Era uma vez um banqueiro muito rico e viajado, que convivia com os artistas, intelectuais e elite política do seu tempo. Gostava de receber os amigos na casa grande de Paris, situada perto do Sena e no meio de um jardim maravilhoso, que arquitectara com pontes japonesas, um pequeno bosque à inglesa e canteiros à francesa, além de caramanchões de rosas. Chamou-lhe Jardins du Monde, para simbolizar a possibilidade e a óbvia vantagem de misturar vegetação de habitats distantes.
Poderia ter-se contentado com a vida confortável e animada que levava. Mas não. Preocupava-o a paz no mundo pois, aos 11 anos, já órfão de mãe, tivera de fugir com o pai e os 3 irmãos mais novos, porque a cidade linda onde vivia fora invadida pelo país vizinho. Apesar das privações desse tempo, aplicara-se nos estudos e depois no emprego, começando a enriquecer. Felizmente, o sucesso não lhe apagou da memória a pobreza em que crescera, antes lhe proporcionou os meios para tentar melhorar a vida das gerações futuras. A grande paixão da sua vida tornou-se, então, a busca da paz. Uma busca concreta, na qual investiu toda a fortuna, até uma crise financeira o levar à falência.
Este banqueiro não é figura de ficção para exemplificar que também há milionários generosos, inclusive entre os que singram na alta finança. Este homem nasceu na Alsácia, em 1860, de família judia, com o nome de Abraham Kahn, depois mudado para Albert Kahn (A.K.). O país invasor da Alsácia-Lorena foi a Alemanha, em 1871, no rescaldo da Guerra Franco-Prussiana e para vingar as conquistas do belicoso Rei-Sol.
A.K. no escritório de Paris, no ano de início da I Guerra Mundial – 1914. |
Depois de prosperar, já homem feito, A.K. teve o mundo a seus pés. Como costumava dizer: lidou com a gente importante da sua época, que se preocupava com o ambiente de crispação na política internacional, a par da crescente interdependência dos povos, através da maior mobilidade trazida pela rede ferroviária, pelo aumento das trocas comerciais e dos fluxos financeiro, pela disseminação dos jornais, pelo irromper dos fluxos turísticos, por alguma democratização e divulgação da arte, que ajudou a reforçar a interligação entre os países.
A.K. assistiu à Revolução Industrial. Conheceu de perto os irmãos Lumière. Esteve na estreia dos grandes inventos da altura, incluindo o cinema e os progressos na fotografia, que o entusiasmaram.
As constantes viagens de negócio a clientes estrangeiros fizeram-no experimentar os benefícios do encontro com o outro, a utilidade de o conhecer cara-a-cara para o entender melhor e ganhar uma base de diálogo mais profunda e fluída. Serviu também para dar corpo à sua aposta em favor da paz, evidenciando-lhe a importância de aproximar as pessoas de todas as geografias. Percebeu que a humanidade inter-racial precisava de descobrir que os seres humanos formam uma família. O caminho a seguir comportava um duplo desafio: por um lado, mostrar quanto as afinidades suplantam as diferenças exteriores, ainda que as aparências mais exóticas sugiram o oposto; por outro, revelar o mérito da diversidade, per se, enquanto factor de enriquecimento universal, valendo a pena preservá-la. No justo equilíbrio entre estes dois princípios, aparentemente inconciliáveis, nasceu o espantoso projecto – Les Archives du Monde, levado a cabo entre 1908/09 e 1931, até a fortuna se esvair no crash da Grande Depressão, nos EUA.
Os Arquivos do Planeta estão hoje disponíveis no Museu Albert-Kahn (1), situado na sua casa de Paris. O espólio abarca 72.000 fotografias a cores por aplicação da técnica das placas auto-cromáticas dos irmãos Lumière, além de 183Km de filmes coloridos.
O arranque do projecto terá ocorrido a 13 de novembro de 1908, quando Albert Kahn aproveitou a deslocação em trabalho ao Japão e à China para levar o seu motorista e fotógrafo, Alfred Dutertre, e iniciar a recolha de imagens. Nessa altura, passou também pelos Estados Unidos. Em 1909, a dupla A.K. e Dutertre rumou à América do Sul, onde ficou meses para desbravar o Uruguai, a Argentina e o Brasil, surgindo as primeiras imagens a cores do Rio de Janeiro.
Sweden: In 1910, Albert Kahn and the photographer Auguste Léon, below, took a summer road trip through rural Scandinavia, documenting everyday Nordic culture. |
Empolgado com o bom resultado inicial, nomeia Jean Brunhes como líder do mega-projecto e envia fotógrafos profissionais para os vários continentes com a incumbência de cobrirem toda a terra em imagens. Os focos privilegiaram os pequenos grupos, os povoados com as suas tipicidades, os episódios rotineiros do cidadão-comum, as paisagens de outras latitudes e ainda momentos emblemáticos da vida política, como o armistício da Grande Guerra, assinado no palácio de Versailles. Com a sofreguidão de quem adivinha ter pouco tempo para levar a cabo uma iniciativa originalíssima, a equipa de A.K. conseguiu a proeza de captar um mundo hoje praticamente desaparecido, com uma qualidade e uma perspectiva espectaculares. É sempre um privilégio rever aquele tesouro histórico, num mosaico que serve de aperitivo ao conjunto:
Também Portugal foi visado pelo Arquivo, através da ilha da Madeira, fotografada em 1909:
Ilha da Madeira – 1909 |
Além do mecenato, Kahn também concedeu bolsas de estudo, pois acreditava na boa preparação académica para completar o desenvolvimento humano e providenciar o sustento futuro.
Várias cadeias de televisão, da BBC à RTP, têm dedicado documentários a A.K. e ao Arquivo com títulos eloquentes: «The Dawn of the Color Photograph: Albert kahn’s Catalogue of Humanity», «O Mundo Maravihoso de Albert Kahn», «Men of the World: Albert Kahn's Archive of the Planet», «A trip through time». Porém, a expressão que melhor encerra o valor incalculável daquele legado é: «A LOST WORLD SAVED», desvendável aqui (https://www.opendatasoft.com/2016/07/22/archives-of-the-planet-albert-kahn-open-data/)!
Ironia das ironias, o banqueiro magnata e filantropo conheceu os maiores reveses, sendo que o mais doloroso não fora a derrocada financeira, mas a hora da Partida, aos 80 anos: dia 14 de Novembro de 1940. Naquele Outono tenebroso, o mundo mergulhara na carnificina que A.K. tentara evitar. O seu projecto benemérito fora contraposto pela mesma potência que lhe ensombrara a infância. Paris estava ocupada pelas “invencíveis” tropas nazis, que apertavam o cerco aos judeus da Gália. Pior era difícil. A luta pela paz e a familiarização entre as gentes do planeta (décadas antes do programa Erasmo e afins) parecia ter dado em nada. Mais um profeta falhara a chegada à Terra Prometida… Mas só o tempo pôde mostrar quanto cada minuto da sua vida tinha valido a pena! Essa coordenada que acaba por favorecer os homens bons veio a revelar o alcance superior do presente que oferecera aos contemporâneos e às gerações vindouras, marcado pelo cunho da solidariedade. A própria forma de vida colheu frutos positivos: dos reveses soubera desencantar soluções brilhantes; para o trauma de infância descobrira uma “vacina” certeira. Afinal, a hibernação forçada da sua missão, no momento da morte, renascera oportunamente com o fulgor de uma Bela Adormecida. Lembrá-lo e divulga-lo é mais do que justo. Cabe-lhe a última palavra:
« J’ai beaucoup voyagé, j’ai beaucoup lu et j’ai connu tous les grands hommes de mon époque {…} ; ce que j’ai cherché, c’était le chemin de la vie et les principes de fonctionnement ; or, plus j’ai avancé dans la vie et plus j’ai vu la hardiesse et l’extrême difficulté de cette tâche. {…} Essayer de tâcher d’y arriver, reste le plus noble devoir de l’homme.»
Albert Kahn In France Japon n°32 du 15 Août 1938
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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ResponderEliminarUm belíssimo post que é simultaneamente um merecido tributo a Kahn.
Gratidão
Para Albert Kahn nada é demais. Ainda hoje sentimos os bons efeitos da sua iniciativa tão original e subtil. MZarco
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