31 janeiro 2016

4º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 4,21-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus começou a falar na sinagoga de Nazaré, dizendo:
«Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Todos davam testemunho em seu favor
e se admiravam das palavras cheias de graça
que saíam da sua boca.
E perguntavam:
«Não é este o filho de José?»
Jesus disse-lhes:
«Por certo Me citareis o ditado:
‘Médico, cura-te a ti mesmo’.
Faz também aqui na tua terra
o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum».
E acrescentou:
«Em verdade vos digo:
Nenhum profeta é bem recebido na sua terra.
Em verdade vos digo
que havia em Israel muitas viúvas no tempo do profeta Elias,
quando o céu se fechou durante três anos e seis meses
e houve uma grande fome em toda a terra;
contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas,
mas a uma viúva de Sarepta, na região da Sidónia.
Havia em Israel muitos leprosos no tempo do profeta Eliseu;
contudo, nenhum deles foi curado,
mas apenas o sírio Naamã».
Ao ouvirem estas palavras,
todos ficaram furiosos na sinagoga.
Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade
e levaram-n’O até ao cimo da colina
sobre a qual a cidade estava edificada,
a fim de O precipitarem dali abaixo.
Mas Jesus, passando pelo meio deles,
seguiu o seu caminho.

30 janeiro 2016

Pensamentos impensados

Mitos
Pelos vistos descobrir o caminho marítimo para a Índia não era muito difícil.
Vasco da Gama chegou lá à primeira

Moeda ao ar
Quem vê caras... não vê coroas.

Guloseimas
Portugal espera ansiosamente borlas de Berlim.

Invernias
El Niño provocou inundações no pico mais alto Evereste.

Orto pedido
Quando D. Afonso Henriques partiu a anca em Badajoz, só pediu: arranjem-me umas canadianas.

E não foi aos peixes
Jesus Cristo pregou; é natural os carpinteiros usarem pregos.

Longos cursos
O Samorim da Índia, impaciente, não cessava de perguntar: então o Vasco nunca mais chega?

Despeitadas
Sophia Loren e Gina Lollobrigida nunca perceberam por que não eram convidadas para anúncios de rebuçados peitorais.

SdB (I)

29 janeiro 2016

Frases mudas *

Enquanto a maioria das pessoas tem sorte se tiver um cliché que as caracterize na perfeição, para o protagonista desta história existem três ou quatro frases-feitas que lhe assentam como uma luva. Onde quer que fosse, entrava mudo e saía caladoNão tugia nem mugia, e tudo o que lhe aconteceu na vida começou e acabou sem ai nem ui. Nunca ninguém lhe ouviu uma queixa, um protesto ou uma frase mais exaltada. Mas também nunca disse um elogio, uma palavra simpática a um amigo ou promessas eternas a um amor de juventude. Na verdade, nunca ninguém o ouviu dizer fosse o que fosse.

Ao contrário da maioria dos bebés, nasceu sem os choros e gritos habituais, e esse silêncio inicial manteve-o até à morte. Os pais fizeram todos os exames, testes e análises possíveis. Levaram-no a médicos, médiuns e psicólogos. Ninguém descobriu qualquer problema. Só restava uma hipótese: o silêncio crónico era opcional. Não falava porque não queria.

Ninguém sabe se foi o nome que lhe deu o conteúdo ou ele que deu sentido ao seu nome. A única certeza é que Carlos Calado era mudo.

Mas essa sua característica não o impediu de ter uma vida escolar normal. Aprendeu as letras e os números. A escrever e a fazer contas. Tão bem ou melhor, já que era mais calado do que os colegas de turma. O maior problema foi com a leitura. Como não lia alto era difícil perceber se o sabia fazer ou não. Os seus professores não se preocuparam muito com isso. 'Nunca há de ganhar a vida como orador', pensavam eles.

A sua mudez também não o impediu de formar família. Conheceu uma mulher que trabalhava como telefonista numa empresa movimentada, e cujo maior desejo era o de, após o trabalho, voltar para casa e ter à espera alguém que não quisesse conversar. Era o casamento perfeito. E viveram neste arranjo ideal até ao dia em que ela fez uma descoberta inesperada.

Quando a telefonista se preparava para se deitar, já o Carlos estava naquele estado intermédio de vigília, fez uma pergunta alto para si própria. E, em vez de ouvir apenas o seu pensamento como resposta, escuta uma voz entaramelada atrás de si. Faz outra pergunta e acontece o mesmo. Era o Carlos que, no seu sono, respondia inconscientemente às perguntas que ela fazia de si para si. Uma pergunta atirada para o ar dava direito a uma resposta meio adormecida.

A partir dessa descoberta, todas as noites passou a fazer o mesmo. Fingia arrumações e ocupações e, quando Carlos estava no estado sonolento de vigília, começavam as perguntas. Foi com isto que começaram a surgir as curvas num caminho que, até esse ponto, tinha sido feito suavemente em linha recta.

Começou pela voz que nunca ninguém tinha ouvido. Era aguda e esganiçada, incomodativa. E acabou no conteúdo das respostas. Descobriu coisas que não queria, percebeu que muitas ideias que tinha sobre ele estavam erradas. O Carlos mudo, com quem partilhava o silêncio durante o jantar, era diferente do Carlos que falava durante o sono. E este facto foi o suficiente para que ela decidisse pôr um ponto final na relação.

Decidiu sair de casa e acabar tudo. Quando lhe comunicou a decisão, o Carlos perguntou, com a ajuda de um lápis e de um papel, 'porquê?'. E a telefonista limitou-se a responder-lhe 'pelas coisas que me disseste'.

SdB (III)

* publicado originalmente em 22.11.2010

28 janeiro 2016

Pensamentos Impensados

Eleições

A grande fadista Lucília do Carmo tinha, no seu restaurante, um músico que enquanto tocava não parava com a cabeça, sempre a olhar para a esquerda, direita, para cima e para baixo. Um dia perguntei à Lucília a que se devia semelhante atitude. Disse-me: tem o pior defeito que uma pessoa pode ter: a vaidade.

Posto isto, pergunto-me se teria sido vaidade o que levou algumas pessoas a candidatarem-se a presidente da república; penso naqueles que ficaram abaixo de Marisa Matias com resultados ridículos; não incluo Maria de Belém, pois o resultado que teve deve-se aos tiros em todos os pés.

Esses candidatos, todos com preocupações de bem-estar do povo, fariam melhor em ter dado o dinheiro que gastaram na campanha para aliviar a pobreza.

SdB (I)

O Fado, Canção de Vencidos

Esquecendo os primórdios e o tempo do piano, Amália introduziu o saxofone num disco. Penso que terá sido "acto único" e, quanto a mim, poderia nem sequer ter havido. Depois foi Alain Oulman a compor e a acompanhar a artista ao piano, também. Agora é o contrabaixo e, um destes dias, vi a Ana Moura cantar acompanhada à bateria. Dizem que são novos caminhos, novas sonoridades, novas experiências. Dizem que querem tirar o fado de um gueto, dar-lhe nova roupagem, torná-lo música do mundo. Não sou melómano nem académico na matéria. Mas questiono-me se ainda saberemos definir fado.  

Deixo-vos com Camané, no fado Meia-noite, composto por Filipe Pinto, com letra de David Mourão-Ferreira. E deixo-vos com  Taku, no mesmo fado Meia-noite. Tudo isto é fado?

JdB




27 janeiro 2016

As escolhas musicais do gi

# 4 Animal Collective, FloriDada´

E mesmo, mesmo a finalizar o ano a trupe dos Animal Collective revela-nos uma das canções do ano. "FloriDada", aperitivo para o novo disco, volta a colocar esta banda na vanguarda do experimentalismo pop. Sparks e Beach Boys, polifonias e electrónicas, pop cristalina auto-bombardeada, melodias em ponto de rebuçado, uma energia visceral - de tudo isto é feita esta formidável canção. Possível "prémio what the hell is this do ano" também..




***

# 5 Tobias Jesso Jr., How Could You Babe

De onde saiu o rapaz Tobias, foi pergunta pertinente, ao longo deste ano. Dir-se-ia ter bebido grande parte do cancioneiro americano pop-folk do final dos anos sessenta, início dos anos setenta. "How Could You Babe" é uma portentosa - mesmo se delicada - canção, que bem poderia ter sido assinada por Tim Hardin, David Ackles, gente deste calibre (hoje em dia, esquecida, mas não por todos). É um grande elogio, dito por outros palavras, acreditem.

26 janeiro 2016

Das perguntas sem resposta

Richmond Hill with Fog, fotografia de Nobuyuki Taguchi



E tu? Ao menos sabes o que eu preciso? Estirado num sofá, na modorra de um sábado de tarde, ouvi esta pergunta da boca de um artista de tardes de cinema. A frase é vulgar nos diálogos afectivos. A expressão "ao menos" confere-lhe uma certa dimensão de agressividade, como se o outro não soubesse porque não quer, porque não se interessa, porque não se debruça o suficiente sobre o tema em apreço que não é mais, afinal, do que as necessidades de um mortal.

Sobre E tu? Ao menos sabes o que eu preciso? recaem sempre dois olhares distintos, convergentes e divergentes em proporções incertas: quem a profere e quem a ouve; quem pergunta e quem tem o dever de responder, sendo que sim ou não são inelegíveis para resposta. É preciso mais. Por vezes ambos os interlocutores estão de acordo: sim, sei o que precisas, sendo que o rol de necessidades está certo, foi correctamente identificado. Está dado o primeiro passo, já só falta quase tudo: o suprimento das necessidades.  

A fronteira entre aquilo que alguém precisa e aquilo que outro alguém está disposto a dar pode ser incomensurável. Por vezes - e é sobre isto que me debruço agora - o fosso está entre aquilo que alguém precisa e aquilo que alguém diz que precisa: eu preciso de atenção versus precisas de te descentrar; ou preciso de tempo versus precisas de organização. Onde está a razão? As necessidades, só porque proferidas pelo próprio, estão forçosamente correctas? As necessidades do outro, só porque vistas com uma certa distância, estão forçosamente correctas? Todos nós (enfim, muitos de nós...) temos fragilidades, debilidades, necessidades. Todos nós queremos que os outros as eliminem, as compensem, as resolvam. Como? Da forma que nós entendemos melhor, o que nem sempre corresponde à forma que é a melhor...  

A expressão E tu? Ao menos sabes o que eu preciso?, é uma pergunta apontada ao cerne de uma relação afectiva qualquer. Temos de estar preparados para tudo: para que o outro não saiba; para que nós próprios não saibamos exactamente; para que o outro não consiga dar-nos o que queremos, ou que tenha uma ideia diferente - e quantas vezes mais correcta - daquilo que nós próprios precisamos. 

A pergunta pode ser difícil. Estirado num sofá, na modorra de um sábado de tarde, ouvi-a da boca de um artista de tardes de cinema. Havia uma certa neblina no ar, a lareira ardia mansamente, não se ouviam mais ruídos do que o da lenha a arder, ou dos pássaros no ar perseguidos por um cão geneticamente preparado para a humidade e para o nevoeiro. Já não ouvi a resposta, confesso.

JdB

25 janeiro 2016

Vai um gin do Peter’s?

Uma boa história costuma dar bons filmes, mesmo que a qualidade da realização não sobressaia. Partir de factos históricos e revelar pormenores interessantes, até aqui guardados quase em segredo de Estado, ainda tornam a trama mais apetecível e especial.


«A Ponte dos Espiões» (1)  soma tudo isso, com o argumento revisto pelos manos Cohen para garantir a qualidade na transposição para o cinema. O realizador é bem conhecido – Steven Spielberg –  e fã das conspirações de bastidores, que conseguem influenciar o rumo dos acontecimentos, mais ainda quando envolvem momentos cruciais da história da América. Talvez pelo seu patriotismo e gosto pela democracia, parece preferir o cidadão comum àquelas personalidades públicas entronizadas pela História (em versão simplificada, bem entendido). 

Spielberg aprecia mostrar as qualidades maiores das pessoas correntes, capazes de feitos extraordinários quando as circunstâncias o propiciam. Insere-se na matriz norte-americana em que herói quadra bem com o cowboy solitário, responsável e empreendedor, mas com o rosto de tanta gente. Basta ter a vontade e a coragem para assumir o papel. Em vez de privilegiar o ser superior, fadado para herói, a tradição anglo-americana tende a apostar mais na comunidade feita de anónimos, a quem um dia a realidade se encarrega de revelar a grandeza e o heroísmo. 

Tal cosmovisão, torna aquelas democracias menos atreitas aos engodos das lideranças incontestáveis, protagonizadas por gente alegadamente iluminada que, rapidamente, se vai metamorfoseando em déspota. Já a Europa continental é mais dada à miragem dos chefes sacrossantos, camuflagem infantil (e populista) dos tiranos. Na Grã-Bretanha e nos EUA prevalece antes o pragmatismo orientado para o resultado, que significa lucro ou troféus valiosos, com espaço para sociedades plurais. Impérios sim, imperadores nem tanto. No fundo, estão cientes de que por detrás de um grande chefe estará uma excelente elite, igualmente secundada por um grupo amplo de talentosos. Reconhecem, claramente, o papel basilar da sociedade civil, sem necessidade de fechar fronteiras para evitar fugas em massa, uma vez que cidadãos gostam de ali viver e de colaborar, voluntariamente, para o bem comum. Vem isto a propósito do filme, passado durante a construção do Muro de Berlim.

Spielberg mostra-nos as manobras de bastidores ocorridas durante a Guerra Fria, recuando a 1957. Tudo começa por um gesto magnânimo da justiça americana ao chamar um dos melhores advogados do país a defender um KGB preso pela CIA. Como bom americano, Donovan desempenha a incumbência com máximo profissionalismo e coragem, dando pleno cumprimento à Constituição americana, que exige um julgamento justo para todos. Até mesmo traidores perigosos. Um princípio espantoso, mas de aplicação prática difícil, como o demonstraram as multidões que ostracizaram, abertamente, o corajoso advogado. Mas nada faria desviar o fiel jurista um milímetro da sua missão maior. 


Segundo a melhor estirpe americana, Donovan guardou a combatividade para enfrentar as forças poderosas que se opunham a um julgamento isento, e transbordou de paciência com a figura fragilizada naquele insólito processo: o espião russo. 

Aplicando toda a habilidade tática que o faziam brilhar na barra, no sector dos seguros, revelava-se agora um negociador imbatível com todos os interlocutores. Sendo que nenhum era fácil, quase todos assemelhando-se a monoblocos inamovíveis, da CIA ao juiz, passando pelas autoridades soviéticas.

Até do ponto de vista psicológico e negocial, é espantoso assistir à criatividade persuasiva do advogado para conseguir demover obstáculos de aparência intransponível. Alguns com contornos ridículos, que conferem imenso humor ao thriller, como a suposta família alemã do espião russo.

Logo no primeiro round levou a melhor, apesar de não obter tudo o que pretendia: a pena de morte exigida pelos jurados e pelo juiz acabou por ser comutada para prisão perpétua, em nome de um argumento sábio de Donovan, que se veio a revelar certeiro. Se algum americano viesse a cair nas malhas da KGB, seria mais útil ao país manter vivo o espião para a troca de prisioneiros.

Um par de anos volvidos e a história dava razão ao advogado: um piloto dos EUA foi apanhado em missão clandestina na Rússia. 

Corria o ano de 1961, com as duas superpotências a afrontar-se perigosamente. Basta lembrar a célebre madrugada de 13 de Agosto, em que um muro extensíssimo (2) fracturou a capital do antigo Reich, junto às Portas de Brandenburg, deixando a zona Leste, com os valiosos museus e a majestosa avenida Unter den Linden para os soviéticos. A metade mais devastada de Berlim ficou para a Alemanha Ocidental, convertida num enclave cada vez mais isolado no meio de uma República Democrática Alemã (pró-URSS) abertamente hostil e militarizada. 

Mal Moscovo emite um vago sinal de abertura para eventual troca de espiões, a CIA encomenda as difíceis negociações (as primeiras!) ao habilidoso advogado do espião russo, que conseguira a proeza de dobrar o juiz americano e tornar-se amigo do KGB. Tanto talento convinha agora ser usado para resgatar um piloto que sabia demais sobre as armas secretas da defesa americana. 


Sem hesitar, Donovan aceitou a nova missão e rumou até Berlim para negociar com a Embaixada russa. Tinha apenas um fim-de-semana. Em casa tivera de inventar uma suposta viagem a Londres com clientes, porque se tratava de uma viagem secreta, em avião militar.

Na Alemanha, as peripécias multiplicam-se, num ambiente dantesco, agravado pelo frio e pela penúria. A CIA tivera o cuidado de lhe destinar um quarto infecto, para tornar mais credível que o advogado estaria a agir por conta própria. Como de facto nada o detinha, até o Inverno rigoroso de Berlim só conseguiu tornar tudo mais heroico, pois até os flocos de neve se lhe entranharam nos ossos. Mal transpôs o Muro, um gang pouco recomendável ficou-lhe com o sobretudo confortável da Quinta Avenida. Era o preço para chegar vivo e pontualmente à reunião na Embaixada russa. 


Assiste-se, depois, a uma sequência de encontros, no início sem sentido e a temer-se o pior desfecho. Aos poucos, Donovan vai conseguindo romper o muro de indiferença e desencantar interlocutores capazes para as negociações, virando o provérbio do avesso para jogar plenamente a favor dos EUA: entrada de cordeiro e saída de leão. 

Imprevistamente, russos e alemães tentam negociar com o americano, em separado e em concorrência descarada, a troca de diferentes cidadãos dos EUA: o militar para os russos, um universitário de Yale para os alemães, desejosos de assim saírem do estatuto menor de mero satélite da URSS. Em vez de ficar atrapalhado com o desencontro de interesses entre os dois players do bloco soviético, bastante assanhados na sua postura, Donovan resolve apostar no dois em um para trocar um russo por 2 americanos. Enfim, uma aritmética que só um advogado híper hábil tornaria atractiva e até incontornável para os seus difíceis interlocutores.   


São tocantes aqueles minutos históricos em que se inaugurou a troca de prisioneiros entre as superpotências. Ironicamente, do lado americano, só o espião fazia companhia ao advogado, que enfurecera a CIA com a giga-joga ousada de forçar a entrada do estudante tonto no processo negocial (atrasara-se a fugir de Berlim Leste antes de o muro ficar concluído), arriscando-se a deitar tudo a perder. Desta vez, era a amizade com o KGB que permitia a Donovan fazer vingar a sua fórmula e forçar a entrega dos 2 americanos em locais distantes do Muro, adensando assim a nebulosa deste caso de desfecho incerto.   
O sucesso rotundo levou a Casa Branca a entregar outro dossier difícil a Donovan, que voltaria à sua prática habitual, de superar por muito os objectivos da CIA, salvando bastantes mais vidas do que as esperadas. O novo feito passou-se em Cuba, durante a fase mais agressiva do regime despótico de Fidel Castro.

À época, talvez só os americanos tenham ficado a ganhar. Mas hoje muito mais gente ganha em testemunhar como a realidade também pode superar a melhor ficção. Inspirador! 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

***

(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
BRIDGE OF SPIES
Título traduzido em Portugal:
A PONTE DOS ESPIÕES
Realização:
Steven Spielberg
Argumento:
Matt Charman, Ethan e Joel Coen
Produzido por:
Steven Spielberg
Banda Sonora:
Thomas Newman
Duração:
141 min.
Ano:      
2015
País:
EUA, Alemanha e Índia
        Elenco:

Tom Hanks (o advogado),
Mark Rylance (o espião),
Amy Ryan (a mulher do advogado)
Alan Alda
Scott Sheperd (CIA)
Austin Stowell (piloto)

 (2)  O “Berliner Mauer” foi construído em tempo recorde pela República Democrática Alemã, por decisão unilateral do regime comunista, para conter a sangria de gente que, diariamente, fugia para o Ocidente. Além da barreira de betão, veio a incluir mais 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 127 redes metálicas electrificadas com alarme e 255 pistas de corrida para cães de guarda treinados para matar. O muro era patrulhado por militares da Alemanha Oriental Socialista, com ordens para eliminar quem tentasse escapar, em cumprimento da célebre Schießbefehl ou "Ordem 101". E foram muitíssimos. Apesar da controvérsia quanto ao número de perdas em vidas humanas, segundo o regime comunista houve: 80 mortos, 112 feridos e milhares de aprisionados. Como efeito colateral, dezenas de milhares de famílias ficaram divididas, perdendo totalmente o contacto. Estas estatísticas são contestadas por diversos órgãos internacionais de Direitos Humanos.
A 9 de Novembro de 1989 começou a derrocada do Muro da Vergonha, como era conhecido pelos alemães. 

24 janeiro 2016

3º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 1,1-4;4,14-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Já que muitos empreenderam narrar os factos
que se realizaram entre nós,
como no-los transmitiram os que, desde o início,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra,
também eu resolvi,
depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens,
escrevê-las para ti, ilustre Teófilo,
para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado.
Naquele tempo,
Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito,
e a sua fama propagou-se por toda a região.
Ensinava nas sinagogas e era elogiado por todos.
Foi então a Nazaré, onde Se tinha criado.
Segundo o seu costume,
entrou na sinagoga a um sábado
e levantou-Se para fazer a leitura.
Entregaram-Lhe o livro do profeta Isaías
e, ao abrir o livro,
encontrou a passagem em que estava escrito:
«O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque Ele me ungiu
para anunciar a boa nova aos pobres.
Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos
e a vista aos cegos,
a restituir a liberdade aos oprimidos
e a proclamar o ano da graça do Senhor».
Depois enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-Se.
Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga.
Começou então a dizer-lhes:
«Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».

23 janeiro 2016

Pensamentos Impensados

Especial eleições

Não sei o suficiente de política para afirmar se Cavaco Silva foi, ou não, um bom presidente da República. É com grande alegria que o vejo partir, pois as suas aparições faziam-me pele de galinha. O episódio do bolo-rei não é nada comparado à sua vinda à TV a informar que não tinha dinheiro, num país onde há fome; a dizer aos portugueses que podem confiar no Banco Espírito Santo (isto da boca de um perito (?) em finanças.

O que mais comichão me faz é o PROVINCIANISMO, numa pessoa que estudou "lá fora". Eu, que sou perito em patetices, tenho pena de não ser o inventor da ideia de que CAVACO SAIU DE BOLIQUEIME MAS BOLIQUEIME NÃO SAIU DELE. Como provinciano é um exemplar perfeito. Que saia pela porta grande ou pela porta do cavalo é-me indiferente. Mas vai sair!

Amanhã é dia de eleições, o que me deixa indiferente, pois sou abstencionista; mesmo que o não fosse, o facto de ser Monárquico impede-me de cumprir o "dever cívico". Os midia irão todos afinar pelo mesmo diapasão: informarão que o candidato A votou às 9 da manhã na Freguesia de Cebolais de Baixo, onde tem residência, notícia acompanhada de uma fotografia que mostra o candidato, ou a receber o voto, ou na iminência de o enfiar na ranhura.

Isto passa-se com todos os candidatos. Com sorte ainda aparecerá Cavaco a dizer que o voto é secreto... Não percebo que os candidatos votem - votam em quem? No Pai Natal, no pato Donald? É ridículo. Acho que tudo isto pode ser uma palhaçada: pode concorrer a Supremo Comandante das Forças Armadas e a Supremo Magistrado da Nação qualquer pessoa, desde que consiga umas assinaturas. Tino de Rans tem um aspecto muito simpático, parece que fez muito pela sua terra, mas daí a concorrer a um Supremo vai uma grande distância.

Por estas e por outras é que não acredito no sufrágio universal.

SdB (I)

22 janeiro 2016

Dos desaparecimentos nefastos



Há pouco mais de dois anos escrevi um texto neste estabelecimento (de que reproduzo um excerto abaixo) sobre a desgraça que foi o desaparecimento da sala de jantar. Esta semana ainda, num convívio de amigos, vesti a pele de velho muito velho que usa alegremente expressões como "ainda sou do tempo em que...". E afirmei para quem me quis ouvir: duas grandes desgraças dos tempos modernos são o desaparecimento da dita casa de jantar e da carta (manu)escrita. Alguém de uma geração abaixo da minha fez um sorriso simpático mas trocista, como quem se espanta de ainda ouvir discursos tão retrógrados.

O desaparecimento da casa de jantar tem efeitos que estão espelhados abaixo, sobre os quais não discorrerei muito mais. A sala de jantar era uma espaço de convívio, de partilha, de educação de maneiras, de fomento do diálogo civilizado, ainda que acalorado. O desaparecimento do espaço deixará marcas óbvias nas gerações actuais e vindouras; a não ocupação do espaço em casas onde ele existia já deixou marcas: pessoas sem hábitos de conversa, para quem a refeição é algo exclusivamente utilitário.

A carta manuscrita não tinha apenas um carácter estético: uma letra cuidada, um espaço de texto bem distribuído, um papel de gramagem generosa, uma tinta permanente com um aparo civilizado. A carta manuscrita obrigava a cuidados, já que não existia a tecla delete: pensava-se na frase, burilava-se o estilo, evitava-se a falta de clareza. As cartas eram uma forma de comunicação que ia para além da utilidade simples, porque não havia mais nada - não havia telemóvel, fax, correio electrónico, skype, sms ou whatsapp. 

Hoje há o email que, dizem-me, cumpre as mesmas funções da carta. Não me parece: para já, o email está para a carta como o kindle está para o livro. Posso ler tudo num aparelho electrónico, mas nada substitui ainda o contacto com o papel.  Por outro lado, o email tem uma dimensão (quase) exclusivamente utilitária. Acima de tudo liga-se ao conteúdo e pouco à forma. Há excepções? Pois há - mas são excepções.

As livrarias estão cheias de obras que revelam a troca de correspondência entre A e B - feita em papel de carta dentro de um envelope no qual se colocava um selo. Resta-me saber se daqui a duas gerações o mundo editorial se entusiasmará pela troca de email entre A e B. Até porque A telefonava a B, que por sua vez usava o skype para falar com A. E com isto se perde conhecimento sobre as pessoas. Contrariarei este tendência começando a escrever nos emails: que esta te encontre de saúde, que nós por cá todos bem... 

JdB 

***

(...)

Em certa medida, talvez nada tenha contribuído tanto para o fim de uma espécie de civilização como o desaparecimento da sala de jantar. 

(...)

Se a modernidade sobreviveu bem ao fim das duas divisões acima citadas [copa e escritório], nunca se recompôs do fim das salas de jantar. O erro cometido por arquitectos e mestres de obras, agremiações arvoradas em representantes das tendências sociológicas, paga-se bem caro. A sala de jantar era infinitamente mais do que uma assoalhada onde cadeiras em número variável rodeavam uma mesa de geometria a gosto. A sala de jantar era o local da partilha do dia que findara, da educação no debate,  do planeamento dos vários futuros, das horas certas, da contenção e do respeito pelos alimentos. 

A voragem dos dias resumiu a refeição a algo necessário ao bem estar físico, pelo que se cumpre essa tarefa em pé, agachado frente a um tabuleiro, de olhos absortos numa televisão, sozinho, meia hora antes ou depois do resto da família. O fim da sala de jantar ditou o fim da convivialidade à volta dos pratos de família, das receitas apuradas por patroas e cozinheiras superiores às lutas de classe, porque um ponto de espadana requer mestria, não exige berço. A conversa, no seu sentido mais nobre, foi a primeira vítima deste suposto progresso habitacional.

(...)

21 janeiro 2016

As escolhas (literárias) do gi

15 livros editados em Portugal, em 2015, que tenciono ler e 1 livro lido que me impressionou:

Em 2015, pouco li. "Shame on me, I know". Por isso, este é um balanço diferente. Um balanço que pretende dar-nos balanço, precisamente, para boas leituras, de certa forma retroactivas. 

Convido-vos a investigarem um pouco, a  perceberem qual a razão pela qual quero ler cada uma destas obras - pode ser que tal exercício nos torne "compagnons de lecture"..

(Em todo o caso, houve um livro que li de um trago, à boa maneira romântica, e que me abanou. Chama-se "A Definição do Amor" e foi escrito por Jorge Reis-Sá. Ainda não sei se é um bom livro ou se eu é que fui um bom leitor. "In dubio, pro reo"..)


Os Nossos Bons Vizinhos

Assim Começa o Mal, Javier Marías, romance

Na Margem, Rafael Chirbes, romance


A Senhora Escritora

A Amiga Genial, 3 volumes, Elena Ferrante, romance


Os Nossos Poetas

Arrancar Penas a Um Canto de Cisne, Luis Quintais, poesia

MoradaRuis Pires Cabral, poesia

A Sombra do MarArmando Silva Carvalho, poesia

PersianasMiguel-Manso, poesia


A Obrigatória Brigada Anglófona

AquárioDavid Vann, romance

A de AçorHelen Macdonald, ensaio autobiográfico

Em Movimento, Olivier Sacks, autobiografia

Tudo o Que ContaJames Salter, romance


O Nórdico Sem Filtro

A Minha Luta, 3 volumes, Karl Ove Knausgaard, ficção | ensaio autobiográfico


O Nórdico Com Filtro

A Morte de Um Apicultor, Lars Gustafsson, romance | novela


O Discreto Contista Luso

Quartos Alugados, Alexandre Andrade, contos


O Semi-Clássico Russo 

Oblomov, Ivan Goncharov, romance

gi.

20 janeiro 2016

Do regresso a casa

Close to Home – Eight Birds (fotografia de Marius Rustad) 

Há cerca de duas semanas escrevi um post sobre fugir de casa. Hoje, num sentido totalmente inverso, apetece-me escrever sobre regressar a casa. Afinal, como sempre afirmei, o encanto de viajar reside na certeza do retorno. É o regresso a casa - a certeza do regresso a casa - que torna possível, desejável, e até encantador, a procura de paragens longínquas, o exercício de se fazer uma mala ,antevendo o gozo de a desfazer mais tarde para repor as peças de roupa e outros artigos nos seus lugares de origem. 

Na sua música Keep The Customer Satisfied, Simon & Garfunkel cantam uma frase que tenho vindo a usar de forma ligeiramente diversa, para mim ou para outros: gee it's great to be back home. Por outro lado, num post de 2ª feira passada sobre África usei uma expressão para a qual me chamaram a atenção: afirmei que tinha vivido dois meses no Zimbabwe. Não afirmei que tinha estado no Zimbabwe ou que passara um tempo no Zimbabwe. O verbo utilizado foi viver. Significa isto, portanto, que aquela foi a minha casa.  Ou pelo menos assim a considero, sendo que o verbo traduz uma convicção talvez inconsciente. 

O que é regressar a casa? Talvez mesmo se possa perguntar: o que é a casa de cada um? Durante dois meses estive aboletado num espaço que não era meu, no qual eu não mandava e no qual os meus pertences ocupavam gavetas de um quarto e de um armário de casa de banho; quando entrei sabia quando ia sair. E no entanto, apesar de toda a autoridade inexistente, da duração completamente definida da estadia, da autonomia bastante limitada com que circulava, foi lá que vivi dois meses. Aquela foi a minha casa, porque as circunstâncias eram especiais e totalmente independentes de pertences, de relações de patrão / empregada, de decorações ao meu gosto. Havia uma dimensão que se sobrepunha a tudo. Foi ali que encontrei uma casa.

Regressar a casa pode ser mais do que meter a nossa chave na nossa fechadura da nossa casa. Regressar a casa pode ser mais do que voltar ao fim de um dia de trabalho para um espaço que está em nosso nome, fruto de mérito ou herança. Regressar a casa pode ser mais do que reentrar no imóvel onde começámos um projecto afectivo qualquer, onde a disposição das coisas ou das rotinas tem a nossa assinatura. Regressar a casa pode ser tudo isso - e é natural e saudável que assim seja. Mas regressar a casa também pode ser a visão das luzes que se ligaram para receber quem retorna, o fogão que se acende para aquecer um ambiente ou uma malga de sopa, a ideia de um espaço que se agita para abraçar quem volta de viagem, de uma jornada de trabalho, de uma ida à escola. Regressar a casa pode ser, afinal e sobretudo, a ideia de alguém à nossa espera - a acender luzes, a aquecer o jantar, a ligar um aquecimento.  Alguém que espera por nós, não intuitivamente, mas na realidade.

JdB

19 janeiro 2016

As escolhas (musicais) do gi

# 2 Beach House, Space Song

Mais um ano, mais dois discos. De uma assentada, os Beach House editaram dois novos álbuns. Por entre pepitas diversas, brilha lá no alto, o "fuzz" suave, o beleza etérea e fugidia desta "Space Song", crismada com feliz propriedade. Estupenda canção, ponto.




***

# 3 Cigarrettes After Sex, Nothing's Gonna Hurt You Baby

E, do aparente nada, uma banda, aparentemente desconhecida, saca um EP com 5 canções assombrosas. Mazzy Star, Low, Azure Ray, toda a brigada do "slow sad core" está convocada para bater palmas a esta música sonhadora, narcótica, movida por um sopro levemente trágico e impossivelmente romântico. Belíssima. Ou seja: sai um bis. E bem merecem, digo eu.



gi.

18 janeiro 2016

Da África

Fotografia de Hugo Firx

Quem me segue neste estabelecimento ou na vida sabe que em 2008 vivi dois meses no Zimbabwe. Antes disso, o meu conhecimento da África subsariana limitava-se a uns dias em Pretória, corria o ano de 1981... A estadia no império de Mugabe causou-me uma impressão que não desaparecerá. E não foram só as condições em que parti e em que lá vivi. Por outro lado, não é a primeira vez que alguém me diz: gostava de voltar a viver em África ou que revela uma emoção grande pelos tempos em que lá viveu, normalmente na juventude.

Um destes dias dei por mim a pensar no que me atraíra tanto em África. Teria sentido o mesmo se tivesse vivido nas mesmas circunstâncias, mas na Finlândia? Ou na Nova Zelândia? Ou no Rio de Janeiro? Quando eu digo "mesmas circunstâncias" falo nos motivos que me levaram a partir, nas condições em que lá vivi, nas oportunidades que me foram dadas de conhecer gente diferente e locais diferentes. As memórias gozosas que perduram são independentes do local? Vietname ou Londres seriam iguais?

Talvez por isso tenha perguntado, a quem um dia me disse que gostaria de lá viver de novo, o que provocava tanto frisson na vida em África. A resposta foi directa: a simplicidade, a genuinidade, o à-vontade, o clima, as pessoas. Depois olhei para dentro de mim próprio, para o entusiasmo com que lá vivera e com que recordava a experiência e, pese embora algumas diferenças, revi-me muito na resposta que me deram.

Sou um homem globalmente formal, conservador, com uma visão por vezes rígida de hábitos, comportamentos, formas de estar. Não falo de princípios morais ou éticos, mas da formalidade do dia a dia: forma de vestir, fórmulas linguísticas ou de estar à mesa, regras de respeito pelas senhoras ou pelos mais velhos. Não vivo infeliz no cumprimento destes códigos. E, não obstante, a ideia da simplicidade, do à-vontade, da genuinidade atrai-me. Atrai-me a mim como atrai outras pessoas. mPor outro lado, quantos de nós põem uma máscara em sociedade com que vivem aparentemente felizes: a máscara do sucesso, da felicidade, dos bens materiais, de tantas coisas?

Talvez África seja um mistério. Ou talvez o mistério sejamos nós, que colaboramos num modo de vida europeu, ou ocidental, de que queremos fugir volta e meia. Ou para sempre, numa visão mais radical.

JdB

17 janeiro 2016

2º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Jo 2,1-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
realizou-se um casamento em Caná da Galileia
e estava lá a Mãe de Jesus.
Jesus e os seus discípulos
foram também convidados para o casamento.
A certa altura faltou o vinho.
Então a Mãe de Jesus disse-Lhe:
«Não têm vinho».
Jesus respondeu-Lhe:
«Mulher, que temos nós com isso?
Ainda não chegou a minha hora».
Sua Mãe disse aos serventes:
«Fazei tudo o que Ele vos disser».
Havia ali seis talhas de pedra,
destinadas à purificação dos judeus,
levando cada uma de duas a três medidas.
Disse-lhes Jesus:
«Enchei essas talhas de água».
Eles encheram-nas até acima.
Depois disse-lhes:
«Tirai agora e levai ao chefe de mesa».
E eles levaram.
Quando o chefe de mesa provou a água transformada em vinho,
– ele não sabia de onde viera,
pois só os serventes, que tinham tirado a água, sabiam –
chamou o noivo e disse-lhe:
«Toda a gente serve primeiro o vinho bom
e, depois de os convidados terem bebido bem,
serve o inferior.
Mas tu guardaste o vinho bom até agora».
Foi assim que, em Caná da Galileia,
Jesus deu início aos seus milagres.
Manifestou a sua glória
e os discípulos acreditaram n’Ele.

16 janeiro 2016

Pensamentos Impensados

Linguajares
Tino de Rans saberá coaxar?

Seque-sos
Igualdade de géneros deve incluir os géneros alimentícios.

Omissões
As leis de Mendel deviam prever as infidelidades.

Grandes palavras
Se não gosta de palavrões gratuitos, eu posso vender-lhe alguns.

Frases desfeitas
Enquanto o pau vai e vem... chama-se remada.

Diz criminar
Homem não quis fazer sexo com outro homem e foi acusado de discriminação sexual.

Snifes
Tinha dinheiro para comprar a droga que quisesse; era um tóxico independente

Músicas
Mozart estava a comer iscas quando compôs as Bodas de Fígado.

SdB (I)

15 janeiro 2016

Bacalhau à Zé do Pipo

Lá fora o frio cortava e o vento ajudava a abrir os sulcos do corpo, feitos gretas nas mãos e lágrimas nos olhos. A chuva caía pequenina, esparsa, aqui e ali com mais força, inclinada e desconfortável. Laura entrou na igreja naquele meio de tarde precocemente escuro e sacudiu tudo: a água residual, as rajadas ventosas que não se viam, a temperatura inclementemente baixa, as agruras da vida tão coordenadas com o céu cinzento. Olhou à volta; não se lhe via desconfiança ou desconforto, apenas o anseio de ficar sozinha, porque o pudor manda que o choro seja discreto e partilhado na intimidade, não na nave central de uma igreja onde só o Altíssimo nos conhece a todos pelo nome. 

Laura circulou: a senhora dos aflitos, a senhora das angústias, a senhora das dores; depois o senhor crucificado, o senhor curvado nos passos da via dolorosa, dos impropérios sofridos, dos escárnios desumanos. Olhou à volta e descortinou um vago cheiro a madeira molhada, a espaço desarejado, a penumbra poupada; talvez um odor a sussurros partilhadas na hora do terço ou da missa vespertina, onde a desgraça da vizinha é afirmada no mesmo tom de voz que a infidelidade do cunhado, ou o favorecimento do presidente da junta a uma prima que tropeça gorda nos buracos do passeio.  

Laura passou pelo corredor central não sem antes ter depositado uma moeda na caixa de esmolas que teima em não encher, impedindo a reparação do tríptico do altar mor; é um quadro injustamente enegrecido pelo incenso, pela ausência de técnicos locais, pelo tenha santa paciência, senhor prior com que a diocese justifica os adiamentos permanentes. Laura toca a cabeça da senhora das dores, encosta um dedo beijado no pé da senhora dos aflitos, sorri humilde para a senhora das angústias. São estátuas simples, de gosto modesto, mas onde cabem, mesmo assim, os sofrimentos de todos os que se aproximam, esperançados - ou talvez já não - numa escuta que não tem prova visível. 

Laura chega ao fim deste périplo crente. Foi esmoler, passou pelas senhoras que a todos ajudam e a todos escutam, rezou uma dezena breve. E ajoelhou-se aos pés do senhor escarnecido que, de sangue a escorrer pintado de uma testa fustigada pelos espinhos da coroa, se senta num tronco torto à espera do fim. Laura está sozinha e não resiste: debruça-se, ajoelhada, e encosta a sua testa alta, vagamente perlada pela chuva inclemente, ao peito sofrido do senhor do amor. Chora, não porque o senhor sofra, mas porque ela própria sofre, sejam maleitas do corpo ou do espírito, suas ou dos que lhe são mais queridos. As mãos apoiam-se cansadas nos ombros daquele que já tudo suporta, tudo padece, tudo aceita. 

Durante cinco minutos o corpo de Laura não se mexe, como se dessa quietude dependesse a solução para os males que a afligem. Ao fim de um tempo que nada é face à eternidade, um telefone toca, não no âmbito dos discos pedidos, mas num rasgo brutal do silêncio contemplativo. É quizomba em modo de som crescente: dez segundos depois, enquanto Laura se endireita e se resguarda num nicho abandonado, abre a carteira, procura o aparelho entre lenços, baton carmim, lápis para os olhos, chaves do clio vermelho, documentos, carta das finanças, caderno pequeno com borboletas, meio queque embrulhado num guardanapo de papel, dez segundos depois, repete-se, a música invadiu o espaço, assustando as estátuas e o tríptico enegrecido onde uma salomé pouco arrependida mira com satisfação a cabeça do baptista:

- sim, sim, Vanessa, é a mamã. O que é o jantar? Olha filha, descongela uma posta de bacalhau. Gostas dele à Zé do Pipo?

JdB

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História inventada, obviamente, mas baseada numa cena real observada no fim de semana, numa bonita igreja de Viseu.

    

14 janeiro 2016

As escolhas (gastronómicas) do gi



8 restaurantes que, por uma razão ou por outra, me cativaram, em 2015:

Não são "os melhores", nem um "digest de novidades". Apenas e só aqueles que me proporcionaram, tudo considerado e sopesado, as melhores refeições fora-de-casa(s), ao longo deste ano.

A Cevicheria, Princípe Real
Aposta mais do que ganha do famoso Chef Kiko, quase exclusivamente dedicada ao ceviche de matriz peruana. Moderno, "trendy", "casual chic", sem dúvida. Mas bem mais do que isso.

Apicius, São Bento
Aventura de um casal de jovens "restaurateurs" - ele também ao leme da cozinha -, é um restaurante "low profile", mas que cultiva uma inovação gastronómica consistente.

Bistrô 4, Liberdade
Raro é o hotel que nos conquista pelo seu restaurante. No caso do restaurante do novo Hotel Porto Bay Liberdade, abre-se uma excepção. Um espaço de cariz clássico, com serviço de qualidade e uma cozinha afinada que cumpre a promessa: local apropriado para almoços profissionais, com classe e sobriedade.

Boi-Cavalo, Alfama
Nas mãos de um chef curioso e inventivo, em grande parte auto-didacta, é um dos pequenos segredos da cidade. Uma cozinha surpreendente, cosmopolita, sem esquecer as bases portuguesas, "perdida" numa velha rua de Alfama.

Coelho da Rocha, Campo de Ourique
Em 2015, este clássico de sempre de Campo de Ourique regressou ao activo, agora nas e pelas mãos dos donos do vizinho, e alentejano, Magano. Comida portuguesa tradicional, pujante e orgulhosa, bastante bem executada.

Duck Tale, Rato
Cozinha asiática muito bem confeccionada, num espaço discreto e pouco conhecido, a preços muito razoáveis. Excelente semi-segredo da nossa cidade.

Hikidashi - Taberna Japonesa, Campo de Ourique

O pequeno japonês, também em Campo de Ourique, oferece uma interpretação requintada de pratos frios e de cozinha de fogo. Traído aqui e ali por uma ligeira inclinação para o famigerado "sushi de fusão", revela, contudo, toda a sua qualidade, quando praticamos uma "escolha informada" ou somos beneficiados por uma intuição certeira.

In Bocca Al Lupo, São Bento / Príncipe Real
Esta pizzaria biológica é, tudo considerado, a melhor pizzaria lisboeta. Ingredientes cuidados e, conceito oblige, 100% biológicos, num espaço caloroso e com pessoal correctamente simpático. Quase uma casa, a que sabe bem regressar, sempre que possível. Teste definitivo: um dos melhores sítios para uma refeição a sós.


E 4 restaurantes que, por uma razão ou por outra, quero experimentar, em 2016 (e não, não são os novos projectos dos "chefs do costume"):

Bistro Edelweiss
Cozinha suíça, em São Bento / Príncipe Real, num espaço decorado com rara felicidade.

Estória
O novo restaurante, em Algés, do chef Vitor Areias. Alta gastronomia portuguesa, reinventada.

Hansi
As famosas salsichas austríacas (irmãs das porventura mais conhecidas suas congéneres alemãs), acompanhadas por cerveja de feitura artesanal, num ambiente simples e simpático, perto do Mercado da Ribeira / Cais do Sodré.

The Old House
Cozinha chinesa de qualidade, na zona da Expo, oriunda da província de Sichuan, famosa pelo seu picante e sabores requintados, num espaço esteticamente bem conseguido.

gi

13 janeiro 2016

O consultor *

O nome dele surgiu por puro acaso num jantar social. Há instantes que são marcantes, porque determinam o fluxo de uma conversa que parece inexistir na mente dos interlocutores. Num minuto, o Ruben era alguém que não fazia parte das probabilidades de conversa; num repente, alguém menciona o seu nome a propósito de uma ninharia e já toda a gente o conhecia, afadigando-se em comentários que gravitam entre a curiosidade e o elogio.
Ninguém sabe exactamente de onde veio este homem dos seus quarenta anos, engenheiro de formação, com uma cabeleira longa e loira toda penteada para trás. Olhando para ele, poderia sugerir-se um encontro fortuito num espectáculo de música alternativa, numa peça de teatro levada à cena por um grupo rebelde, numa exposição de pintura que olha para o abstracto com um ar de ligeiro enfado, porque a entende demasiado conservadora.
Mas o Ruben, por mais estranho que possa parecer, surgiu na Igreja. Ao princípio sentava-se na penumbra de um lugar discreto, tendo avançado posteriormente para o centro do palco, se assim se pode dizer sem que o desrespeito atinja foros de exagero. Ao fim de algumas semanas, este homem das ciências, a trabalhar numa empresa de consultoria, oferecia-se para a segunda leitura dominical, cujas características próprias casam melhor com uma voz masculina.
Um fiel novo na casa de Deus é sempre motivos de alegria. Ninguém conhecia o passado do Ruben, e ninguém falava nisso, como se fosse um tema de conversa que devesse ficar na meia-luz de uma qualquer reserva. Há vidas que não queremos esmiuçar, e essa decisão é uma entremeada composta pelo respeito da privacidade alheia e pelo temor da caixa de Pandora.
O Ruben tornou-se conhecido pela disponibilidade para ajudar, pela farta gaforina e, também, pela presença repetida nos vários serviços dominicais. Era visto na missa das nove e das dez, ou do meio-dia e meia e das seis da tarde, ou das onze e das treze. O Ruben era visto, e esta expressão não é apenas o arrumar livre de palavras singelas. Ele era, de facto, visto, porque não passava despercebido. Para completar este ramalhete de características, o Ruben era simpático, conversador, discreto mas presente, exaustivamente democrático nos seus contactos, pois falava com toda a gente por igual, fossem ricos e pobres, condes e operários, padres e leigos, cultos e ignorantes. Como se tivesse o gene da abertura humana no seu esplendor, ou como se lhe faltasse a enzima que, em todos nós, faz marcar a diferença com que olhamos os outros e materializamos a abordagem.
Toda a gente gostava do Ruben, e não hesitavam em lhe manifestar esse apreço. Apreciavam-lhe a educação e a disponibilidade, a afabilidade e a prontidão, a generosidade e o sorriso. E o Ruben sorria numa humildade contida, como se todos os elogios fossem um exagero de generosidade imerecida e embaraçante.
O calendário religioso avançava a um ritmo certo e previsível, como o alinhamento dos astros, os eclipses e as marés, ou a inevitabilidade dos impostos e da morte, estes dois últimos acontecimentos constituindo, ao que dizem, a única certeza da vida. Tal como numa célebre viagem de comboio entre a velha Sevilha e Guadalquivir, o Bem e o Mal, Deus e Satanás disputavam as almas com argumentos fortes: o céu, o prazer, o momento presente, o futuro, a construção, a facilidade, o imediato. E a contabilidade era uma guerra feita dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, sendo que o resultado final só se saberia no fim dos tempos, no apocalipse da vida, no estertor da existência.
O Ruben continuava a aparecer, a disponibilizar-se, a colaborar, a ouvir, a opinar, a olhar, a sorrir, a comover-se, a discordar. Entrava-se na Igreja, fosse em que dia ou hora fosse, e olhava-se à volta para descortinar onde andaria o Ruben, o que estaria a fazer, o que pensaria disto ou daquilo. E o homem da gaforina loira atirada para trás surgia do nada, de uma penumbra, de uma discrição. E cumprimentava, sorria, ajudava, olhava à volta de forma perscrutadora.
Um dia o Ruben desapareceu, não do campo do Divino que tudo vê e tudo pressente, mas do horizonte visual do fiel que circula pelo templo religioso com conhecimento de casa, que é a sabedoria aplicada à domus.  Houve quem falasse de um retiro de silêncio onde a alma se reencontra com ela própria e a boca entra numa espécie de greve voluntária ou num momento de inutilidade óbvia. Afinal, Ruben falara nisso durante muito tempo - a voracidade da informação, a música permanente no espaço público, a incapacidade da contemplação que permite vislumbrar o horizonte da vida onde o terreno se junta ao sobrenatural.  Era, por certo, um retiro de silêncio, o descanso do espírito, o olhar a cantar leva-me mais longe numa ânsia de peregrinação.
A comunidade de fiéis soube do Ruben cinco dias mais tarde - não pela equipa de consagrados, pelo organizador da escala de leitores ou pelas voluntárias do acolhimento. As informações vieram por uma televisão especializada em crimes, paixões sangrentas, utilização de alfaias agrícolas para destruição de vidas humanas. Ruben, de cabeça rapada e barba hirsuta, olhos esgazeados, não para o além, mas para uma linha de pó branco, agarrado a uma guitarra eléctrica cujo botão de volume estava rodado ao máximo, foi detido pela polícia, a quem disse: "o olhar da polícia para o delinquente revela o regozijo da detenção, não o confronto com a ilegalidade." Antes de ser algemado falou crípticamente: "Leiam Aristóteles, que afirmava que o leão não se regozija com o mugido do boi, mas com o poder devorá-lo. Já é Domingo?"
JdB    
(* aproveitado desinspiradamente de um texto de 2009)

12 janeiro 2016

Duas Últimas

Não posso hoje deixar de prestar aqui a minha singela homenagem a David Bowie, ontem desaparecido de forma prematura e surpreendente, pelo menos para mim, que o não sabia doente. 

Reparei agora um pouco melhor no seu último trabalho, saído para o mercado há muito pouco tempo, e as referências que faz à sua precária situação são evidentes.

Foi alguém que procurei muitas vezes ao longo de décadas, e a quem sou grato por isso.  

Personagem extravagante, inovador, genial, por certo controverso. Entre muitas possíveis, escolhi Absolute Beginners, de 1984, óbvia, de tão intemporal e incontornável.  

Espero que concordem.

fq

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