Enquanto a maioria das pessoas tem sorte se tiver um cliché que as caracterize na perfeição, para o protagonista desta história existem três ou quatro frases-feitas que lhe assentam como uma luva. Onde quer que fosse, entrava mudo e saía calado. Não tugia nem mugia, e tudo o que lhe aconteceu na vida começou e acabou sem ai nem ui. Nunca ninguém lhe ouviu uma queixa, um protesto ou uma frase mais exaltada. Mas também nunca disse um elogio, uma palavra simpática a um amigo ou promessas eternas a um amor de juventude. Na verdade, nunca ninguém o ouviu dizer fosse o que fosse.
Ao contrário da maioria dos bebés, nasceu sem os choros e gritos habituais, e esse silêncio inicial manteve-o até à morte. Os pais fizeram todos os exames, testes e análises possíveis. Levaram-no a médicos, médiuns e psicólogos. Ninguém descobriu qualquer problema. Só restava uma hipótese: o silêncio crónico era opcional. Não falava porque não queria.
Ninguém sabe se foi o nome que lhe deu o conteúdo ou ele que deu sentido ao seu nome. A única certeza é que Carlos Calado era mudo.
Mas essa sua característica não o impediu de ter uma vida escolar normal. Aprendeu as letras e os números. A escrever e a fazer contas. Tão bem ou melhor, já que era mais calado do que os colegas de turma. O maior problema foi com a leitura. Como não lia alto era difícil perceber se o sabia fazer ou não. Os seus professores não se preocuparam muito com isso. 'Nunca há de ganhar a vida como orador', pensavam eles.
A sua mudez também não o impediu de formar família. Conheceu uma mulher que trabalhava como telefonista numa empresa movimentada, e cujo maior desejo era o de, após o trabalho, voltar para casa e ter à espera alguém que não quisesse conversar. Era o casamento perfeito. E viveram neste arranjo ideal até ao dia em que ela fez uma descoberta inesperada.
Quando a telefonista se preparava para se deitar, já o Carlos estava naquele estado intermédio de vigília, fez uma pergunta alto para si própria. E, em vez de ouvir apenas o seu pensamento como resposta, escuta uma voz entaramelada atrás de si. Faz outra pergunta e acontece o mesmo. Era o Carlos que, no seu sono, respondia inconscientemente às perguntas que ela fazia de si para si. Uma pergunta atirada para o ar dava direito a uma resposta meio adormecida.
A partir dessa descoberta, todas as noites passou a fazer o mesmo. Fingia arrumações e ocupações e, quando Carlos estava no estado sonolento de vigília, começavam as perguntas. Foi com isto que começaram a surgir as curvas num caminho que, até esse ponto, tinha sido feito suavemente em linha recta.
Começou pela voz que nunca ninguém tinha ouvido. Era aguda e esganiçada, incomodativa. E acabou no conteúdo das respostas. Descobriu coisas que não queria, percebeu que muitas ideias que tinha sobre ele estavam erradas. O Carlos mudo, com quem partilhava o silêncio durante o jantar, era diferente do Carlos que falava durante o sono. E este facto foi o suficiente para que ela decidisse pôr um ponto final na relação.
Decidiu sair de casa e acabar tudo. Quando lhe comunicou a decisão, o Carlos perguntou, com a ajuda de um lápis e de um papel, 'porquê?'. E a telefonista limitou-se a responder-lhe 'pelas coisas que me disseste'.
SdB (III)
* publicado originalmente em 22.11.2010
* publicado originalmente em 22.11.2010
É pena não termos o SdB (III) a produzir mais textos destes, bem pensados e redigidos. Venham mais!
ResponderEliminarCoitada! Ninguém lhe ensinou a não fazer uma pergunta, quando não sabe o que fazer com a resposta. Parabéns SdB (III), nunca tinha lido este texto! Concordo com o comentário acima, gostava de ler mais. E vou gostar sempre! mfm(dB)
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