08 agosto 2018

Duas Últimas *

Escrevo sob o signo da nostalgia. Quoi de neuf?, perguntariam os franceses (aplaudidos pelo meu amigo ATM)...

Este estabelecimento festejou, sábado passado, três anos de vida. No meu modesto apartamento ao Monte do Estoril, o nosso embaixador no Zimbabwe mata saudades do solo pátrio enquanto a troika não limita as férias. Hoje, mas há três anos, faltavam dezasseis dias para eu embarcar com destino ao país de Mugabe, numa viagem que me marcaria para sempre.

É difícil - e talvez desinteressante, digamos mesmo - descrever o gosto que tive naqueles dois meses. Não foi só, obviamente, a simpatia e amizade inexcedíveis com que fui recebido. Foi conhecer uma parte significativa da África profunda, menos turística, menos devassada, menos invadida por hordas de turistas que passam por tudo sem se deterem em nada; foi sentir a fragilidade mais confrangedora na ala das crianças com cancro de um grande hospital em Harare; foi encontrar as paisagens mais deslumbrantes, os ocasos mais inesquecíveis, as cores e os cheiros que me acompanharão para sempre; foi conhecer o encanto dos jacarandás em flor e a ternura das crianças fardadas em bandos;  foi dessedentar-me com um gin tónico ao pôr-do-sol, quando a poucos metros um rinoceronte fazia o mesmo num charco; foi subir ao monte Ngomakurira e perceber onde está o infinito.

Escrevo hoje, tendo na memória esse tempo que ficou cá dentro como mais nenhum ficou. Dessa época guardo também o Mia Couto e uma frase com que me cruzei e que, como tantas coincidências significativas, não pode ser vista à luz de um tempo que é, mas de um tempo que vai sendo. Como se as coisas verdadeiramente importantes fossem um percurso, mais do que um destino, ou  o mistério dos encontros e desencontros fosse algo resplandecente e tivesse, só por si, um brilho que perdura e que ilumina a bacidez dos dias.

A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo.

Passado este momento de nostalgia críptica tendo o Zimbabwe como pano de fundo, fechem os olhos e imaginem a sensualidade africana, que foi sempre um misto de tentação e libertação.

JdB



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* publicado originalmente em 19 de Julho de 2011. As datas do texto têm de ser "lidas", obviamente,  à luz do momento. Não obstante, são actuais, já que hoje, mas há 10 anos, tinha chegado ao Zimbabwe há três ou quatro dias. Há dias, esses e outros posteriores, que desaparecem na espuma dos dias. Infelizmente.

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