29 maio 2013

Duas últimas

Se o mundo fosse perfeito e aos meus amigos fosse pedida a infinita caridade de me caracterizarem, alguém teria de ser verdadeiro e afirmar sem rebuços: sempre foi um nostálgico. O resto, o bom e o mau, poderia ficar para segundas núpcias, que na hora da morte somos beneficiários de uma benevolência que nem sempre conhecemos em vida. Todos terão a liberdade de acrescentar grande, reservando-se para cada um o local onde querem colocar a palavra, que antes ou depois é toda uma diferença. 

Seja tempo de ócio ou de negócio, o meu cérebro não carece de estímulos para se atirar saudosamente às coisas do passado. Vem este post - com um atraso de vinte e quatro horas relativamente aos meus compromissos - a propósito de uma frase que li num blogue que frequento: em muitos de nós existe uma estranha nostalgia, a de um mundo destituído de técnica. A palavra nostalgia - talvez mesmo os seus derivados - activa um ponto específico no meu cérebro e o meu apelido torna-se pavlov, o homem cujo cão salivava ao tocar de uma campainha. A minha agenda, companheira fiel dos meus dias organizados, mencionava IRS, mas eu já não estava aí, porque, em boa verdade, quem é o ser humano que prefere ler um diário da república a deglutir uma doçaria conventual? 

Sou nostálgico mas, confesso, nunca me ocorrera a nostalgia de um mundo destituído de técnica. Não sinto falta do tempo em que não havia internet, telemóvel, satélites, previsão meteorológica fiável, discos compactos, aquecimentos centrais e frigoríficos que regurgitam cubos de gelo. Nem sempre sinto falta de um tempo mais fácil, menos solicitado, menos ruidoso, substancialmente mais lento. As minhas nostalgias são de um conjunto de sensações, independentemente da técnica - ou que eu, pelo menos, torno independente: é o prazer de receber uma carta, de manuscrever outra, de uma mão que se dá na escuridão de um cinema, de um olhar taquicárdico, de enfrentar junto uma onda de equinócio numa valentia juvenil. A minha nostalgia é de sensações próprias, não de um mundo vasto. O universo das minhas nostalgias é, roubando o título a um livro, o fundo da minha rua.

Sou, e nisso assemelho-me ao resto da humanidade, um viandante, numa peregrinação permanente do caminho certo para o meu corpo e para o meu espírito. Há quem me negue trouxas de ovos com a mesma sapiência com que me identifica as procuras, o que não deixa de causar impressão. Talvez toda esta nostalgia, não representando um ódio ao tempo presente, tenha uma explicação simples e prosaica, retirando encanto a algo que se supunha misterioso. Um dia, ao cair do sol por trás dos pinheiros que desaparecerão, tudo isso me será elucidado, e eu sorrirei, certo de que o tal fascínio morre como um homem bom - em paz e acompanhado. 

Deixo-vos com um slow, uma das minhas nostalgias. Dancei muitos, ouvi muitos, estremeci e senti o afastamento em muitos, porque uma pista é a metáfora da vida a dois, e a dança é a conjugalidade em movimento. Não atentei na letra, pelo que não sei de que fala. Em adolescente dançava e sentia um corpo que se juntava, um cabelo que roçava, uma imobilidade de transbordante contentamento, mas não percebia o que se cantava. Em bom rigor, também não queria saber.

JdB

   

2 comentários:

  1. Desconfio muito da nostalgia. Desconfio sempre do passado que me invade o presente ou do futuro que me distrae dele.
    Nem um nem o outro existem, a não ser nas nossas cabeças que os alimentam e distorcem a seu bel prazer.
    A eternidade não é passado nem futuro, apenas um infinito fluir de presentes.

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  2. Gostei imenso do seu texto, acima de tudo da forma como brinca com as palavras.
    Nostalgia não sei bem o que é, não tenho nostalgias, acho que tenho apenas saudades do tempo em que fui feliz, ingenuamente feliz.
    Pegando no comentário acima, tendo a concordar, porque nada há mais traiçoeiro do que a nossa memória e é dela que as nossas saudades e nostalgias se alimentam. Arriscamo-nos, assim, a mais uns momentos de solidão instrospectiva, onde revivemos segundos, meses, anos que nunca existiram.
    Vale a pena? Ou será que até nos inibe a capacidade de apreciar o presente?

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