10 outubro 2018

Vai um gin do Peter’s?

AS ARMAS SECRETAS QUE TRAVARAM O IMPÉRIO OTOMANO, NUM 7 DE OUTUBRO

Épocas atribuladas na história da Europa são incontáveis. Estamos longe de viver os tempos mais inseguros. Basta o longo período de paz, em que vivemos, pontualmente interrompido por um ou outro ataque terrorista nalgumas metrópoles.

Recuando ao século XVI, o nosso pequeno continente agonizava sob as guerras fratricidas entre os fiéis ao Papa e os adeptos da Reforma protestante, com as variantes luterana, calvinista ou anglicana. A Oriente, a ameaça ainda se apresentava mais temível, com as investidas violentas do sultão turco, conhecido por O Magnífico.

Sob Solimão, O Magnífico, os avanços militares turcos, iniciados no séc. XIV, aumentaram em número e ferocidade. Estavam apostados em estender o Império Otomano a toda a bacia mediterrânica e implantar um novo modus vivendi na Europa do Sul. Havia mesmo a intenção de transformar a Basílica de S.Pedro em mesquita, qual estocada mortífera no coração da cristandade. Quando Solimão morreu (1566), o filho Selim II continuou a política expansionista do pai, querendo levar ao zénite a bem oleada máquina de guerra que herdara.


Logo em 1570, ciente do perigo que pairava sobre o Vaticano, o Papa Pio V preveniu os soberanos europeus da iminência da tomada da ilha de Chipre pelos turcos, que passariam a controlar a faixa oriental do Mediterrâneo. Apesar da ameaça que representava, a mobilização dos contingentes na Europa ainda tardou. Apenas um cavaleiro abraçou logo a causa, secundado pela Ordem de Malta, sendo-lhe confiada a liderança da iniciativa ––  D.João de Áustria ––  meio irmão de Felipe II de Espanha [e I de Portugal, a partir de 1580]. Sendo filho ilegítimo de Carlos V, viu na empreitada uma oportunidade de ouro para adquirir estatuto e provar bravura. 

A custo, ergueu-se a Liga Santa, formada por: Espanha, que agregava os reinos de Nápoles, Sardenha e Sicília; os Estados Pontifícios; as Ordens de Malta e de Santo Estêvão; os Cavaleiros de S.Lázaro; a República de Génova; o Grão-Ducado da Toscana; o Ducado de Sabóia; o Ducado de Urbino; e a potentíssima armada da República de Veneza, que dispunha de embarcações de guerra revolucionárias – as galeaças. Com apenas seis, revelaram-se cruciais para a vitória.

Estandarte da Liga Santa

Galeaça veneziana usada em Lepanto. Gravura de 1851, replicando os modelos de 1570s.

Em Setembro de 1571, os cavaleiros da Liga levantaram ferro rumo ao largo da costa grega, para enfrentar a gigantesca armada turca, em Lepanto. Levavam ordens do Papa para acrescentarem à valentia, tão necessária nesta luta desigual face à supremacia turca, uma preparação espiritual reforçada com jejum, oração, confissão e comunhão, antes da batalha. Para o efeito, cada embarcação transportava um sacerdote encarregue desta “armadura” adicional ao equipamento bélico, puro e duro. O Papa pedira ainda a toda a cristandade para rezar terços, em contínuo, nas vésperas e no dia da batalha, a implorar a intercessão especial de Maria para vencerem um inimigo superior em embarcações e homens. Era a Europa, por junto, que estava no olho do furacão. 

Do lado europeu, animava-os a coragem, o carisma e o empenho de D.João de Áustria, além do apelo lancinante do Papa, temendo o pior. Como registaram as crónicas da época, parecia uma missão suicidária. Horas antes do ataque, D.João esgueirou-se num pequeno barco para cumprimentar e incentivar cada galé a dar o máximo. 

Na madrugada de 7 de Outubro, a Liga avançou corajosamente sobre o adversário, numa disputa encarniçada, que é considerada a última grande batalha com embarcações a remos, e a maior desde a Antiguidade, envolvendo mais de 400 galés. 

Batalha naval, em Lepanto, a 7 de Outubro de 1571.
De autor anónimo, a tela data do final do séc. XVI e pertence ao
«Maritime Art Greenwich», em Londres.

No Vaticano, o Papa tinha rezado intensamente noite adentro. E, mal a luta terminou, Pio V interrompeu a reunião, que decorria no Vaticano, para anunciar o sucesso e pedir que agradecessem a Deus por aquele resultado inalcançável só por meios humanos. A forma misteriosa como o pontífice conhecera, de imediato, o desfecho da luta, quando não havia meios de comunicação à distância, ajudou a certificar o favor divino neste brutal embate entre civilizações e religiões. Até o vento começara por desfavorecer a Liga; inesperadamente, mudou e passou a penalizar o poderoso flanco otomano.   

Lepanto foi de tal modo decisiva para travar as investidas turcas, que a Batalha se tornou de imediato um marco histórico e tema de telas, frescos, romances, poemas. Chesterton dedicou-lhe um; Cervantes, o genial criador de D.Quixote, participou na luta e contagiou o seu protagonista da loucura desproporcionada que viveu naquele 7 de Outubro, onde foi ferido, perdeu a mobilidade da mão esquerda e acabou prisioneiro dos turcos durante 5 anos; Emilio Salgari também tratou o tema em duas novelas históricas: «Capitan Tempesta» (1905) e «Il Leone di Damasco» (1910).

No rescaldo da luta, as encomendas aos pintores e artistas garantiram que a memória daquele feito basilar para a preservação da Europa, não se perderia, observando-se nos artistas venezianos um tom de reportagem quase jornalístico:  

Fresco do veneziano Fernando Bertelli, 1572, em destaque
 no final da Galeria dos Mapas, nos Museus do Vaticano.

«Batalha de Lepanto» de Martin Rota, 1572, Veneza.

«A Batalha de Lepanto», de Andrea Vicentino (c. 1600, Palácio Doge, em Veneza).

Rapidamente, a representação da Batalha acrescentou ao mar tingido de sangue e cadáveres, o suspense vivido num Vaticano orante, onde se acumulou ao milagre do êxito militar, a antevisão, em tempo real, desse desfecho magnífico. Dois anos depois, Pio V instituiu, a 7 de Outubro, uma festa em honra de «Nossa Senhora da Vitória». Volvido mais de um século, a solenidade foi estendida a toda a cristandade (1716) com uma nova evocação – «Nossa Senhora do Rosário», numa referência directa à arma mais secreta da vitória.  

«Alegoria da Batalha de Lepanto», Paolo Varonese, em 1572,
no ano a seguir à grande proeza. 

Fresco de Giorgio Vasari, de 1572, na Sala Regia. Alegoria sobre Lepanto
com os três poderes da Liga Santa, em primeiro plano. 

Os três líderes militares vencedores: João de Áustria, Marcantonio Colonna (Vice-Rei da Sicília)
e Sebastiano Venier (Veneza).
Óleo de autor anónimo, de 1575, que pertenceu ao Castelo de Ambras, na Áustria,
até transitar para o «Kunsthistorisches Museum» de Viena.

Para lá da eficácia das galeaças venezianas e de alguns pontos fracos imprevistos no lado turco, atribui-se à Senhora a espantosa reviravolta no curso dos acontecimentos em favor da Liga, a ponto de ter desfeito o sonho otomano de conquista da Europa. Também eles tinham ficado intimidados com a magnitude de uma derrota, difícil de prever e de entender a fundo.  

Coincidentemente, também o Papa do nosso tempo aproveitou o mês de Outubro para lançar um apelo forte aos cristãos para rezarem o terço diário, pedindo pela união da Igreja, que defronta ameaças divisivas, precisando de encontrar o ponto de equilíbrio numa unidade disponível para se deixar enriquecer continuamente por uma diversidade que também recuse ser desagregadora. 

Vem a calhar o alerta dos U2 a convidar as mulheres a avançar. Numa balada suave e interpelativa, cantada na tournée de 2018 (com passagem por Lisboa, em Setembro), entoam um refrão telegráfico e apocalíptico, em crescendo: «Women of the world take over, because if don’t, the world will come to an end and it won’t take long». No ecrã vão desfilando frases alusivas à influência benigna e específica da sabedoria feminina. Um dos escritos evoca a atitude fraterna que as mulheres inspiram na humanidade: «Sisters and brothers stand up for each other». De certo modo, ecoa o modo poético como a feminista norte-americana Camille Paglia caracteriza a feminilidade a partir da marca maternal escondida, mas omnipresente nos refolhos da sua carne: «cada corpo feminino contém uma célula da noite arcaica, diante da qual o conhecimento se sustém»(1). Não faltam momentos na história que o confirmam, como o prova cada intervenção da Senhora, a quem voltamos a pedir ajuda, no Outubro do nosso tempo.

Nota – o vídeo com a música surge mais abaixo, neste link: 


Maria Zarco 
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_________________
(1) Citação do livro da norte-americana «Mulheres Livres, Homens Livres», recentemente traduzido para português e publicado pela Quetzal.

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