28 junho 2011

Duas últimas

Volto a um tema querido: o revivalismo saudoso (será um pleonasmo?), característica que me habita em permanência, pois que quando eu nasci já era velho.

A juventude de hoje tem iphone, ipad, ipod. Olha para o CD - uma revolução tecnológica para quem, como eu, cresceu com o vinil - e encontra-lhe uma obsolescência óbvia. Faz downloads de filmes, de músicas, de aulas de metafísica, de jogos galácticos ou de testes de código da estrada com a mesma facilidade e desenvoltura com que eu, na idade deles, fotografava paisagens com uma Kodak de plástico.

A juventude de hoje circula de carro para todo o lado, olhando para os transportes públicos como uma fatalidade a evitar, e também porque fazer três quilómetros a pé é uma peregrinação reservada para a altura certa e a devoção possível. As casas têm aquecimento generalizado, as mesadas são boas, as férias passam-se em países estrangeiros que a rapaziada do meu tempo conhecia dos filmes ou da cultura geral (quem é que em 1980 tinha ido ao Quénia ou à República Dominicana?).

A juventude de hoje pode estar à rasca, mas tem fortes comodidades. Pode ter um futuro mais interrogado, mas tem um presente mais exclamativo. Porém, tal como Filipe II, que tinha tudo o que queria exceptuando um fecho éclair (poema completo aqui), a juventude de hoje pode deter todas as mordomias mas, no fundo no fundo, não sabe o que é dançar um slow.

Há muito tempo, ainda o verão português não era quente, entusiasmei-me por uma rapariga. Era um julho algarvio, talvez. No dia em que me iria declarar, revelando um arrojo que me é errático, dois amigos - um dos quais habitué deste espaço - deixaram-me dormir, e a jovem zarpou para Lisboa. Nunca mais a vi, mas ficou a lembrança de uma música com uma toada repetida, quiçá monótona, que eu dançava com ela amiúde.

Vem-me desse tempo, provavelmente, a convicção de que dançar não é a agitação frenética de um corpo que anseia por soltar os seus demónios. Dançar é um acto afectivo que se faz a dois - de preferência agarrado - porque um corpo que se estreita nos nossos braços, um cabelo cheiroso que nos roça a cara, um ritmo que o par domina, nem sempre com desenvoltura, mas seguramente com gosto, é algo demasiadamente prazeroso para ser feito na base de um parceria amigável ou, pior ainda, integrado numa multidão anárquica - ainda que perfumada.

Ultima nota, que o post vai comprido e há quem não tenha paciência: gosto sempre de relembrar que a nossa vida se pode decidir numa fracção de instante, por motivos fortuitos e prosaicos. Se não me têm deixado dormir, talvez eu viesse a ter namoro (e casar, who knows?) com aquela rapariga e, fruto das suas influências precoces, cursasse outras matérias e fosse, agora, o CEO de uma multinacional. Supor que posso ser hoje tradutor em regime liberal porque há mais de trinta e cinco anos dois amigos fizeram o que fizeram é algo de aterrador. Um jovem adormece no sono dos justos e pode acabar nos recibos verdes...

JdB


4 comentários:

JdC disse...

É pá, deixa-te de "only ifs" que a miúda muito provavelmente iria dizer que não. Eu lembro-me do "So Long Marianne" com uma holandesa. Que nunca me deu sono.

Maf disse...

rsrsrsr os Amigos no seu melhor ! Concordo com o JdC, esse namoro não tinha que acontecer. Das duas, uma; ou a rapariga advinhou as suas intenções e foi-se embora (deu de frosques, como diriam os jovens hoje) ou o seu entusiasmo pela rapariga era tão ténue que ela nem percebeu. Duvido que um entusiasmo assim viesse a sustentar um casamento, já para não falar de uma nomeaçao a CEO. lolol. Mas é sempre bom sonhar, João.
Maf

Anónimo disse...

Percebo, mas olha que ser CEO duma multinacional deve ser péssimo. Estou aqui num sitio onde as pessoas são pobres mas livres.
Gosto do slow!!
O JdC sempre internacional.
Abr
fq

Ana LA disse...

Depois de ouvir o maior maçador do século, de ler o texto acompanhante e os comentários de outros leitores assíduos, só me resta dizer que se fosse eu a dita menina, tinha bazado só com o pavor de me imaginar a dançar esta música em cada aniversário do nosso lindo e feliz casamento.
Desculpe JdB, mas este senhor dá-me uma neura!

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