não ser o facto estar a fazer as palavras cruzadas do jornal Metro. Achei curioso e notei depois, quando olhei com mais atenção, o ar digno e não alheado da mesma. Quando agradeceu a moeda olhou para mim com uma expressão bonita que estava de acordo com as palavras.
Um dia destes, quando fazia passadeira na sala do ginásio que dá para um bonito jardim com paredes cobertas com painéis de azulejos antigos vi chegar um mendigo que calmamente puxou de uma beata que acendeu e fumou com gosto, ao mesmo tempo que se alongava no banco do jardim desfrutando do sol e do ambiente agradável que o rodeava.
O que é que está a acontecer? Pessoas que não são de todo analfabetas e que se vêem forçadas a viver na rua? E será que o que nós julgamos essencial para a nossa felicidade, afinal não é bem assim?
Enfim, o seu post fez-me pensar.
A Rosa Montero dizia, num dos seus livros, qualquer coisa assim: "sabes lá quantas vidas há dentro de uma vida". Talvez numa dada altura, fruto de circunstancialismos próprios, consigamos ser tudo dentro de nós: a velha que desce do bairro e o rapaz estrangeiro que não merece tanta tristeza.
ResponderEliminarQuanto mais não seja para perceber que ninguém é assim tão tonto e que há tristezas que alimentamos nós. É a experiência, sabe?
Bom dia Gi,
ResponderEliminarEscreve tão bem que nem me importava de ser a velha tisnada, tonta e atenta. Volte sempre.
Até me sinto chata de o comentar! Você é um escritor/poeta e tanto! Obrigada pelas suas sextas-feiras (e ao JdB, evidentemente). pcp
ResponderEliminara todo(a)s vós:
ResponderEliminaro meu obrigado pelas vossas palavras e pela vossa generosidade.
os meus dias estão repletos de desvalidos, de deserdados, de desterrados, porque os nossos dias são assim e eu limito-me a tentar dar voz a quem não tem voz.
lírico? utópico? a roçar o ridículo edulcorado? que seja. mas, um dia, que de mim se diga: não se calou.
o texto acima foi escrito a propósito de Granada, uma cidade que conheci recentemente e que guardo junto ao sítio mais precioso.
a velhinha de que falo são todas as velhinhas, misturando metáfora, sinédoque e metonímia - tudo é uma coisa outra, o todo é a parte e a parte é o todo. talvez seja esta espécie de cosmovisão a minha religião. disse o dalai lama, creio eu, que a sua única religião é ter bom coração.
em tempos como estes, é preciso resistir. começar pelo olhar e treinar a Humanidade em nós, devia ser matéria compulsiva deste tenra idade.
talvez por todos os dias, por circunstâncias várias pessoais, me deslocar a um hospital (daqueles que nada têm de "boutique hotel"), estas coisas do mundo e dos homens me estejam mais à flor da pele e dos sentidos.
em todo o caso, esta foi uma pequena homenagem a granada, à andaluzia, aos príncipes que outrora reinaram sobre o grande califado ibérico, e a muitas outras princesas e a muitos outros príncipes nos quais todos os dias "tropeço"..
bem-haja(m) por se terem dignado parar aqui.
sois "como a flor da laranjeira, que, apesar de invisível aos olhos, penetra nas narinas do moribundo, e é delícia, tudo na vida, por uns segundos" (do senhor antónio gamoneda - seguramente, um dos poemas da minha vida).
flores outonais,
gi.