Volto a um tema querido: o revivalismo saudoso (será um pleonasmo?), característica que me habita em permanência, pois que quando eu nasci já era velho.
A juventude de hoje tem iphone, ipad, ipod. Olha para o CD - uma revolução tecnológica para quem, como eu, cresceu com o vinil - e encontra-lhe uma obsolescência óbvia. Faz downloads de filmes, de músicas, de aulas de metafísica, de jogos galácticos ou de testes de código da estrada com a mesma facilidade e desenvoltura com que eu, na idade deles, fotografava paisagens com uma Kodak de plástico.
A juventude de hoje circula de carro para todo o lado, olhando para os transportes públicos como uma fatalidade a evitar, e também porque fazer três quilómetros a pé é uma peregrinação reservada para a altura certa e a devoção possível. As casas têm aquecimento generalizado, as mesadas são boas, as férias passam-se em países estrangeiros que a rapaziada do meu tempo conhecia dos filmes ou da cultura geral (quem é que em 1980 tinha ido ao Quénia ou à República Dominicana?).
A juventude de hoje pode estar à rasca, mas tem fortes comodidades. Pode ter um futuro mais interrogado, mas tem um presente mais exclamativo. Porém, tal como Filipe II, que tinha tudo o que queria exceptuando um fecho éclair (poema completo aqui), a juventude de hoje pode deter todas as mordomias mas, no fundo no fundo, não sabe o que é dançar um slow.
Há muito tempo, ainda o verão português não era quente, entusiasmei-me por uma rapariga. Era um julho algarvio, talvez. No dia em que me iria declarar, revelando um arrojo que me é errático, dois amigos - um dos quais habitué deste espaço - deixaram-me dormir, e a jovem zarpou para Lisboa. Nunca mais a vi, mas ficou a lembrança de uma música com uma toada repetida, quiçá monótona, que eu dançava com ela amiúde.
Vem-me desse tempo, provavelmente, a convicção de que dançar não é a agitação frenética de um corpo que anseia por soltar os seus demónios. Dançar é um acto afectivo que se faz a dois - de preferência agarrado - porque um corpo que se estreita nos nossos braços, um cabelo cheiroso que nos roça a cara, um ritmo que o par domina, nem sempre com desenvoltura, mas seguramente com gosto, é algo demasiadamente prazeroso para ser feito na base de um parceria amigável ou, pior ainda, integrado numa multidão anárquica - ainda que perfumada.
Ultima nota, que o post vai comprido e há quem não tenha paciência: gosto sempre de relembrar que a nossa vida se pode decidir numa fracção de instante, por motivos fortuitos e prosaicos. Se não me têm deixado dormir, talvez eu viesse a ter namoro (e casar, who knows?) com aquela rapariga e, fruto das suas influências precoces, cursasse outras matérias e fosse, agora, o CEO de uma multinacional. Supor que posso ser hoje tradutor em regime liberal porque há mais de trinta e cinco anos dois amigos fizeram o que fizeram é algo de aterrador. Um jovem adormece no sono dos justos e pode acabar nos recibos verdes...
JdB
4 comentários:
É pá, deixa-te de "only ifs" que a miúda muito provavelmente iria dizer que não. Eu lembro-me do "So Long Marianne" com uma holandesa. Que nunca me deu sono.
rsrsrsr os Amigos no seu melhor ! Concordo com o JdC, esse namoro não tinha que acontecer. Das duas, uma; ou a rapariga advinhou as suas intenções e foi-se embora (deu de frosques, como diriam os jovens hoje) ou o seu entusiasmo pela rapariga era tão ténue que ela nem percebeu. Duvido que um entusiasmo assim viesse a sustentar um casamento, já para não falar de uma nomeaçao a CEO. lolol. Mas é sempre bom sonhar, João.
Maf
Percebo, mas olha que ser CEO duma multinacional deve ser péssimo. Estou aqui num sitio onde as pessoas são pobres mas livres.
Gosto do slow!!
O JdC sempre internacional.
Abr
fq
Depois de ouvir o maior maçador do século, de ler o texto acompanhante e os comentários de outros leitores assíduos, só me resta dizer que se fosse eu a dita menina, tinha bazado só com o pavor de me imaginar a dançar esta música em cada aniversário do nosso lindo e feliz casamento.
Desculpe JdB, mas este senhor dá-me uma neura!
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