04 setembro 2018

Da humanização dos animais (II)

Volto ao tema, para englobar no meu mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa um certo elogio àquelas duas senhoras que, no veterinário aonde levo o meu cão, lidaram com os delas como se fossem seres humanos: a senhora que tratou a cadela por princesa (sendo que não é nome, mas ternura) e lhe falou de ciúmes, a outra senhora que, tendo apresentado à cadela um cão que era igual ao primo (primo da cadela, pois o irmão da senhora também tinha um cão de uma raça específica), se despediu do animal dizendo: a mãe vai-se embora, que a mãe tem de trabalhar. E a esta frase voltarei, que há aqui pano para mangas, mesmo que sejam curtas e de pouca qualidade.

Há em mim um perfil militar que herdei de um desconhecido antigo, e também por isso tenho uma relação forte com a autoridade, com a hierarquia, com a cadeia de comando. Por outro lado, sou pai de filhos e avô de netos. Estas duas vertentes, que aparentemente se desligam uma da outra a não ser pelo facto de se aplicarem à mesma pessoa, são condição necessária - e, quiçá, suficiente - para manter o diálogo com o meu cão a uma certo nível que não ultrapasso. Tento que o cão me obedeça e que não seja o contrário. Sendo que ele não foi registado como meu filho, não me referirei a ele nesse sentido. E é por isso que não o abordo dizendo o pai vai trabalhar. Fora isso, tudo em mim revela uma senilidade semelhante; por vezes trato o cão por senhor, elogio-lhe a esperteza e falo alto no afecto incondicional que tem por mim (algo que rareia cada vez mais entre as pessoas) e talvez me lamente, quando ele me faz companhia, de mazelas das costas ou da alma. O que me diferencia relativamente às outras senhoras? Um certo pudor de linguagem que usaria também se estivesse no médico com um filho, e a certeza, detectável a olho nu, que o meu cão não é meu filho.

Dizer a mãe vai-se embora que a mãe tem de trabalhar, é uma frase ousada, que requer algum pensamento, sendo que não está em causa a possibilidade da senhora mentir. Uma vez que a cadela não entende o que a senhora diz, mas entende o tom de voz, a senhora poderia dizer - e se usasse o mesmo tom surtiria o mesmo efeito - frases do tipo a minha sogra é uma víbora ou se eu soubesse que o fernando era assim na cama não me tinha casado com ele. Ou poderia explicar o processo de fabrico do bacalhau com broa, começando com o desvelo com que se cortam cebolas em meia-lua. No fundo, o importante é o tom e a mão que, irmanada no mesmo afecto que a voz, afaga o pelo do animal em questão. Mas a senhora foi mais longe, e sentiu a necessidade de dizer ao cão que ia trabalhar e que só por isso é que o abandonaria. Podia ter-lhe recitado Sá de Miranda, que os olhinhos do animal seriam sempre de espanto.  

Na realidade, há apenas duas coisas que me distinguem daquelas duas senhoras: um certo pudor (também não digo alto num consultório Vítor Manuel, filho, como queres logo à noite o teu bitoque?) e o teor da frase, pois nunca diria ao meu cão que vou trabalhar, mesmo que não use a expressão pai. Tento ser honesto, porque nunca se sabe o que estes animais percebem...

JdB  

3 comentários:

  1. Bom dia JdB

    Obrigado pelo humor fino e certeiro.
    Visto pelo lado dos cães, o comentário provável seria: estamos aqui para ouvir e nos importarmos com o que mais ninguém ouve ou se importa, por exemplo "vou trabalhar". Vida a vazios.

    abraço

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  2. De facto o senhor tem graça e descreve com muita leveza sobre coisas sérias.
    Passou-me pela cabeça uma ideia tortuosa.
    Será que as pessoas que se manifestam tão afectuosas com os animais são assim com os seres humanos, transeuntes passageiros ou aqueles com que se cruzam diariamente à saída da mesma casa de banho?
    Por outro lado, será que os mesmos que se manifestam tão carinhosamente com os animais querem dizer aos mesmos com quem se cruzam à porta da mesma casa de banho que estes são indignos dos seus afectos?
    Ou será ainda, que estamos cada vez mais humanizados e perdemos a naturalidade incondicional dos canitos de dar e receber afecto?
    Não sei, eu talvez seja igualmente displicente com os humanos e com os animais.

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  3. Anónimo: agradeço a sua visita, desta vez evidenciada. E sou solidário consigo (nesta e noutras causas, seguramente): por vezes o nosso cão é o único ser vivo que nos ouve, ou que pelo menos dá a aparência de o fazer. Há um conto bonito de um escritor russo (Tchekov?) em que o cocheiro, desesperado porque ninguém lhe ouve o drama da morte da filha, se encosta a um cavalo e conta-lhe tudo, certo (com uma certeza da alma, que são as mais fidedignas) de que é escutado.

    ACC: a sua visita - para mais comentada- gera a alegria surpreendente das coisas raras. Tenho a dizer-lhe que meditei no seu comentário, e me questionei como sou eu, o que faço com quem me cruza. E é assim, neste repente em que me atiro à resposta: com os cães tenho um sentido estético que não tenho com os seres humanos. Isto é, um Labrador suscita-me um afago e um sorriso; um cocker também, apesar de feitios irascíveis; a um S. Bernardo movem-me abraços difíceis, dado o volume dos ditos; o Doberman não me atrai, naquele corpo excessivamente atlético e que esconde uma agressividade arrogante; um Chihuahua, pela sua pequenez, afugenta-me. É a estética canina que vincula o meu comportamento com eles. Já nos seres humanos não sei o que é, há um mistério na forma como me relaciono. Abraço um gordo e fujo de um magro, mas também pode acontecer a inversa. Por vezes, em casos muito raros, direi eu, o nosso cão constitui-se como destinatário único de tudo, porque ninguém quer saber se vamos trabalhar, ninguém manifesta a vontade de um afago a meio da tarde. E o cão quer. Será isso?

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