12 maio 2014

Vai um gin do Peter’s?

Uma pequena mostra do tesouro acumulado pela corte dos Romanov (a partir de 1613) e da dinastia de Rurik que os precedeu, está patente na Gulbenkian, até 18 de Maio: «OS CZARES E O ORIENTE: Ofertas da Turquia e do Irão no Kremlin de Moscovo»(1).


As 66 peças em exposição são expressivas do gosto de duas das grandes civilizações orientais: a Otomana e a Persa no período safávida, nos séc.XVI e XVII, onde o relacionamento com a Rússia era cultivado ao detalhe para contrabalançar o relacionamento tenso e conflituoso com a Europa, sobretudo pelo lado da Turquia. Nada como as trocas comerciais para aproximar os povos e criar um clima amistoso. O intercâmbio de presentes entre as várias cortes imperiais, as visitas de cortesia dos Embaixadores para selar as alianças político-económicas deram origem à colecção de preciosidades, disponíveis aos milhares nos depósitos do Museu do Kremlin. A Portugal foi cedida uma parcela ínfima. Parece que quem da Gulbenkian se deslocou a Moscovo para ver a totalidade do património, ficou maravilhado e, simultaneamente, atordoado com a arrumação densíssima das peças, mal deixando reconhecer a beleza individual de umas e de outras.

Em contrapartida, na Fundação, gozam de condições expositivas excepcionais, com um enquadramento arquitectónico a fazer sobressair cada obra, per se, deixando-a respirar. O jogo de espelhos, a transparência das vitrinas de vidro no meio da sala, as paredes em redor vazias e em negro para criar um fundo neutro de realce dos muitos brilhos dos artefactos expostos, ou os focos luminosos a incidir apenas sobre o que está exposto, produz um efeito esplendoroso, como se tivéssemos entrado no interior de um estojo de jóias gigante. 

Tecidos, armas, ourivesaria, objectos e vestes de aparato, utensílios do quotidiano da vida cortesã dão uma ideia da magnificência das civilizações a que pertenceram. Vários dos têxteis provêm da Colecção Gulbenkian, como a capa de cavalo turca, posteriormente bordada na Rússia e exposta no átrio do Museu.

As 4 mini-secções temáticas ajudam a caracterizar os 200 anos em foco. Mal se mergulha na penumbra da sala, somos surpreendidos pelo ícone de Nossa Senhora do Leite (séc.XIV), cravado de pedrarias lindas sobre um revestimento de ouro a contornar a imagem da Mãe com o Menino ao colo. São sempre uns Meninos muito acordados os que posam na iconografia ortodoxa.


Note-se que «Icon of the Mother of God» é a tradução directa da denominação russa, menos dada às invocações marianas e aos títulos particulares que proliferam nas figurações ocidentais. 

I – HORDA DE OURO
Reúne peças de épocas mais recuadas, dos séculos XII e XIII, trazidas da Mongólia para a Rússia, na vaga de conquistas do Grande Khan. «Horda de Ouro» corresponde à expressão russa para referir a sumptuosidade da tenda onde se abrigava o quartel-general itinerante do conquistador. A ofensiva mongol acabou por aglutinar um vasto território de principados russos, dos búlgaros do Volga, dos persas e dos gregos, convertendo-se depois, habilmente, em plataforma mercantil entre o Extremo Oriente, a Ásia Menor e o Ocidente. A prosperidade económica da região favoreceu a simbiose entre as culturas orientais em contacto, como o demonstra a mistura de estilos nas peças emprestadas a Portugal.

II – IRÃO NO PERÍODO SAFÁVIDA
Confirmando os interesses comerciais comuns na partilha das rotas do Mar Negro ao Cáucaso, do Volga ao Cáspio, as embaixadas entre a Rússia e o Irão multiplicavam-se, recheadas de tesouros para selar as alianças estratégicas das potências asiáticas, muito ciosas a demarcar a sua zona de influência face às soberanias europeias, a iniciarem a constituição dos impérios ultramarinos. 
Gerindo equilíbrios mais amplos, russos e iranianos procuravam também manter uma convivência cordial com o Ocidente, evitando o empobrecimento das posições isoladas no xadrez geoestratégico global. 


Mini reportagem da SIC Notícias com entrevistas à Directora do Museu do Kremlin e à Comissária da exposição na Gulbenkian:


III – A TURQUIA OTOMANA
Desde os primórdios da formação do estado turco, no final do século XV, que a Turquia valorizou sobremaneira as relações diplomáticas com o seu grande vizinho euro-asiático, organizando visitas de Estado com poderosos séquitos compostos por representantes das finanças e do comércio e os altos dignitários religiosos com a presença dos próprios patriarcas ortodoxos, para além dos líderes políticos. Assim, os Czares foram obsequiados amiúde com ricas manufacturas preparadas nos melhores ateliers da capital – Istambul – ao longo dos séculos XVI e XVII. O facto é que durante aquele período, a Rússia recusou sempre integrar as alianças europeias anti-turcas, que bem a assediavam para obter os seus favores.

Nos objectos expostos, curiosamente, o relógio de bolso com esmalte e embutidos, datado de seiscentos, reveste um mecanismo de Genebra, provando o notável avanço do Ocidente a nível tecnológico.
Mecanismo relojoeiro suíço (séc. XVII) enriquecido por invólucro turco com ouro e gravuras em esmalte

O Império otomano apreciava enormemente as artes, mantendo uma vida cultural intensa, igualmente benéfica para a ourivesaria e joalharia, muito do gosto turco. As diferentes etnias reunidas no território do novo Estado contribuíram também para a diversidade do estilo artístico nacional.   

Objectos vindos da Turquia, usados pelo Kremlin como adornos nos actos oficiais,
em cerimónias religiosas e em campanhas militares.


Eloquentes do requinte dos ourives turcos. 

Peças de aparato para exibição do poderio bélico em paradas militares.

IV – A RÚSSIA DOS CZARES
As mercadorias e as ofertas turcas e persas sinalizam os tempos de intercâmbio pacífico e fecundo com Moscovo, influenciando a arte russa e consolidando as políticas de cooperação. Vários dos originais que chegavam aos domínios dos Czares eram, depois, enriquecidos pelos artífices dos Romanov, acrescentando a uma base já de si minuciosamente trabalhada e cintilante, o fulgor sofisticado da corte russa. Sobretudo nos têxteis e tapeçarias as apropriações e personalizações foram frequentíssimas.

Nada como uma boa exposição para viajarmos no tempo, explorando épocas remotas que, através da arte, melhor nos cativam e interligam com outras gentes, proporcionando uma comunhão incrível entre gerações de séculos e geografias bem distantes.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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 (1) http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Agenda/Exposicoes/Exposicao?a=4668

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