19 abril 2017

Dos hospitais

Por motivos pessoais, as últimas três semanas têm-me levado amiúde ao Hospital de Santa Maria. Ir a um hospital é mais do que o cumprimento de uma obra de misericórdia que "manda" visitar os enfermos. Ir a um hospital e observar o que se passa à volta pode ser quase a leitura de um jornal mais popular - ali está um bocado importante do país real, para além de nos confrontarmos com uma geografia humana feita de tristeza, miséria, desesperança, confiança, isolamento, abandono. 

Falar com os médicos pode ser uma proeza a vários níveis: (i) não há garantia que estejam no serviço, pelo que temos de falar com uma enfermeira que, na maior parte das vezes, nos diz para falarmos com um médico; (ii) alguns médicos têm uma linguagem específica. A título de exemplo - e conto na primeira pessoa - a informação de que alguém teve um problema de tensão pode ser transmitida como "o paciente teve uma alteração ao nível dos parâmetros tensionais"; e conto ainda um diálogo que, a este respeito, mantive com uma chefe de serviço:

- ontem vim cá e não havia nenhum médico;
- há sempre um médico no serviço; pode é não estar cá.

Ontem aguardei alguns minutos na entrada do serviço que iria visitar. Uma senhora dos seus cinquenta e alguns anos passeava agitadamente pelo espaço. A dada altura pediu "não se importa de resolver o meu problema? Tenho tantas coisas que tratar...". Do lado de lá não lhe deram resposta satisfatória, pelo que o tom de voz se levantou e percebi que se tratava de uma certidão de óbito. Que não podiam dar, que não era ali, que tal e coisa... Numa dado momento a senhora em questão exaltou-se mesmo e gritou com uma funcionária administrativa:

- não percebo porque é que a senhora se está a rir! Não percebe que morreu o meu marido mesmo agora e que isso é uma falta de sensibilidade?

Alguém a acalmou e explicou a desadequação do pedido da certidão naquele balcão, para além de ninguém se estar a rir. Antes de sair, ainda enervada e tensa, a senhora recém viúva teve ainda forças para se dirigir à referida funcionária:

- bom dia, passe muito bem. E só espero que o seu marido morra em breve...

JdB 

4 comentários:

  1. Segunda vez. A primeira foi engolida pelos infernos doa comentários.

    Desde 1970 que falta Autoridade que sempre teve os pés em factos e não em teorias.
    Sem Autoridade nada funciona bem.

    Os BONS directores de serviço que conheci não eram simpáticos (gajos porreiros); eram temidos. Chegavam um nico antes das 09:00h e saíam pelas 14:00-15:00h. Iam a casa almoçar e depois para o consultório. Nunca lhes faltou o pão.
    Também nunca vi ou ouvi que tivessem tramado alguém (excepto por notável/criminosa incompetência ou deslealdade para com a Nação).

    A falta de Autoridade abre totalmente as portas à incompetência. As actuais chefias (há quem os chame 'Carreiristas da Cunha') enfiam-se no gabinete para não terem de ser confrontados com os que trabalham e 'sabem da poda'. Ganham mais uns cobres, não se maçam, e quem vier depois que feche a porta.
    Nada me admira nas reles situações com que foi confrontado nesse hospital.

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  2. Obrigado pela sua visita.
    Do ponto de vista técnico, as condições de Santa Maria são, na sua generalidade, irrepreensíveis. O meu diálogo com a médica e a referência a um jargão excessivamente técnico tem apenas uma valência mais ou menos humorística, até porque falei com outra médica que teve comigo uma conversa bem mais prosaica.
    O resto - as enfermarias, a formação de pessoal não técnico, as condições hoteleiras - enfim, tudo isso são características de hospitais públicos. Vinga a ideia de que, quem entra lá, quando podia entrar num hospital particular, o faz por segurança e confiança. Foi o caso.

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  3. «Do ponto de vista técnico, as condições de Santa Maria são, na sua generalidade, irrepreensíveis».
    Certamente que é médico. Não escreveu do Santa Maria...
    Eu sou. E conheço muitíssimo bem o dito hospital. As condições, na sua generalidade, são irrepreensíveis. Nunca será equivalente a dizer que o dito hospital "cuide bem dos doentes".
    Uma coisa são as condições; outra será o uso que lhes dão.
    Haverá sempre as excepções que justificam a regra.
    Cumprimenta

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  4. Anónimo

    Obrigado.
    Por caso não sou médico, pelo que terei de pensar no que me levou a escrever "de" em vez de "do". Talvez um acto falhado apenas.
    Ainda ontem, de volta de uma mesa com amigos, comentávamos que grande parte do pessoal médico em Santa Maria (ou em todo os hospitais, públicos ou privados?) apostava muito na técnica e menos do que poderia / deveria ser o contacto com os familiares dos doentes no que se refere a informações.
    Vou admitir que haja uma grande sobrecarga de trabalho o que explica alguma coisa, mas não tudo, nomeadamente o jargão técnico ou a dificuldade que por vezes temos em encontrar alguém que nos diga alguma coisa
    É o que é...

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