A obra do pintor-filósofo nascido na Bélgica, René Magritte (1898-1967), está em exposição no Centre Pompidou (1), de Paris, até 23 de Janeiro de 2017. O título toma o nome de uma das telas mais célebres do belga: «A traição das Imagens»:
«A Traição das Imagens», que aplica na pintura a definição de Roland Barthes: «O significado é a representação psíquica de uma coisa e não a coisa em si» |
Exprime também o seu jogo de ilusionismo, interpelando-nos com o pincel. Queixava-se, aliás, que a filosofia clássica subalternizava a imagem, apoiando-se quase em exclusivo na palavra.
Se na pintura Magritte parecia parodiar e ironizar incansavelmente, fora do atelier levava uma vida sóbria e tradicional, longe das boémias dos seus contemporâneos. Meticuloso e comedido até ao mais ínfimo pormenor, nem as paletes ou a bata gostava de manchar de tinta. Tanto asseio e aprumo mais se assemelhava a um laboratório e nem tanto ao atelier do artista que se entrega ao seu mister com afinco, dando asas à criatividade. Só que a criatividade fluía a rodos no belga, que desapreciava os típicos sinais exteriores dessa experimentação arrojada e febril que costuma acompanhar os fazedores de arte. De resto, nada foi mais imprevisível do que a sua portentosa obra, composta por um milhar de telas.
Fazia questão de não se levar demasiado a sério. |
Tanto alinho diz muito daquele homem tranquilo e cheio de curiosidade, que se entretinha com hobbies caseiros, a devorar livros de história e de filosofia. Sempre adorou a sua mulher Georgette, do princípio ao fim da vida. Constante e moderado, cultivava relações de amizade estáveis. Entre os amigos contava com filósofos de gabarito como Michel Foucault (MF), que o homenageou com um ensaio intitulado «Ceci n’est pas une pipe». Isto bastava para se perceber a quem MF se referia.
Curiosamente, o fundador do surrealismo, logo após a Grande Guerra, André Breton, tinha reservas em relação a Magritte que, no seu género invulgarmente pacato, ousou seguir um trilho pessoal e atípico, mas a recusar a pose algo exibicionista e reivindicativa dos que procuravam fazer escola e ficar para a posteridade. René M. dizia que o «surrealismo é o conhecimento imediato do real».
Até na vulgaridade dos objectos pintados, Magritte saiu dos cânones correntes, propondo um olhar que parte do prosaico, da materialidade partilhada com o cidadão comum. Preenchia as telas com figuras banais, retratadas na versão comezinha. Cortinados escorridos e simples, panos básicos, perfis em que cabe qualquer ser humano. Pode dizer-se que arriscou democratizar, a fundo, o húmus do artista.
«Os amantes», 1928, embrulhados num pano branco banal, lembrando uma mortalha intencionalmente indiferenciada, que até um paria poderia cobrir. |
Por isso, tornou-se num dos pintores mais replicado do século XX, em especial pelos publicitários, tirando partido das suas interpelações directas e incisivas: This is not a dress, lia-se num cartaz com um vestido para venda; Moschino aproveitou o trocadilho para legendar um novo modelo de jeans: «Ceci est une publicité».
Começara no futurismo e no cubismo, aproximando-se depois do surrealismo. Daí, rapidamente, evoluiu para uma reflexão sobre a relação entre o objecto observado e o seu conceito, sugerindo formas alternativas de o representar e de o entender. Até porque tem a noção da distância que persiste entre a realidade e a sua compreensão. Por isso, mostra a miragem do conhecimento quando, ao nomear uma realidade, julga possuí-la. Grande equívoco:
E se a realidade quisesse dar uma ajuda e assumisse a sua dimensão mais ininteligível? Do género: percebam que não é para perceber… Magritte dá o seu contributo:
René M. também se entreteve em malabarismos semiológicos, como vários dos seus amigos filósofos e linguistas, a desafiar a linguagem convencional e a abanar a forma rígida e superficial com que tendemos a captar a realidade, de modo formatado e, quantas vezes, preconceituoso. Lança-se, assim, em telas onde altera descaradamente a ordem lógica de uma cena ou inverte e parodia com a utilidade dos objectos retratados, para desmontar o mecanismo habitual da percepção humana. Ao perturbar essa rotina demasiado instalada da lógica humana, Magritte revela os limites da nossa percepção e espicaça-nos para reequacionarmos o sentido das coisas. No fundo, trocando-nos as voltas, acaba por evocar o mistério incomensurável que se esconde sob a capa da realidade visível. Condenados a olhar sem ver?...
O que será, então, inquestionável para Magritte? Em que acredita, afinal? Nas suas palavras: «Everything we see hides another thing, we always want to see what is hidden by what we see»:
No aparente non-sense de Magritte ressalta uma poesia latente, mas não dita; apenas vagamente sugerida e resguardada com pudor. Não por acaso, tinha uma predileção por um conto do romano Plínio o Velho (séc.I ), que referia a força da imagem exemplificando com o caso de uma mulher, que pintara a silhueta do marido a partir da sombra reflectida no chão, antes de ele partir para a guerra.
Georgette, musa de René, na vida e na pintura, ajuda a desdobrar os múltiplos planos em que a realidade se pode metamorfosear. |
Na entrega incessante ao seu ofício, como se tivesse de continuar a prestar provas, tela após tela, desligado da fama, a sua obra desenha-nos a silhueta de um artista invulgar, porque se alimenta da realidade. Sim, é a sua primeira paixão, nos antípodas de tantos que ficam apaixonados pelo próprio talento, num narcisismo sem fim. Um clássico! René explicava o que o atraía: «Ce n’est pas une répresentation du mystère que je recherche, mais des images du monde visible… dans un ordre qui evoque le mystère.»
Foi, portanto, na realidade impregnada de um mistério infinito que Magritte encontrou uma fonte de inspiração inesgotável, remetendo para um horizonte acima e para além da humanidade, talvez para lhe oferecer um espaço mais amplo de realização.
Deu voz às grandes questões filosóficas com humor, levando a dialética ao limite. Sobre a causa-primeira, por exemplo, não encontrou fórmula mais irónica do que um frente-a-frente entre o ovo e a galinha!
Os cortinados compridos e de efeito teatral são uma constante, para levar mais longe o jogo das escondidas, fingindo que mostra, para nos confundir e assumir que a parte de leão continua desconhecida. Talvez inalcançável. Entendia que: «Le visible cache toujours l’invisible… Un arbre cache une montagne qui cache une partie du ciel. En revanche, l’invisible n’est jamais cache mais seulement ignoré. Généralement, lorsque qu’on parle de l’invisible, on pense à des choses imaginaires. Or, pour moi, l’invisible, c’est le temps, les sentiments, les sensations, les idées… Quand je pense à l’invisible, je ne pense à rien qui soit imaginaire.»
Para escapar à ocupação nazi, deixou a Bélgica rumo a França, onde pintou um leão ameaçador e arrogante, de costas voltadas para um anjo semelhante a um 007 alado. Quis representar o anjo da guarda do povo belga em fato e gravata. Nada menos do que isso, parecendo estar preparado para um combate nos bastidores da frente visível da guerra! Ignorando-se mutuamente, o leão olha-nos em pose soberana, enquanto o anjo se concentra num outro horizonte, que ainda só ele avista.
«Homesickness» |
Com boa dose de suavidade, René M. não se coibia de ser crítico e até de avançar para o sarcasmo:
Em Magritte, a contradição surge desprovida de amargura, predominando o tom lúdico, que convida a uma descoberta, mesmo quando não poupa ferroadas críticas. Mas é uma ironia misto de curiosidade, com um certo fundo de esperança num patamar acima do que alcança a razão humana. Para lá do artificialismo divertido da sua obra, há muito céu e brechas surpreendes para horizontes maiores.
«Sedutor», um adjectivo que também se aplica ao pintor. |
Fiel à expressão poética e metafórica, é possível que a sua representação da memória remeta para o suicídio da mãe, que encheu de dor a sua adolescência. Uma dor que lhe aguçou a reflexão sobre o sentido da vida (tinha 15 anos), o papel maior da memória fortemente impregnada de afectividade, e sobre o que conseguimos guardar dos que já partiram, gravando na pedra uma sombra dessa presença tornada invisível.
«La memoire», 1954 |
Não tenhamos ilusões: em Magritte nada se fica apenas pelo que o artista colocou na tela. A densidade de símbolos que habitam a sua obra são o resultado das meditações de um filósofo, que gostava de reflectir com o pincel e as tintas.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) https://www.centrepompidou.fr/fr
ResponderEliminarAgradeço.
Muito Bom o post.