É quase desconhecida a peça de Natal escrita em 1940 por Jean-Paul Sartre (1905-1980), quando
era prisioneiro de guerra na Alemanha nazi. Inimaginável no autor que se
celebrizou por escrever as obras de referência do existencialismo. Sartre
costuma também ser lembrado pela recusa do Nobel da Literatura em 1964 (numa época em que este Prémio tinha muito prestígio) e,
genericamente, por ter animado o debate político, ético e filosófico do Paris
do pós-guerra, sobretudo da esquerda gaulesa, em duo com Simone de Beauvoir. Aliás,
a partir de 1945 a peça começou a cair no esquecimento até ser liminarmente
banida pelo próprio autor, cujas convicções político-filosóficas mergulhavam num
subjectivismo e num cepticismo crescentes que, paradoxalmente, o fez desacreditar
de tudo e de todos. Assim isolava o ser humano num casulo onde só o próprio
caberia, sem qualquer élan: «O inferno são os outros» ou «O homem: uma paixão inútil.»
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir junto à estátua de Balzac
«Barioná, o filho do trovão» é o título original da peça
de Sartre, posta em cena num Natal gélido, passado nos barracões destinados aos
proscritos políticos do Terceiro Reich. Juntamente com um padre amigo, também
prisioneiro, o filósofo alinhou nas celebrações da festa da Natividade. Talvez
por sentir quanto era vital acender pequenas luzes de esperança naquele lugar
de escuridão, oferecendo a resistência possível ao esmagamento anímico com que
o nazismo procurava subjugá-los. Isto recorda outra consideração de Sartre: «O pior mal é aquele ao qual nos habituamos.».
À coragem de Sartre, em 1940, juntou-se este ano a
ousadia do Teatro da Trindade em parceria com um grupo de actores – a companhia
TEO/Teatro do Ourives – pondo em cena(1) (até 23 de Dezembro) a peça nascida no
cativeiro e adoptando o título «Barioná
ou o jogo da dor e da esperança». A TEO está ligada a uma instituição dedicada
à recuperação de toxicodependentes – o Vale d’Acor – a favor de quem revertem as
receitas do espectáculo que ajuda a iluminar o Natal lisboeta.
Para além do apoio a uma causa tão meritória para o país,
a peça também vale por si. Percebe-se que o texto é concebido por um homem nas franjas do cristianismo, num arremesso
de fé frágil, cheia de reservas e inúmeras objecções, múltiplas perguntas e um
sem-fim de dúvidas, uma enorme tensão e, acima de tudo, uma angústia agressiva,
um desassossego interior que lhe sai às golfadas. Tudo isto enriquece a peça e
o Natal, porque todos têm lugar no Presépio, tal qual são, em qualquer fase da
vida, na medida em que queiram. Muito interessante, até pela invulgaridade de
revelar uma perspectiva menos comum sobre o nascimento de Jesus e as reflexões a que convida. É Sartre, com a
autoridade de quem acredita pouco e duvida muito, que mostra como em face do
Menino, tudo se pode transformar, relançar, reacordar. É o mesmo Sartre que,
nas suas imparáveis deambulações filosóficas revela facetas muito díspares e
contraditórias ao longo da vida. Duma vida que lhe pesava horrivelmente,
saltando de ideologia em ideologia, sempre insatisfeito, até acabar por professar
o anarquismo: «Tudo foi calculado,
excepto como viver.». Mas numa fase de relação mais benigna com o mundo, também
defendeu: «Tudo o que recebemos vem dos
outros. Ser é pertencer a alguém.».
A peça centra-se na figura de Barioná, um chefe judeu, orgulhoso
e patriótico, racionalista e táctico, a urdir uma rebelião surda contra as
forças ocupantes de um recanto empobrecido e periférico do poderoso Império
romano. A alusão ao Reich é por demais óbvia. E a luta de Sartre também está lá
por inteiro, no indefectível Barioná, que ninguém verga…
… Ninguém até a vida lhe trocar as voltas e um bebé se
atrever a nascer, apesar de ter proibido a sua comunidade de ter mais filhos.
Ironia das ironias: a sua mulher esperava um filho, enquanto toda a região se
alvoroçava com o anúncio do nascimento de um outro bebé, muito promissor para o
povo judeu. A contragosto, forçado pelos acontecimentos, Barioná dispõe-se a
salvar o bebé promissor, uma vez que os romanos o tomaram por concorrente de
César. Nessa caminhada de luta até ao Presépio original, Barioná cruza-se com a
história de muitos homens, com diferentíssimas motivações de vida. Nessa
caminhada de crescimento interior, um dos Magos dá-lhe o mote para a
transformação, a partir de dentro: «Tu
sofres e, no entanto, o teu dever de
homem é esperar. (...) Porque o
homem é sempre muito mais do que aquilo que é».
Para seu espanto, o que mais o transfigurou foi o olhar
paciente e incrivelmente humilde dos pais do Menino que atraía multidões sedentas
de milagres, de soluções rápidas para o dia-a-dia, tudo motivos desprezíveis e
mesquinhos para Barioná, de gente que se esquivava a assumir o rumo da
história, cedendo à cobardia da superstição paternalista.
A evolução interior tocou-lhe tão fundo que nem hesitou
em entregar a vida pelo Bebé de Belém, a fim de salvar o seu povo. E deixa à
mulher a mensagem mais marcante que um pai pode deixar ao filho pequenino, que já
não chegaria a conhecer: dizer-lhe que o pai morreu na alegria, porque
desistira de se bater pela esterilidade, oferecendo a vida para que novas vidas
pudessem iluminar o futuro da humanidade.
No olhar da jornalista portuguesa acreditada
junto do Vaticano – Aura Miguel – a peça interpela-nos porque: «Barioná, o chefe da
aldeia, era um homem recto e justo. Entrincheirado nas suas razões,
considerava-se “o Senhor da vida e da morte”. Proclamava que “Deus nada pode
contra a liberdade do homem” e, assim, gradualmente, foi endurecendo o seu
coração contra tudo e contra todos, com a promessa de que “nunca dobraria o
joelho diante de ninguém”. Só que, imprevisível, um grande Acontecimento
irrompe pela sua vida.
E, quando, pela aldeia, a caminho de Belém, passam os
Reis Magos, um deles diz-lhe: “Tu sofres e, no entanto, o teu dever de
homem é esperar. (...) Porque o homem é sempre muito mais do que aquilo que é”.
O rei Baltazar confronta Barioná e convida-o a caminhar na esperança, sob pena
de ficar a “ruminar o instante fugaz, olhar para o seu umbigo de forma
rancorosa, arrancar do seu tempo o futuro e encerrá-lo ao redor do presente”.
Sobre o percurso de liberdade de Barioná (…) também nós podemos ficar bloqueados na medida do
instante e, aflitos com as preocupações do presente, duvidarmos que somos feitos de
esperança, capazes de estabelecer um nexo com o Todo que dá sentido
à existência.» (in RR on-line
2011-12-09).
Como presente de
Natal a cada um, sugiro esta peça que abre o caminho à Esperança, anunciada a
todos os homens de Boa Vontade, ano após ano, desde há dois milénios.
BOAS-FESTAS a todos.
Maria Zarco
(a preparar o
próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
______________
(1) No Teatro da Trindade,
ao Chiado, até 23 de Dezembro. Sessões
de Quinta a Sábado:21h00 e ao Domingo: 16h00. Localização: http://maps.google.pt/maps?hl=pt-PT&tab=wl
Site http://teatrodoourives.blogspot.com/ http://www.facebook.com/Teatro.Ourive
COMPRA
DOS BILHETES: na FNAC,
na TicketLine Tel:
707 234 234, www.ticketline.sapo.pt; ou nas Bilheteiras do Teatro da
Trindade:
Horário: Terça: 14h às 20h; Quarta a Sábado: 14h às 22h; Domingo: 14h às 18h
Tel: 213 420 000 | 92 798 28 34; Email: bilheteira.trindade@inatel.pt
Descontos: às Quintas é preço único de 5€ enquanto nos outros dias varia entre 8€ e 14€; Associados da Fundação INATEL, Jovens (-25 Anos), Grupos (+10 Px), Seniores, FNAC.
Horário: Terça: 14h às 20h; Quarta a Sábado: 14h às 22h; Domingo: 14h às 18h
Tel: 213 420 000 | 92 798 28 34; Email: bilheteira.trindade@inatel.pt
Descontos: às Quintas é preço único de 5€ enquanto nos outros dias varia entre 8€ e 14€; Associados da Fundação INATEL, Jovens (-25 Anos), Grupos (+10 Px), Seniores, FNAC.
Ficha
Técnica
De: Jean-Paul
Sartre.
Encenação e dramaturgia: Júlio Martín da Fonseca.
Figurinos: Sílvia Perloiro
Elenco: (Barioná) José Nogueira Ramos, (Sara) Sara Ideias, (Baltazar) José Simão, (Lelius) José Sebastião, (O Publicano/Simão) Gonçalo Sarávia, (O Anjo) Ana Sofia Santos, (O Feiticeiro) Ricardo Abril, (Caifás) Manuel Vieira, (Jerevhá) Nuno Cortez, (Shalam) João Pires, (Paulo) Nuno Torres, (Mulher) Célia Santiago, (Coro/Multidão) Alexandra Pato, Diana Resende, Eduardo Pereira, Hermínia Resende, João Ramos, Maria Muge, Mariana Fonseca, Sofia Caetano e Vitor Procopio.
Produção executiva: Isabel Avillez - Sofia Sá Lima
Produção: Duc in altum | Teatro do Ourives
Apoios: Associação Vale de Ácor
Classificação: M/12
teatrodoourives@gmail.com
Tlm: 91 910 26 70
Encenação e dramaturgia: Júlio Martín da Fonseca.
Figurinos: Sílvia Perloiro
Elenco: (Barioná) José Nogueira Ramos, (Sara) Sara Ideias, (Baltazar) José Simão, (Lelius) José Sebastião, (O Publicano/Simão) Gonçalo Sarávia, (O Anjo) Ana Sofia Santos, (O Feiticeiro) Ricardo Abril, (Caifás) Manuel Vieira, (Jerevhá) Nuno Cortez, (Shalam) João Pires, (Paulo) Nuno Torres, (Mulher) Célia Santiago, (Coro/Multidão) Alexandra Pato, Diana Resende, Eduardo Pereira, Hermínia Resende, João Ramos, Maria Muge, Mariana Fonseca, Sofia Caetano e Vitor Procopio.
Produção executiva: Isabel Avillez - Sofia Sá Lima
Produção: Duc in altum | Teatro do Ourives
Apoios: Associação Vale de Ácor
Classificação: M/12
teatrodoourives@gmail.com
Tlm: 91 910 26 70
Também vi a peça, e gostei.
ResponderEliminarO seu comentário é excelente, na linha daquilo a que nos habituou.
fq
Obrigadíssima, FQ, pelo comentário, aproveitando para lhe desejar Boas-Festas, MZ
ResponderEliminarMuito bom, MZ. Excelente comentário. Que de certeza bate certo com a peça (que não sei se terei tempo de ir ver). Mas fiquei verdadeiramente curiosa. Confirmo, uma vez mais, que quem "foge" de Deus, é muitas vezes quem mais perto está dele. Belo texto para a época que estamos a viver. Bjs. pcp
ResponderEliminarGira a tua observação sobre quem foge de Deus e de tantas outras realidades marcantes na vida... Bjs, MZ
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