23 outubro 2012

Crónicas de um universitário tardio

Hoje era dia de Duas Últimas - e o meu querido amigo fq irá perdoar-me a falha. Um pico de trabalho matou-me a inspiração, pelo que tive de improvisar.
Na semana passada, talvez, falei na dificuldade em fazer um trabalho para a cadeira de Poéticas Contemporâneas. Entre outras coisas, a recensão de caso poderia versar um objecto comunicacional forte. Temas vagos, para um engenheiro... 
Decidi publicá-lo aqui, num assomo de valentia. Talvez só hoje tenha feedback do professor, pelo que não sei a qualidade nem a valia do escrito. Seria mais fácil escondê-lo, se tivesse má nota, ou só o revelar se fosse louvado pelos corredores da universidade. Mas eu sou assim...

JdB

***

 (...)

O lema: Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!
O objectivo: usando os jornais e as redes sociais convocar o maior número possível de pessoas para, no dia 15 de Setembro, o país se encher de cartazes de protesto contra as medidas de austeridade decididas pelo governo de Passos Coelho.
Inicialmente prevista para Lisboa, as manifestações alastraram rapidamente a várias cidades do País, como sejam Viseu ou Loulé, Funchal ou Covilhã, Ponta Delgada ou Marinha Grande.
Para calcular a multidão envolvida em Lisboa foi usado um método comum: a área ocupada pelos manifestantes e a densidade de pessoas nessa área. Os números divergem. Os mais optimistas falam de seis pessoas por m2, os mais realistas  apontam para apenas duas pessoas.  Números redondos, a prudência aponta para as 300 a 400  mil pessoas.
(...)
Alguns exemplos dos imensos cartazes que circularam pela capital:
  •                       Os próximos cortes são os vossos (com dois tomates desenhados):
  •                       Coelho na brasa
  •                       Contra os ladrões marchar marchar
  •                       Só os beijos nos taparão a boca
  •                       Tirem a farda, juntem-se ao povo
  •                       O melhor do mundo são as crianças, e esta vai emigrar

Escondido na multidão, poucos deram por um cartaz, transportado por um grupo heterogéneo de pessoas (homens, mulheres, crianças, jovens, adultos) que não continha qualquer frase ou imagem. De facto, era apenas uma enorme folha de papel em branco.
  
                                                (Jorge Antunes, jornal Clarim das Beiras, 22.09.12)        

Tal como a rapariga fotografada a abraçar um polícia de intervenção, poderia este cartaz despido ser um símbolo?

Os dicionários definem manifestação como sendo expressão pública e colectiva de um sentimento ou de uma opinião. Uma manifestação pretende comunicar algo. Esta comunicação específica é materializada em dois factores principais: 1) um grupo de pessoas empunhando cartazes, sendo este conjunto em número suficiente para provocar impacto visual; 2) palavras de ordem proferidas num volume suficiente para provocar impacto sonoro. 

Podemos recuar a 1974 para nos confrontarmos com a expressão maioria silenciosa associada a uma eventual manifestação. No entanto, mesmo essa teve som e imagem. A expressão silenciosa foi, por isso, uma metáfora.

O que significa, então, numa manifestação onde se empunham cartazes com frases de incitamento à revolta, frases jocosas ou frases de desespero, uma cartaz todo em branco, empunhado por um conjunto de pessoas que não evidenciavam diferença substantiva relativamente aos seus semelhantes?

Não sabemos se o grupo de pessoas que empunhava o cartaz, vazio e ausente de qualquer mensagem escrita, gritava palavras de ordem. O jornalista não considerou importante referi-lo, pelo que podemos depreender que a ausência de palavras escritas foi mais importante na sua observação. Quer dizer, o impacto visual (de uma inexistência) venceu o impacto sonoro (de outra eventual inexistência) – e chamou à atenção. No colorido dos diversos cartazes ressaltou a brancura de um único. Uma espécie de less is more arquitectónico aplicado ao campo da manifestação.

Diz-nos a ciência que o branco é luz e a soma de todas as cores.  Diz-nos a tradição que o branco está associado à pureza. Talvez haja mesmo quem associe o branco absoluto (uma expressão não científica) ao silêncio.

No âmbito desta manifestação, branco seria, então, metaforicamente o nada, ou a soma de todos os sons? Um cartaz em branco seria a inexistência de queixa, de raiva, de desespero, ou seria o somatório de todos os protestos, de todos os lamentos, de todas as indignações? Uma tela em branco seria a indiferença, ou o lugar geométrico da pureza (nas várias acepções da palavra) de todos os manifestantes, de todas as motivações?

O jornalista relatou que não viu ou que viu algo que não existia. Não mencionou que não ouviu, porque o ruído ambiente esmagou o hipotético silêncio. A (ausência de) imagem venceu (a ausência) o som.

Quanto ao que o grupo quis comunicar, só perguntando-lhes...

2 comentários:

Anónimo disse...

Este texto, para além da qualidade literária a que já nos habituou, prenuncia uma veia filosófica... gostei das questões deixas em suspenso e das conclusões tiradas. Nada de igual me ocorreria, confesso. Boa, JdB. pcp

Anónimo disse...

Num comentário tardio, o meu aplauso pela magnifica recensão filosófica!
Abr
fq

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