Um dia, há muito tempo, encontrei uma fotografia do irmão mais novo de Napoleão, Jerôme (1852). Disse então para comigo, com um espanto que, desde então, nunca consegui reduzir: "vejo os olhos que viram o Imperador". Por vezes falava desse espanto, mas, como ninguém parecia partilhá-lo nem sequer compreendê-lo (a vida é feita de pequenas solidões), esqueci-o (Roland Barthes, in A câmara clara).
Há no olhar para o passado uma dimensão pedagógica que o pensamento incauto nem sempre descortina. Discernir o que já foi e, nesse discernimento, sentir apreço pela modernidade ou ser vencido pela nostalgia, nem sempre é um sorriso que se abre ou um cilício que se aperta. Por vezes é apenas o desejo, talvez mesmo a necessidade, de percebermos quem somos, o que procuramos, do que fugimos. Será, porventura, um desejo pueril de fechar casinhas do entendimento próprio, de dar explicações às coisas, sentir que temos menos áreas desconhecidas e, mesmo assim, ter a certeza de que não se perdeu o encanto de um terreno por desbravar.
Nem sempre a abundância e a diversidade são factores de sossego. Nesse sentido, cito amiúde a frase francesa l'embarras du choix, apesar da sua origem. Há muitos anos fiz uma viagem com dois equipamentos a tiracolo - uma máquina fotográfica e uma máquina de filmar. A posse dos dois aparelhos era recente e em mim tudo se baralhava: filmo ou fotografo? Ao longo de vários dias turísticos fiz tudo. Parei para fotografar, filmando depois o que tinha fotografado; cheguei mesmo a fotografar o que já estava registado em filme. Em tempo de abastança confundi-me, sem saber o que agarrar.
Nos anos que se seguiram fotografei muito - sempre com um jeito moderado - não filmei quase nada. Ouso ainda dizer que nesse período de tempo vi muitas fotografias, poucos filmes me interessaram, mesmo os que haviam sido feitos por mim e/ou que se reportavam a pessoas que me são próximas, vivas e de saúde. Na observação da minha contemporaneidade a imagem em movimento pouco me interessa. Interessa-me a fotografia e, sobretudo, o retrato. Se o
meu mundo fosse perfeito eu fotografaria pessoas (com chapéus, que cada um tem os seus fetiches) desde que elas me deixassem aproximar o bastante para encher o
fotograma sem recurso a lentes potentes.
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Auto-retrato do homem de Azeitão |
Esta opção decorre de uma dimensão apenas estética? Não me parece. Consigo dar-lhe uma explicação mais psicológica? Tenho dúvidas. E no entanto estou certo do que digo: em mim a fotografia vence o filme, o retrato derrota a paisagem. Num filme - seguramente por limitação minha - vejo apenas a reprodução de um acto, ou de uma sequência de actos: é uma criança que sopra velas, um ciclista que vence um declive, um fogo de artifício que deslumbra uma cidade. Há ali uma espécie de constatação de um facto, sem abertura para decifração de estados de alma, porque a dinâmica inerente elimina a visão além do imediato. Pelo contrário, num retrato tudo está em aberto, o campo da imaginação é quase infinito: quem é o retratado? O que pensa? O que o faz rir ou chorar? Quais são as rotinas que tem em casa, como beija afectivamente, como acaricia um corpo? Como estuda, como faz os trabalhos de casa, com que rigor arruma uns sapatos de ir para a escola? O que escondem aqueles olhos verdes ou um cabelo revolto? Para onde irá, o que será ou já foi?
Olho para trás, para uma máquina de filmar arrumada com um rigor de arquivo morto, e penso que só hoje, passados tantos anos, me debruço sobre este tema, fingindo ser interessante. O livro do Barthes despoletou o pensamento, obviamente... Mas, insisto, tem de haver uma ideia por trás desta opção pela fotografia. Só me falta decifrá-la, porque o ser só estética é-me insuficiente...
JdB