10 fevereiro 2017

Da dança

Gosto desta ideia construída em proporções incertas de arrojo e banalidade: a dança precede a música. Isto quer dizer, para quem tem mais dificuldade em perceber os meandros obscuros do meu pensamento, que antes de se ter inventado a música (e não sei bem quando se inventou) já se dançava. Melhor, já se abanava o corpo, movimento primitivo - sem acompanhamento musical - que deu origem, mais tarde, ao tango, ao bolero, ao rock, à valsa vienense ou inglesa, ao sapateado e à chula do Minho. A música, na sua ligação com a dança, eliminou o ridículo de uma agitação frenética e sem sequência lógica e conferiu a essa agitação um carácter sensual que os tempo modernos eliminaram de vez, como num tempo qualquer se fez com a varíola. Se a doença já só existe em frascos, a dança amorosa só existe em sítios obscuros, com tendência para a eliminação por via do ridículo e da idade avançada dos seus defensores.

A agitação do corpo é incivilizada e crente, desprovida de sentimentos nobres a não ser o temor, agradecimento ou pedido a uma transcendência que não se sabe o que é ou quem é, que forma tem, ou o que fez mais para além da suave rotina das estações do ano. Agita o corpo quem é religioso, isto é, aquele que quer religar-se a algo que o transcende. A agitação evoca o divino. A invenção da música, sobretudo aquela que suscita o pensamento pecaminoso decorrente de dois corpos que se tocam (e o slow dos anos 70 é o minuete do séc. XVII) veio eliminar essa religação, veio dar-lhe uma corporalidade que é a mãe de muitos vícios. Já não se dança (no sentido de agitação do corpo) por temor, devoção ou pedido. Dança-se por lascívia, luxúria, pecado da carne. A música que se dança, essa infâmia que se atravessa na civilização, é a culpa de muitos erros cuja gravidade foi escamoteada pelo surgimento do telemóvel, ipad, desaparecimento da casa de jantar, carreira da mulher, substituição do sexo por género e acesso generalizado aos aviões e às praias. 

Dançar a dois está na iminência da proibição, com um fervor idêntico ao que proíbe o cigarro electrónico, o consumo de açúcar em excesso, os castigos corporais e a caça com arco e flecha. Curiosamente, por um duplo motivo - o ridículo e o imoral, uma parceria que não é vulgar, um pouco como se D. Juan ou o Sr. Casanova fossem estrábicos, ou tropeçassem sempre que desafiam uma senhora casada à tentação da infidelidade. Dançar em grupo é possível, desde que ninguém toque em ninguém, ninguém olhe para ninguém, ninguém deseje ninguém. A cegueira do grupo, a impessoalidade da turba ululante é o que separa a dança primitiva de uma orgia ao som da cítara. 

Hoje deu-me para isto. Agitem-se sensualmente e freneticamente e pecaminosamente e ridiculamente com o vosso significant other ao som da música abaixo, cujo ritmo começa aos dois minutos. Não aceitem grupos, que é uma das pragas dos tempos modernos. Um com uma, que até o ridículo pode ser amoroso.

JdB

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