[...] De
facto, embora quisesse trocá-la, todavia não queria perder mais do que a ele,
e não sei se queria fazê-lo mesmo por ele, como se diz de Orestes e Pílades,
se não é ficção, que queriam morrer um pelo outro, ou ambos ao mesmo tempo,
porque para eles pior do que a morte era não viverem o mesmo tempo. Mas em
mim não sei que sentimento tinha nascido absolutamente oposto a esse, e havia
em mim um gravíssimo tédio da vida e medo de morrer. Creio que quanto mais o
amava, tanto mais odiava e temia a morte, que mo tirara, como atrocíssima
inimiga, e julgava que ela de repente havia de consumir todos os homens, já
que pôde consumi-lo a ele. Era eu exactamente assim, lembro-me. Eis o meu
coração, ó meu Deus, ei-lo por dentro; vê porque me lembro, tu, minha esperança
que me purificas da impureza de tais afeições, dirigindo para ti os meus
olhos e libertando da armadilha os meus
pés. Admirava-me de que os restantes mortais vivessem, visto que aquele,
que eu amava como se não houvera de morrer, tinha morrido e mais me admirava
que eu continuasse a viver depois de ele morrer, visto que eu era o outro
ele. [...][1]
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Lamento
profundamente o falecimento do teu amigo Flaco, no entanto entendo que a tua
dor não deve ultrapassar os limites do razoável. Não ousaria exigir de ti que
não sentisses o mínimo abalo perante o facto, embora isso fosse o ideal. Uma
tal firmeza de ânimo, contudo, apenas está ao alcance de quem já se alçou
muito acima das contingências da fortuna. [...] A homens como nós pode
perdoar-se que deixemos correr as lágrimas, desde que não em excesso, e desde
que nós mesmos as saibamos estancar. [...][2]
***
Venho enviar-te uma cópia da carta que escrevi a Marulo aquando da morte de um filho de tenra idade – morte que, dizia-se, ele suportou com quase nula coragem. [...]
“Estavas à espera
de consolo? Pois vais apanhar uma descompostura! Tanta cobardia tu mostras
pela morte do teu filho? Que farias se tivesses perdido um amigo? Faleceu-te
um filho, de futuro incerto, de pouca idade; perdeu-se apenas um breve espaço
de tempo! Nós próprios buscamos motivos de sofrimento, ansiosos por nos
queixarmos da fortuna mesmo sem razão, como se não fosse seu papel dar-nos
motivos de queixa;[...][3]
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[2] Cartas a Lucílio, de Lúcio Aneu Séneca, Livro
VII, Carta 63 (Fundação Calouste Gulbenkian, 2007).
[3] Cartas a Lucílio, de Lúcio Aneu Séneca, Livro XVI,
Carta 99 (Fundação Calouste Gulbenkian, 2007).
***
Agostinho de Hipona viveu entre
354 e 430 d.C.
Lúcio Aneu Séneca viveu entre 4
a.C e 65 d.C.
Estes dois textos (o de Séneca
desdobrado em duas cartas) foram redigidos com trezentos anos de intervalo.
Ambos se referem à morte - mais propriamente à reacção perante a morte – de um
amigo ou de um filho de tenra idade.
As confissões de Santo
Agostinho são o desnudamento da sua alma perante Deus. As cartas de Séneca são
o desnudamento do seu pensamento perante o interlocutor. São ambos escritos
intimistas, que revelam. É lícito compará-los, ou o exercício não é mais do que
colocar, lado a lado, alhos e bugalhos, sem saber o que fazer com a observação?
A expressão Ἀταραξία - ataraxia – que significa tranquilidade da alma, ausência de
perturbação, surgiria pela primeira vez no século IV aC. O conceito exprimia um
ideal de sabedoria, uma certa invulnerabilidade racional face aos desgostos de
vária ordem, às doenças, às mortes dos mais próximos, a outras desgraças.
Séneca usaria a este respeito a expressão tranquilitas
animi, título de um dos seus tratados. Para os estóicos a ataraxia seria a apatia, isto é, a serenidade
intelectual, o domínio de si, uma alma que se tornou insensível à dor.
Agostinho, por seu lado, chora
a perda do amigo. Não é fácil depreender que este chorar a morte de alguém é,
não só uma metáfora para o desgosto da alma, mas a realidade de uns olhos que
vertem lágrimas. O desgosto de Agostinho está bem reflectido na última
expressão transcrita da carta: e mais me
admirava que eu continuasse a viver depois de ele morrer, visto que eu era o
outro ele.
Face à mesma realidade – a
morte de alguém próximo - o que separa, aparentemente, um estóico de um
cristão? Como é vivido o desgosto, como se cumpre o luto que nos conduz à
superação da perda? A resposta poderia ser dada de uma forma quase paradoxal:
dentro de certos limites, o estóico não chora; dentro de certos limites, o
cristão chora. Quais são os limites?
Para uns e para outros, os limites do razoável.
Para um estóico, a alma tem de
atingir um estado em que se torna impassível perante a dor. É isso que Séneca
diz a Lucílio ou escreve ao amigo que acaba de perder um filho de tenra idade.
Para um cristão, o desgosto não tem de ser algo a que a alma é de certa forma
indiferente. O desafio não está em conseguir a apatia, mas em interiorizar a dor. Falamos do mesmo? A procura da tranquilitas animi é comum a uns e a
outros. Sendo o objectivo comum, talvez a diferença esteja no percurso: ganhar
uma certa distância aos desgostos da vida versus agarrar nesses mesmos
desgostos e dar-lhes um sentido. A pergunta mantém-se pertinente: falamos do
mesmo?
A morte é a única certeza que
temos na vida. Acreditar na vida eterna, como acreditaria Agostinho de Hipona,
ou acreditar no fim de tudo, como acreditaria Lúcio Aneu Séneca, pode marcar a
diferença. Acreditar na força individual para ganhar distância, ou acreditar em
Deus como fonte de consolo pode marcar a diferença. Acreditar na terra ou
acreditar no céu pode marcar a diferença.
JdB
***
Nota: este trabalho, entregue há uma semana, ficou inacabado, e disso dei conta à professora. Faltou-me o tempo - mas também o engenho e a arte - para redigir sobre a reacção dos estóicos e dos cristãos à morte. As diferenças são grandes. Acima de tudo, estou em crer, divide-os a existência do Céu, no que isso engloba a vida eterna, o abraço de um Deus que não é senão amor.
Pode estar inacabado, mas tem o essencial.
ResponderEliminarAbr
fq
Consigo perceber a necessidade de dividir, de esquematizar, de classificar, para melhor tentar entender, para melhor se situar, para melhor se enquadrar e pertencer, integrar.
ResponderEliminarNo entanto, parece-me que esta necessidade fundamental e genuína, acaba por, sem querer, prejudicar mais do que beneficiar.
Dá-me a sensação, que ao rotular e agrupar assim as ideias, pensamentos, comportamentos, logo pessoas, separamo-nos.
Isto é, sem darmos conta, criamos barreiras entre nós, dividimos, sectarizamos, em vez de unirmo-nos. Criamos estereótipos, classes, grupos, subdivisões, motivos e razões para nos afastarmos uns dos outros. Mesmo não querendo.
Além de que, (aparentemente) nivela e uniformiza, quando na verdade, a vida não é preto e branco, vinho ou água. Há uma enormidade de nuances e matizes, de cinzentos intermédios entre um estado e o outro, entre um limite e o outro. E esse enorme espetro de cor, dá riqueza, variedade, diversidade, sentido(s).
Por outro lado, subtilmente limita a natureza exploratória e intuitiva do ser humano.
Ao querer definir-se e situar-se num grupo - 'os católicos', por ex. - seja por uma questão de aceitação dos seus pares, seja por convicção e vivência profundas, seja por qualquer outra legítima razão, cultural, pessoal, social, etc, aparentemente limita o pensamento/acção a sair além daquilo que o grupo entende como certo, previamente estipulado e aceite. Impede de sair da caixa, de alargar a caixa, de mudar o formato da caixa, de pintar a caixa, etc.
Mas a caixa, pode-se tornar pequena, para tanta alteração, mudança, ajuste, aperfeiçoamento, perspetiva, inquietação, pergunta.
A questão será ter a flexibilidade e generosidade suficientes, para alargar os horizontes, mesmo dentro de um qualquer grupo, sem se trair a si próprio nas suas demandas, nem se deixar limitar pelos limites dos outros.
Se na verdade todos fazemos parte integrante de um Todo (independentemente de quem acredita em quê)do micro ao macro, uma só teia e trama interligada, numa complexa rede, quanto mais (nos) unirmos, melhor.
Melhor para um, melhor para todos.
Olhar o outro como uma parte de mim, pode fazer muita diferença.
Unir. Amor é também isso. União sagrada.
a.