Almada Negreiros também ajuda a celebrar a Páscoa, com o seu vanguardismo, beleza imensa e gosto insaciável pela vida. Até Junho, tem uma parte substantiva da obra exposta na Gulbenkian(1). São obras assombrosas, pois a criatividade e a sofisticação artística de Almada atingiram níveis de génio.
Nos recuados anos 30 do século passado, o Arqtº. Pardal Monteiro fez parceria com o pintor para responder a encomendas do Patriarcado, que queria modernismo nas novas Igrejas da capital. O primeiro trabalho da dupla situa-se na av. de Berna (curiosamente, veio a ficar perto da Gulbenkian) e foi inaugurado a 13 de Outubro de 1938 com o nome das Aparições que começavam a ter relevância oficial: «Nossa Senhora de Fátima». Em murais, no ferro e sobretudo nos vitrais lindos, que revestem a parte superior da Igreja, Almada deixou a sua marca luminosa. A representação da Santíssima Trindade é toda uma súmula teológica da Páscoa, iniciada no Bebé das palhinhas de Belém, passando pela Paixão e a abrir-se para o esplendor da Vida que renasce na madrugada do Domingo Pascal. A presença omnipotente e marcante do Pai glorioso, juntamente com a pomba do Espírito Santo, não deixam ensombrar a hora escura da crucifixão do Filho. Pelo olhar de Almada, a Luz prevalece sempre e contagia todo o ambiente:
Vitral da Igreja de Nossa Senhora de Fátima - Lisboa, 1938.
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Até a sua Pietá possui um brilho e uma vitalidade, onde a morte não pontifica, limitando-se a ser uma breve passagem, que desaguará na eternidade e recuperará a Vida para sempre. O corpo tenso do inanimado, de uma brancura fulgurante, está mais próximo da ressurreição do que do reino da inexistência. O morto sobressai, em cor nívea amansada pelos tons quentes dos laivos dourados. Sobressai ainda por ter a Mãe em fundo, com vestes azuis e em tonalidades de roxo solenes, porque o momento é difícil, mas não deixa de ser grande. Vislumbra-se o renascimento do Crucificado, depois de despontar de um sono curto. Jaz adormecido, em nada destruído, podendo mesmo contar-se-lhe os ossos ou descobrir-se-lhe a anatomia de homem adulto, antes vigoroso e potente. Poderia também corresponder à pose rigorosa de um bailarino a representar um morto, mas sem conseguir esconder a ossatura fantástica de um corpo esguio e atlético, esculpido pelos músculos e despojado, temporariamente, do sopro vital. Percebe-se quanto Almada era um apaixonado pela dança e pela coreografia, tendo-se desdobrado numa profusão de expressões artísticas, que convocava amiúde – umas e outras – nas suas obras. Até a Sétima Arte se pressente neste vitral: no suspense de um instantâneo capturado ainda inerte, mas concebido para viver. Não pertence ao submundo dos que jazem sem vida:
Vitral da capela de Nossa Senhora da Piedade, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima.
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Naquela hora de suprema dor, a figura maternal de Maria guarda a última réstia de energia para amparar o corpo dilacerado do filho querido, voltando-o para nós, em oferecimento. No mesmo abraço com que o enche de ternura, deixa-o também a descoberto, por nós. A Mãe do condenado começa logo a estender a maternidade a todos os humanos, segundo a missão que Jesus lhe confiara, minutos antes. As lágrimas ter-se-ão confundido com o «sim» mais sofrido e generoso dos muitos que lhe foram sendo pedidos, até ao fim. Inteiramente debruçada sobre Ele, parece também homenageá-lo. Sem saber, antecipa uma homenagem à magna obra da Criação, pois o Filho irá, finalmente, resgatar a condição humana dos grilhões da morte. Na Pietá de Almada, Cristo está pronto a reerguer-se e, com Ele, toda a humanidade.
Pardal Monteiro elogiou o contributo brilhante do pintor modernista: «No vitral, no mosaico, na pintura mural e até no ferro, o seu talento produziu obras que o colocam definitivamente no primeiro plano dos renovadores e dos impulsionadores da arte nacional (...) Pela colaboração que me deu, pelo muito que enobreceu e valorizou a minha obra, eu testemunho mais uma vez a minha admiração e o meu reconhecimento àquele a quem o meu colega Cottinelli Telmo chamou o mais arquitecto dos pintores portugueses, o pintor Almada Negreiros».
Em Almada, a vida é para ser celebrada, como convida a Páscoa. Não é por acaso que não há figuras horrendas na sua obra, nem feios repugnantes, nem aleixões desagradáveis ou quaisquer seres que perturbem a festa da existência, num artista que não se esquivou a representar toda a sorte de gentes. Ricos e pobres, esculturais e desfavorecidos, ninguém quebra a harmonia incrível que transborda dos seus trabalhos. Mas para lá da beleza daquela arte, chega-nos uma realidade vista por um olhar refrescante e vitamínico. Até por isso é imperdível a exposição (que merecerá um gin mais detalhado). Um bom exemplo desta positividade está no descritivo cinematográfico do naufrágio, algures por Moledo e exposto na segunda área de exposição, no andar abaixo. Não houve susto nem desgosto que não provocasse nova alegria. Não houve personagem ridícula ou irritante que não acabasse por fazer sentido na história. Para os múltiplos dilemas desencantou sempre uma óptima solução, pelo que todos adoraram rever o malfadado desastre através da brincadeira tão saudável que Almada lhes preparou, desintoxicando uma memória pesada.
Voltando à Páscoa: outra perspectiva forte e lúcida da ressurreição vem de Rembrandt, quase científico na sua abordagem. Segue à risca os Evangelhos, relatando a partir dos testemunhos da época. Para representar o regresso à vida – uma mensagem, já de si, bem arrojada – percebe-se que fazer luz sobre o mundo invisível se tornou incontornável. O ciclo natural dos acontecimentos não chega para reproduzir aquele episódio de desfecho insólito. O estranho terramoto, à hora exacta da morte do Crucificado, emitiu um primeiro sinal, reconhecido logo pelos soldados romanos. O excesso de familiaridade com condenações brutais não lhes permitia iludirem-se sobre a estranheza do que ali viram e ouviram, pelo que o centurião foi peremptório: «Este era verdadeiramente o Filho de Deus!» (Mt.27, 54). Talvez por isso, o pintor flamengo não tenha hesitado em centrar-se nos anjos que participaram na explosão de vida que irrompeu da mortalha de Cristo, como um segundo big bang do Cosmos, incontrolável para os soldados dos fariseus e príncipes dos sacerdotes, que se limitaram a presenciar, estarrecidos, uma realidade desconhecida:
Rembrandt, «Ressurreição de Cristo», 1639.
No museu de pintura
de Munique – Alte Pinakothek.
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Nada mais revelador e interpelativo do que percorrer a História pelo olhar dos artistas. Boa Páscoa a todos!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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Título da mostra: «José de Almada Negreiros: Uma Maneira De Ser Moderno».
Sou apreciador de Almada Negreiros. Pela obra e, sobretudo, pela pessoa.
ResponderEliminarA gulbenkian fez uma mostra de caca, à portuga. Salas e corredores sem informação para o visitante. Centenas de obras sem um papelito ao lado, explicando. Mesmo uma das suas grandes obras — Começar — encomendada pela dita fundação, estava arredada do percurso.
Maria Zarco, gosto dos seus trabalhos. Aqui falta a denúncia. Falta esmiuçar porque motivo foi chamado «o mais arquitecto dos pintores portugueses».
Obrigado