Em tempo, para muitos, de
descanso e de deixar fluir o pensamento com liberdade e horizonte, sobretudo
para quem goze as férias junto ao mar, vem a propósito o escrito de Miguel
Esteves Cardoso (MEC), a eleger como o verbo mais valioso na vida – salvaguardar. Salvaguardar para fazer
crescer e aprofundar. Ninguém como o MEC para dissertar com humor sobre o movimento
mais ousado e, simultaneamente, subtil da alma humana, quando se empenha em
manter um rumo para poder chegar a um destino, sem deambular em volta de si
própria, confundindo agitação com caminho realmente percorrido.
Numa imagem muito
expressiva, um jesuíta lembrava a uns amigos em começo de vida que, por mais
potente que fosse um veleiro, só conseguiria aproveitar bem o vento se o
skipper soubesse onde queria chegar.
Voltando à reflexão do
MEC: desafia-nos pelo confronto simbólico entre o agitador rebelde que hoje faz tanto furor e o continuador. Ou o criador-compulsivo
versus o guardião que procura valorizar
a opção onde mais e melhor se avança para um presente aprofundado e que pede –
como todo o coração humano – para superar a precariedade do aqui e agora, a fim de alcançar uma
certeza a que poderíamos chamar de futuro ou, melhor ainda, de eternidade. Essa
sim, uma reivindicação que revoluciona a existência humana, como nenhuma outra.
Só que por dentro, apenas afinando o
olhar. Parece tão pouco, tal a falta de algazarra e pompa, mas é tanto... A
ponto de o MEC ter arriscado um título insólito para uma sociedade viciada em
somar o maior número possível de novidades fogazes, a todos os níveis, viciada no
imediatismo e na adrenalina fácil, sem a menor motivação para apostar no
crescimento gradual, alimentado a paciência e constância. Nas palavras do
cronista: «Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer
perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam
boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os
seres humanos. (…) As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é
continuar.»
O que superabunda é o arranque espalhafatoso
dos arrivistas e a pose importante
dos eternos críticos, que se consomem na voragem da fama por um instante, para
depois tudo se esfumar em nada, como um fósforo.
É claro que a imagem de marca das celebridades também
ajuda a induzir-nos nestes erros de percepção infantis, sendo os Stones dos
casos mais flagrantes. Em boa verdade, o segredo que sustenta o grupo é o
oposto da imagem que cultivam em palco, entre a irreverência e a alegada
liberdade total – que são talvez os adereços
mais chiques e sedutores da nossa época! Só que, mal chegam aos bastidores,
ondem passam 99% da sua vida, e descontando o folclore do rol de amigas do Mick
Jagger(1) e mesmo assim…, entram numa disciplina
férrea, levando um dia-a-dia de enormes cedências, logo a começar pela forma
dolorosa e hábil com que aceitam trabalhar em equipa, apesar de se detestarem
q.b. Sim, especializaram-se em engolir sapos e elefantes com o maior dos fair
play, como se fosse coisa boa e facilzinha… A ponto de nenhuma tia-avó já ter
nada a ensinar-lhes, neste combate silencioso e duro, que nunca atrai aplausos!
Perseverança e combatividade, rigor e profissionalismo são, afinal, os talentos
bem escondidos e nada in, que lhes tem
permitido superar a natural tendência para a desagregação e o desaparecimento,
ou melhor dito: a morte. Não por
acaso, já são campeões de longevidade no universo híper volúvel do rock!
A palavra ao MEC:
Alimentar o Amor
Começar é fácil.
Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número
da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração
humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da
inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas
a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que
eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos
faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes.
Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.
É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.
É tão fácil ser rebelde. Fica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é
defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as
coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o
que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam
todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso
estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de
arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.
Miguel Esteves Cardoso, in «As Minhas Aventuras na República Portuguesa» (2)
Bom Verão a todos, com óptimas leituras!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) Até o vocalista foi descrito pela última
namorada norte-americana (que precipitou o fim da sua vida), como um homem híper
disciplinado. Lá está: conheceu em primeira-mão a faceta mais real do Mick, que só
passa nos bastidores.
(2) Uma edição da Assírio & Alvim, com uma
capa muito frondosa e verde, mesmo a saber a férias.
Sem comentários:
Enviar um comentário