29 janeiro 2013

Crónicas de um universitário tardio

6ª feira passada entreguei o meu trabalho de Poéticas Contemporâneas, cuja nota ainda não sei. Partilho uma parte com os resistentes que quiserem chegar ao fim...

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o panoptismo e a fábrica do futuro
ou
como reduzir os níveis de entropia nos sistemas produtivos


1. Introdução
Uma fábrica rege-se por princípios económicos fundamentais e comuns a todas as organizações com fins lucrativos.  Não obstante as preocupações de ordem social, de valorização da pessoa, do respeito pelo seu crescimento como ser humano e como trabalhador, o seu objectivo poderia resumir-se, numa versão forçosamente redutora, a algumas ideias chave: redução de custos, aumento de competitividade, maximização dos recursos, rentabilização do equipamento, flexibilização.  Se o apego ao sintético nos obrigasse a usar uma palavra só, escolheríamos esta: eficácia. Paralelamente a estes factores há, obviamente, a qualidade do produto fabricado, o cumprimento das normas do ambiente, da segurança e da saúde no trabalho, o estabelecimento de parcerias com fornecedores e clientes, a formação dos colaboradores, a actualização tecnológica, o respeito pelas partes interessadas
Tudo isto concorre, no fundo, para que a fábrica, no seu sentido lato de organização com fins lucrativos, seja competitiva, ganhe quotas de mercado, ambicione a exportação, a internacionalização, crie um nome que seja respeitado num mundo global onde as fronteiras se esbateram, numa Europa que vê o seu parque industrial reduzir-se lentamente, como uma folha de papel que se esboroa exposta aos ventos de mudança.
Uma fábrica é apenas, na maioria das vezes, uma espécie de braço armado de uma empresa mais vasta onde convivem o Marketing, a Contabilidade, os Recursos Humanos, as Vendas, etc. Para efeitos deste trabalho não nos interessa se a fábrica é um centro de custo, se gera lucro, qual as regras financeiras ou contabilísticas que se lhe aplicam. O que nos interessa é uma visão simples desta realidade: uma fábrica é uma unidade, composta por pessoas e máquinas, que tem de produzir com a máxima qualidade e segurança, no menor tempo possível, com uma flexibilidade total.

2. Conceitos
2.1. Fábrica e linhas de montagem
Diz-nos uma definição que uma fábrica é uma empresa destinada à transformação ou conservação de matérias-primas ou à transformação de produtos semifinais em produtos finais.
Por outro lado, uma linha de montagem é um espaço onde se executa um conjunto de operações elementares distintas, tendo em vista a montagem de um ou vários produtos. Estas linhas são compostas por um conjunto de postos de trabalho ligados entre si.
A produção em fluxo contínuo é a chave de todos os sistemas de organização do trabalho numa instalação fabril.  A cadência, a entrada e a saída são os pilares da linha de montagem, cujas vantagens são:
  •  resultados muito eficientes;
  •  menores custos de manipulação do material;
  •  operações muito simplificadas, que permitem a utilização de mão-de-obra pouco qualificada (barata);
  •  pequenos stocks intermédios;
  •  simplificação do controlo da produção (o sequenciamento baseia-se quase só́ na definição de uma taxa de produção).

2.2. A entropia e as equipas
Na termodinâmica, a entropia está vulgarmente associada à quantidade de ordem, desordem e/ou caos num sistema.  Por outro lado, a entropia, que pode reduzir-se por acção externa, é (também) uma medida da desordem no sistema; quanto maior a entropia, maior a desordem. De acordo com a 2ª lei da termodinâmica, a entropia do Universo tende para um máximo.
Paralelamente, em termos de gestão de recursos humanos (e lembramos que o âmbito deste trabalho é uma fábrica, uma unidade fabril, um microcosmos no mundo laboral actual) tem sido de alguma forma evidente que alguns sistemas humanos, deixados em roda livre, isto é, sem controlo ou disciplina, tendem para o caos, para a desordem. No fundo, como se uma linha de montagem fosse a replicação, a uma escala miniatural, do Universo.
Obviamente que esta ideia-chave não se aplica a toda a realidade humana de uma unidade fabril onde coexistem técnicos ligados ao desenvolvimento de novos produtos, ao controlo da qualidade, à reparação dos equipamentos indispensáveis à boa fabricação dos produtos acabados, à monitorização da saúde dos colaboradores. Para estes, ainda que enquadrados por regras e princípios, a liberdade existe, isto é, há alguma amplitude na forma como entendem gerir o seu tempo, organizar o ritmo/posto de trabalho.
Ora, muitas destas áreas são serviços de suporte, existem com o objectivo de apoiar o coração deste corpo produtivo. Poderíamos chamar a este órgão fulcral e determinante o departamento de produção – não mais do que o conjunto de pessoas a quem é atribuída a responsabilidade de fabricar, de acordo com instruções claras e inequívocas em termos de especificação do produto, prazos de execução e quantidades planeadas, o que é necessário para abastecer o mercado, seja o mercado do consumidor final, seja o mercado da organização que se situa a jusante.     
Apesar da sofisticação mecânica de muitos sistemas produtivos fabris, o facto é que a mão-de-obra humana ainda desempenha um papel importante. A automação das várias tarefas é, para uma enorme quantidade de unidades fabris, uma relativa miragem. Com as actuais exigências de redução de custos, aumento de competitividade, maior flexibilidade, etc., a autonomia das equipas/grupos de trabalho, tão em voga nos últimos anos com os conceitos de lean manufacturing, TPM (Total Productive Maintenance), toyotismo, é menor.  Por outro lado, a equipa ou grupo de trabalho (pessoas que realizam em conjunto tarefas ou  missões concretas) não são, ao contrário da família, da pequena comunidade aldeã, ou do grupo étnico, equipas naturais, mas artificiais. Como conseguir, então, um nível de produtividade e de eficácia nestas equipas multidisciplinares, artificiais?
Citemos uma frase, de cujo autor falaremos mais adiante: as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas.

3. O mundo de hoje
Em meados do séc. XX, George Orwell publicaria Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Em Airstrip One, uma província de Oceânia, e local principal onde se desenrola a história, uma profusão de posters invade a cidade. Neles, o retrato do líder vem acompanhado da frase Big Brother is watching you.
O mundo de hoje é orwelliano, ainda que nem sempre saibamos quem é o Big Brother, ou o conceito se divida por uma quantidade imensa de pessoas ou organizações que nos vigiam. Entre a saída de casa e o regresso, doze horas depois, somos observados em permanência: numa bomba de gasolina, numa rua, num banco, num parque de estacionamento. Em qualquer estabelecimento podemos ser confrontados com a frase que nos sugere que sorriamos, porque estamos a ser filmados, frase que denota um olhar invisível pousado em cada um de nós. Mesmo que não saibamos quem nos observa, temos a consciência dessa possibilidade, e o nosso comportamento molda-se a essa hipotética certeza. Esta possibilidade impressiona mais a imaginação do que os sentidos.   
O conceito de privacidade desfaz-se nos dias de hoje  A nossa intimidade é revelada nas redes sociais – em particular no facebook. Esta exposição é irreversível e as nossas actividades profissionais ou de lazer, os amores e desamores, os gostos e as preferências, os conhecimentos e fotografias ficarão para sempre num mundo etéreo, acessível a pessoas cujos rostos não conhecemos mas que nos conhecem, porque tiveram acesso aos nossos passos, à nossa intimidade revelada. Apesar desta exposição, que atingiu já o ponto de retorno, o facebook tem um tremendo sucesso, remetendo os não aderentes para uma espécie de infoexclusão.
Noutra dimensão, centenas de candidatos perfilaram-se num balcão, ao longo dos últimos anos, para se inscreverem num programa onde são filmados 24 horas por dia, expostos aos olhos de uma multidão anónima que liga as televisões num voyeurismo obsessivo.  Hoje, ao contrário do 1984 de George Orwell, os vigilantes somos todos nós, que espionamos os passos dos participantes anónimos. O que antes era temido – o controlo e a vigilância – e também o que era protegido – a privacidade e a intimidade – tornam-se objectos de fascínio. Trocou-se a privacidade pela fama. A sociedade de hoje, subordinada ao conceito do sou visto, logo existo, é dominada por um olhar omnividente, que vai da proliferação dos programas televisivos de voyeurismo explícito à epidemia da vigilância que multiplica as câmaras encontradas a cada passo que damos. Vive-se hoje numa sociedade escópica que tem como espectáculo a disciplina e o controlo. O olho que vigia e pune é o mesmo que possibilita a fama.
É com esta realidade que olhamos para os sistemas produtivos, em particular para as fábricas, onde uma miríade de pessoas, artificialmente agrupadas, transformam matérias-primas em produtos acabados. É preciso disciplinar esta heterogeneidade humana, criar condições para que a sua eficácia se eleve a níveis de excelência. É preciso organizar esta multiplicidade de gente que já vive e convive com uma sociedade distópica e controlada, gente que é observada sem o querer, mas que também se expõe voluntariamente à observação. É preciso organizar esta diversidade de gente que se perfila numa linha de montagem para fabricar ou transformar produtos, que se organiza para satisfazer critérios de produtividade, de rentabilidade, de eficácia, de serviço ao cliente.
Que ferramenta temos ao nosso alcance para organizar esta força de trabalho que, deixada em roda livre, tenderá para a desordem, para o caos? Qual o modelo que leva um operário de uma linha a sair de sua casa e a entrar na sua fábrica e a perceber que esta não é mais do que a extensão daquela, que não há ruptura, não há diferença substantiva na forma de viver, de pensar e de agir, que a única evidência visível de mudança está na eventual existência de um uniforme...
Este modelo, que é a chave para o imbróglio humano, chama-se panóptico

...

8. Conclusão
Poder ver tudo, ter a sensação de se ser visto em permanência. Paredes transparentes, em vidro, que nada escondem, tudo revelam. Por trás, câmaras ou pessoas, pouco importa. A sensação da observação num hipotético sentido biunívoco, porque não sabemos nunca se observamos mais do que somos observados, ou, se ao observarmos os outros, nos observamos a nós próprios. Uma vida feita de dias iguais, sem ruptura de ambientes, a conviver com um dispositivo incorpóreo, virtual, insinuante, que torna o exercício do poder mais rápido, mais leve, mais eficaz. A disciplina, essa técnica para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas, a vencer o caos, a desordem, a artificialidade das equipas. A disciplina ao serviço da eficácia da unidade, de um todo que é maior do que a soma das partes.  A disciplina que faz crescer as aptidões de cada um, que as coordena, que multiplica a capacidade produtiva, que alarga - sem enfraquecer - as frentes de ataque. A disciplina como tecnologia.
O panóptico...

JdB

3 comentários:

  1. Gostei imenso. Muito inteligente e para mim tb muito útil.
    Abr
    fq

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  2. Belíssimo texto, João. Muito, muito bem observado e maravilhosamente escrito. Espero que o FCM lhe dê uma bela nota porque vc merece! Bjs. pcp

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  3. Bravo! Fiquei um pouco deprimida com esta visao panoptica ... ainda bem que ha' o escape da criatividade (ela propria caotica).

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