Até ao final de Fevereiro, corre na Cinemateca Portuguesa(1) um
ciclo dedicado ao grande cineasta francês que atravessou o século XX: Robert
Bresson (1901-1999), conhecido como o poeta do rigor. Figura de referência no
meio intelectual parisiense, distinguindo-se na literatura, pintura e, mais
tarde, na Sétima Arte, revelou-se também um exemplo de civismo e de coragem
política, precisamente no período mais adverso do século XX francês: durante a
ocupação nazi. De estilo sóbrio, mas íntegro e desassombrado, as suas posições
claras contra as tiranias de Hitler valeram-lhe um ano num campo de
prisioneiros, na Alemanha.
Realizador do subtil, capaz de filmar a alma humana,
Bresson tem filmes extraordinários que valem sobretudo pela sua perspectiva
invulgarmente acutilante, profunda e original sobre a realidade. Apaixonado
pela vida, procurava captá-la em estado puro e intocado, buscando a essência
das coisas. Por isso, o ciclo se intitula «Robert Bresson: uma aventura
interior». As suas experiências cinematográficas privilegiaram a expressão
autêntica e primordial. A ponto de ter desistido dos actores profissionais,
substituindo-os por amadores, completamente genuínos e ainda não formatados em
academias. Chamou-lhes “modelos”, numa acepção que nada tem a ver com o termo, entretanto,
vulgarizado pela alta costura.
Um dos exemplos mais eloquentes da riqueza especialíssima
do seu olhar corresponde também a uma das suas obras-primas: «O PROCESSO DE
JOANA D’ARCO», rodado em 1962. É impressionante a forma isenta com que tentou
repor o julgamento que condenou à fogueira uma das heroínas mais aclamadas da
história de França. Lançando-se numa abordagem maximamente depurada, cinge-se
aos diálogos que o tribunal da época registou. Só as palavras proferidas em
1431 são consentidas neste filme, onde não há um único excesso, nenhuma
exaltação ou juízo pessoal sobre alguma das personagens, nem mesmo naqueles
momentos mais tentadores, onde parece tão apetecível sugerir uma crítica. E se
o heroísmo solitário de Joana se presta, injustamente acusada de heresia, ela
que fora o expoente da fé, vivendo-a até às últimas consequências. Igual para a
perversidade dos seus algozes, atolados em mentiras e calúnias, das mesquinhas
às mais aberrantes e descaradas. A serenidade crua da câmara de Bresson em nada
diminuem aquele episódio. Antes faz sobressair a autoridade dos factos,
permitindo-nos viajar no tempo e ser testemunhas directas de um acontecimento
que marcou a posteridade.
Título original: «LE PROCÈS DE JEANNE D’ARC».
Elenco: Florence Carrez, Jean-Claude Fourneau,
Roger Honorat.
Realizado em França, em 1962; duração: 64 min.
Filme também disponível em dvd.
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É interessante ser um realizador nórdico, conhecido pela
sua austeridade – Carl Dreyer (1889-1968) – a filmar de Joana d’Arco uma
Paixão, assumidamente sacrificial e épica. Em contraponto, Bresson, admirador
indefectível de Joana como qualquer francês, fica-se por dar voz aos
depoimentos reais, percebendo que o rigor histórico era a melhor defesa de la Pucelle d’Orléans. Sobre ela,
declarou: «Vejo-a como um ser superior. Mais do que os
milagres, Joana convence-nos da existência desse mundo (espiritual) em que penetrava com prodigiosa facilidade».
É na estátua equestre dourada e vibrante, perto do Louvre à porta
do palácio real, que a corajosa guerreira-amazona continua a brilhar,
na pose de galhardia e
bravura por que se celebrizou.
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Segue o apontamento da
Cinemateca sobre os filmes em cartaz, durante o ciclo em curso:
«O Ciclo (…) começa
precisamente pelo último filme de Bresson, o décimo quarto que realizou,
L'ARGENT (1983), em que Bresson manifesta o mais profundo desprezo pelo
materialismo da sociedade contemporânea, para recuar até à sua primeira obra,
curta-metragem de inspiração burlesca realizada em 1934, que caricaturava a
Europa de então, mas que se afastava ainda das qualidades principais que viriam
a caracterizar o seu cinema.
Com formação em
filosofia e em línguas clássicas, a descoberta do cinema por Bresson é também posterior
à prática da pintura, remontando ao final dos anos vinte. LES ANGES DU PÉCHÉ, a
sua primeira longa-metragem, foi concluída em 1944, já depois de Bresson ter
estado mais de um ano preso num campo alemão. LES DAMES DU BOIS DE BOULOGNE
(1945), o trabalho seguinte, ainda envolveria atores profissionais, por
contraposição aos famosos "modelos" a que Bresson iria recorrer daí
em diante, numa procura de uma maior complexidade e de um movimento de
interiorização. Nos anos seguintes, Bresson realizou várias das suas
obras-primas, como JOURNAL D’UN CURÉ DE CAMPAGNE (1951), UN CONDAMNÉ À MORT
S’EST ECHAPPÉ (1956), PICKPOCKET (1959). O primeiro foi o filme que o consagrou
junto da crítica e é uma obra essencial na procura de um "realismo
interior" e na colocação em prática da sua estética jansenista em que o
progressivo despojamento surge associado a uma gravidade formal. UN CONDAMNÉ À
MORT S’EST ECHAPPÉ prossegue a depuração de JOURNAL, bem como a sua abordagem
minimalista que assenta na rarefação, na fragmentação e na recombinação de
elementos através da montagem, procedimentos que atingiriam o seu máximo
expoente em PICKPOCKET (1959), o belíssimo filme centrado nos gestos de um
carteirista, que o cineasta regista e recompõe com o seu cinematógrafo, a
câmara-bisturi com que disseca a realidade no sentido de uma progressiva
abstração. Uma obra portentosa onde não há lugar a juízos morais, mas a
acontecimentos e sensações que resultam da aproximação de diferentes sons e
imagens, num processo em que, como diria o próprio Bresson, «surgem não apenas relações novas, mas uma
nova forma de rearticular e ajustar». Um mesmo conjunto de procedimentos
"analíticos" transparece em LE PROCÈS DE JEANNE D’ARC (1962), que
centrando-se nas atas do referido processo, sucede à grandiosa «paixão» de
Dreyer, outro grande mestre (a par de Bresson e de Ozu) do que que Paul
Schrader caraterizou como um «estilo
transcendental no cinema» e Susan Sontag classificaria como um «estilo espiritual». No sublime AU HASARD
BALTHAZAR… (1966), a questão da «Graça», tema central em toda a obra de
Bresson, bem como a sua exploração do carácter trágico da vida e da força do
acaso, ganham contornos efabulatórios, uma vez que a "peregrinação
exemplar" é protagonizada por um burro, submetido a um destino repleto de
maldade humana. Destino igualmente triste terá Mouchette, num filme que em
Portugal ficou conhecido por AMOR E MORTE (1967), ou as protagonistas de UNE
FEMME DOUCE (1969) e QUATRE NUITS D’UN RÊVEUR (1971), duas das mais belas
adaptações de Dostoievski ao cinema e os primeiros trabalhos de Bresson a
cores. Todos eles, filmes belíssimos, ao mesmo tempo que profundamente
desesperados. LANCELOT DU LAC (1974) recupera a dimensão histórica de LE PROCÈS
DE JEANNE D’ARC, evitando todo o pitoresco medieval habitualmente associado às
histórias dos Cavaleiros da Távola Redonda, em prol da construção de um
universo em que permanece a fragmentação e a desarticulação dos corpos dos
filmes anteriores. Dois anos depois Bresson realizaria LE DIABLE PROBABLEMENT,
a sua penúltima obra, que é talvez o mais negro e explícito de todos os seus
filmes na sua visão pessimista sobre a evolução da sociedade. Uma das mais
incompreendidas obras de Bresson que assenta na força das elipses, onde tudo se
passa nos intervalos entre as palavras e as coisas.
Como registava nas
suas Notas sobre o Cinematógrafo, um dos livros mais fascinantes alguma vez
escritos sobre cinema, «É necessário que uma imagem se transforme em
contacto com outras imagens, como
uma cor em contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um
verde, de um amarelo ou de um vermelho.
Não há arte sem transformação". Ou, mais à frente, "Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É encontrar
entre as pessoas e as coisas que existem, e enquanto existem, relações novas.»
Numa das poucas casas que ainda subsistem no centro de
Lisboa, a Cinemateca reparte-se por dois andares: o térreo com as 2 salas de
cinema, e o de cima onde está uma livraria com boa selecção de dvds e livros,
salas para exposições temporárias e um restaurante revestido a madeiras quentes
e a estender-se para um terraço fantástico, ideal para os dias de sol, que
ainda são bastantes, no clima ameno da capital.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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Na
rua Barata Salgueiro, em frente a Belas Artes.
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Terraço do restaurante 39 Degraus |
O cinema de Bresson é um cinema exigente, sem preocupação em criar "facilidades" a quem o vê. Mas é uma experiência daquelas que, como antigamente se dizia, "muda vidas". Gostei muito de reencontrar aqui, logo pela manhã, a evocação de alguém que criou um mundo só seu que toca o(s) outro(s), de forma, por vezes, fulminante - talvez a grande definição do que é ser-se "criador".
ResponderEliminargi.