23 maio 2014

Dos pequenos distúrbios



Por trás da potencial poesia deste filme há algo com que me irmano - e que nem sei, sequer, se lá está: pequenos incómodos que me revelam distúrbios internos, desalinhamentos de humores disfarçados de caturrices.

Volto atrás - ou sigo para outro lado análogo. Tenho um forte apreço - que se confunde, estou certo, com uma ligeiríssima obsessão - pelo meu espaço vital. Não falo do espaço temporal para ler ou escrever, para cozinhar ou passear no paredão meditando sobre os grandes desígnios do quotidiano. Não falo sequer do meu espaço para trabalhar ou para passar rápidos olhos pelos meus livros. Falo do meu espaço geográfico mais pequenino, o que me separa da pessoa que naquele preciso instante está ao meu lado. Exemplifico: nada há que mais me perturbe do que, ao balcão de uma repartição ou de um banco, alguém se colar ao meu lado espreitando por cima de mim ou, pior ainda, não tendo qualquer interesse no aperto a que me sujeita. É o contacto gratuito, sem finalidade nem objectivo. 

Como a maioria dos meus colegas de mestrado, sento-me sempre no mesmo lugar na sala, e os meus  motivos são prosaicos. Num dado dia era o disponível e, além disso sou canhoto, pelo que me convém estar do lado esquerdo do professor. Quinquilharias de raciocínio, diria. Um destes dias sentou-se ao meu lado um rapaz desabitual. Num instante invadia a metade que me cabe na mesa (área que não faz parte dos meus direitos formais), respirava quase em cima de mim, tocava-me ao de leve no braço interrompendo a professora para fazer valer um raciocínio. Estive a minutos de mudar de lugar, porque dizer-lhe o cavalheiro não se importa afasta-se e respeita o meu espaço poderia ser considerado rude. Ou demasiado abstruso para ele perceber.

Andar na rua ao mesmo passo que o transeunte vizinho é perturbador. O meu lado mais sinistro indigna-se que a pessoa em questão não altere o ritmo. O meu lado mais democrático sugere ser eu a fazê-lo. O meu lado mais inexistente aceita e valoriza a paridade da velocidade. É assim que eu sou. Não me orgulho, mas não ponho uma cinta de cilício para flagelar uma perturbação interna. Tenho manias, pequeninos desajustes que me afastam do convívio despreocupado dos meus mais próximos, embirro com coisas. O que me difere da multidão anónima? O à-vontade com que desnudo a alma, proporcionalmente inverso à facilidade com que aceito que me toquem para me contarem anedotas maçadoras, por exemplo. 

Mantenha-se uma distância de segurança entre as pessoas e os corpos respirarão melhor. Desculpem qualquer coisinha.

JdB   

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