27 janeiro 2012

Textos dos dias que correm

eu ligava então o computador e repetia desoladamente o gesto de sempre, procurando no génio alheio uma ponta de redenção para o meu esforçado poema. a primavera anunciava-se lá fora, contornando esquiva a esguia janela, mas os meus dedos não sabiam, nesses dias, procurar o pólen improvável que sempre nasce do esforço mais devotado, quase a possível terminação para quem sempre sonhou com a taluda (o contrário, infelizmente, seria todo um outro poema, com pouca cor, algum choro e decerto ranger de dentes). por entre erros de métrica e formalismos inestéticos, os dedos martelavam impiedosamente esse betão que podem ser as letras, em dias maus, quando  revelam todo o seu mau fígado e pior coração. coisas da ordem dos factos, tentava convencer-me, dedilhando o teclado e varrendo, nunca é demais dizer, o tal génio alheio, os tais que têm coisas para escrever vindas do turbilhão, do desalinho da alma, do escuro que brilha. felizes esses infelizes, escrevem coisas com estética e preceito. pior seria, tu como eu sabes bem, escrever sempre em esforço, ter algures no deserto interior um oásis em potência, mas nem arte nem ciência para o fazer florir, pelo menos em tempo útil. por isso te chamas inverno, mesmo gostando de verão, mesmo se tantos encontram o teu lugar muito mais nos outonais campos da primavera (ou será ao contrário..?). coisas da ordem dos factos, incontornáveis tal como escrever esta palavra - ia dizer: nestes tempos. melhor seria lembrar o ruy belo e a sua famosa e solene declaração, cheia de pujante atitude, em vez da pusilânime contenção  que a vida moderna aconselha. sim, rui, também eu 'odeio este tempo detergente'. ironia biográfica, se porventura conhecessem quem por detrás deste matraquear esforçado displicentemente se esconde. ironia? só da mais fina. que o tempo não está para cedências ao deus menor da velocidade sem sal. e assim nos quedamos, em castelhano e tudo, que o tempo escasseia e o poema sobeja. devaneios à sexta quem os não tem? fica assim manco o poema, à falta de um encerramento condigno. como a vida que teima em equilibrar-se em menos pernas do que as que te são devidas pelo grande vendedor de ilusões. vende detergente, velocidade, ferro em brasa, coisas sem préstimo ou essencialidade. 

resta a escrita, o esforço, o resto que a ninguém aproveita, velharias civilizacionais. resta uma casa, um rosto, a distância murada para a fealdade, um nome, uma ideia louca. 

resta-te a liberdade.



Do nosso saudoso amigo gi. Texto tirado daqui, cuja reprodução foi devidamente autorizada.

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