Abro com uma declaração de interesses: sou católico, vivo bem na Igreja que me acolheu e eu acolhi, acato as decisões e as regras, mesmo aquelas que me parecem mais desfasadas no tempo, reconheço na Igreja inúmeros erros, o que é sinal da sua humanidade e fragilidade. Por último, vivo recentemente aquilo que se chama uma situação irregular.
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Leio no Observador, ainda ontem, que a Diocese de Braga vai constituir um grupo para acompanhamento dos cristãos que se divorciaram e voltaram a casar. A Diocese emitirá um documento em breve, intitulado "Construir a casa sobre a rocha", que vai de encontro à exortação apostólica “Amoris Laetitia” (Alegria do Amor), do papa Francisco. Esta notícia suscita-me um post.
A minha roda de amigos é composta por gente entre os 56 e os 65 anos, maioritariamente. São quase todos casados: uns com primeiros casamentos que duram há 30 ou mais anos, outros com novas relações mais recentes, outros com segundas relações com mais de 20 anos, depois de erros ou infortúnios. Dos que frequentam a igreja ao Domingo, alguns recasados comungam, outros não. Os que não o podem / querem fazer têm pena, independentemente de acharem que podem ou não comungar, porque alguns, presumo eu socorrem-se da sua consciência para decidir o que fazer.
Nos últimos anos - e sei disto porque foi afirmado publicamente pelo Papa - os processos de declaração de nulidade dos casamentos têm sido agilizados. Eliminaram-se passos do processo e, com isso, encurtaram-se prazos. Talvez o crivo que definia quem era "elegível" ou não esteja maior, pelo que há mais casos. Todos nós, de uma forma ou de outra, conhecemos casos. Eu, sem um grande esforço de memória, conheço meia dúzia - alguns de gente da minha idade, outros de gente mais nova.
Desde que surgiu esta agilização que manifesto o meu desconforto por este caminho que a igreja parece estar a seguir. Se há casos que são óbvios, outros requerem um pensamento mais elaborado. Afinal, não falamos de dogmas. Assim sendo, alguns / muitos casais vêm o seu percurso de prática religiosa mais desimpedido. O que "diz" a declaração de nulidade? Que naquele preciso instante em que os noivos disseram que sim, perante o testemunho de um padre, não houve sacramento. Ambos os noivos são solteiros aos olhos da Igreja, pelo que podem receber de novo, não só o sacramento do matrimónio, mas outros que lhes estariam vedados.
De fora continuam todos aqueles, alguns com mais de 20 anos de novas relações, para quem as regras ou a consciência impedem o processo e declaração de nulidade. De fora continuam todos aqueles que cometeram um erro, ou foram vítimas de uma situação indesejada, e que quiseram refazer a sua vida conjugal.
Do ponto de vista do raciocínio intelectual (e não sei bem o que isto quer dizer) dizer-se que não houve sacramento não é fácil de entender. A minha tendência imediatista, totalmente desfasada do que deve ser, é encontrar justiça na decisão. Assim, num raciocínio muito leviano, a declaração de nulidade devia aplicar-se ao "queixoso", àquele/a que foi abandonado/a, a quem mentiram, que foi sujeito/a a violências de qualquer tipo. O/a outro/a, que enganou, agrediu, mentiu, segue de alguma forma impune, podendo refazer a sua vida. é justo? É sempre correcto?
Olho para alguns dos meus amigos: o segundo casamento deles é o primeiro casamento. Foi por esse segundo que lutaram, que perderam noites de vigília aos filhos, nalguns casos dias nos hospitais; foi por esse que deram tudo, porque o primeiro foi um erro curto com custos elevados, um azar, uma decisão leviana - ainda que consciente. Para esses a solução é escassa, ainda.
Há muito que defendo a solução da igreja ortodoxa para estas situações. Fulano recasou, não é elegível para o processo de nulidade, mas quer casar de novo. A igreja, depois de um período de acompanhamento e discernimento, aceita um segundo casamento. Não há exercício da consciência individual, não há rebelião contra as regras. O recasamento, mediante certas condições, é aceite pela Igreja, porque quem está à frente da paróquia sabe quem é Fulano. É a vida e prática religiosa da pessoa que fala por si.
Não sei o que se tem feito nas paróquias / dioceses por estes recasados não elegíveis para a declaração de nulidade mas que querem receber os sacramentos. Não sei se se faz alguma coisa, porque nada vem a público - apenas o caso da Diocese de Braga. Mas gostava de ver esta realidade bracarense replicada noutras dioceses, e que disso se desse notícia, para que muita gente possa ver que a exortação do Papa Francisco, neste caso específico, não caiu em cesto roto.
JdB
“Doy gracias a Dios porque muchas familias, que están lejos de considerarse perfectas, viven en el amor y siguen adelante, aunque caigan muchas veces a lo largo del camino” Amoris Laetitia (numeral 57, capítulo 3)
ResponderEliminarObrigada por falar sobre este tema, que não é de menos importância. Hoje tudo se agiliza em nome de um elogio à celeridade e desburocratização, que acaba por se tornar vazio de sentido (questão diferente são os custos associados ao processo, mas não é disso que falamos). Há questões que pela sua profundidade não podem, nem devem, ser agilizadas. Não se pode "agilizar" a declaração de nulidade de um casamento que durou 30 anos, não se pode "agilizar" a declaração de nulidade quando há filhos ou netos, ou, mais grave, não pode declarar-se a nulidade de um casamento católico oficiosamente.
ResponderEliminarA seriedade e maturidade que se pede a quem se apresenta para assumir um compromisso para a vida tem de ser proporcional (ou diria mesmo superior) à que se pede a quem quer declarar perante o Céu e a terra que nunca esteve verdadeiramente comprometido com a família que formou. E essa é uma declaração brutal.
É um tema sensível, mas não deve ser desvalorizado porque não se tratam de "casos" - são pessoas, são famílias, são gente que está a fazer o seu caminho e procura acolhimento na Igreja.
Sou casada, reconheço a verdade que se pode viver numa segunda conjugalidade e não sou contra a declaração de nulidade dos casamentos católicos (dentro dos critérios definidos). Sou é contra fazer cessar uma pretensa mentira, com outra mentira.
Fico contente que se estejam a dar passos no sentido do acolhimento e não um virar de costas a quem vive um segundo casamento, porque enquanto católicos, queremos todos o mesmo - a comunhão com Deus.
Muito bem João, gostei muito e que se resolva este assunto ràpidamente!!!
ResponderEliminarEu quando lia estas revia-me em cada letra, em cada palavra e no meu caso para além de uma segunda hipótese tive a alegria de começar uma nova vida com duas filhas. Hoje todos os 3 quase 4 têm uma vida religiosa em casa como outros em casos mais "normais" não terão. Continuamos participativos mas confesso que o facto da igreja me fechar as portas (mas a igreja não fecha portas a ninguém e isso deixa-me um pouco confuso) através da rejeição de certos sacramentos, deixa-nos abatidos e quase esquecidos (sentimento). Mas com força, fé e união nada nos desviará do caminho do baptismo. Dormimos de consciência tranquila de mãos dadas com Deus e é essa fé que nos mantém felizes e unidos, principalmente no que toca a ensinar os nossos filhos. Aconteceu connosco aquilo que não tem que aconter com vocês. Obrigado pelo artigo.
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