24 janeiro 2019

Das arrumações e dos gurus das arrumações

Seiri        Separar o necessário do desnecessário
Seiton        Colocar cada coisa no seu devido lugar
Seisō        Limpar e cuidar do ambiente de trabalho
Seiketsu        Criar normas
Shitsuke        Todos ajudam

***

O mundo é, definitivamente, um lugar estranho. Eu explico: as cinco palavras acima compõem uma técnica japonesa de arrumação de locais de trabalho (eventualmente de outros) chamada 5S. O motivo para o nome parece-me bastante auto-explicativo... Usei-a muito na minha vida de empregado fabril. E usei-a com grande satisfação porque, bem aplicada, deixava oficinas - locais que não primam habitualmente pela higiene - prontas a servir de refeitório. Seguindo uma ideia-chave - um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar -, a técnica permitia deitar fora muito lixo, criar padrões de arrumação, questionar o que se arquivava e como se arquivava, definir tempos máximos para fornecer respostas ou dar informações. A técnica, repito, é muito boa e, bem aplicada, gera resultados fantásticos. Não irei alongar-me mais sobre o tema, para não arriscar a debandada geral.

Aderi finalmente ao Netflix. Um destes dias sentámo-nos a ver a Marie Kondo, de quem já me tinham falado. Japonesa franzina, como são todas, tem uma cara simpática e sorridente e é, supostamente, uma espécie de guru sobre arrumação de casas. No primeiro episódio que vi (e parece-me ser o primeiro da primeira temporada) Marie Kondo visita uma casa onde vive um casal com dois filhos pequenos, casal esse que vive momentos conjugais difíceis devido ao caos doméstico: loiça suja, roupa suja, desarrumação, falta de tempo e de paciência. Ao longo de 25 visitas, parece-me, ensina-os a arrumar, a limpar, a organizar coisinhas em caixinhas, a distribuir as facas e colheres de pau pelas gavetas. O resultado é fantástico: o casal ama-se de novo, há tempo para tudo, a casa está um brinco, as crianças mais felizes. Marie Kondo, o guru da arrumação, faz, metaforicamente falando, mais um risco na coronha. 

Falamos de um casal com dois filhos, e não de uma família numerosa com 7 ou 8. Falamos de gente desarrumada e com níveis de higiene abaixo do mínimo civilizado. Aprenderam alguma coisa? Não faço ideia, nem é por isso que não verei mais o programa. O que mais impressão me fez foi o facto das regras de arrumação serem todas do mais elementar bom senso - ou apenas inúteis. E impressionou-me que metade do tempo a dona da casa diz Oh My God, a outra metade abraça a japonesa (hábito pouco nipónico) e a outra metade (como se houvesse três metades) chora de emoção. Há ainda uma outra metade (como se houvesse quatro metades) em que Mary agradece à casa, fala com a roupa, medita de joelhos sobre a carpete (um risco de saúde). 

Num certo tempo, os gurus de qualquer coisa eram visionários, arrojados, a romperem com normas e hábitos vigentes, a deitarem um olhar mais além. Eram gente que tocava no destino do próximo ou produzia ideias fantásticas. Agora há um guru da arrumação: Marie Kondo, japonesa, que fala com a roupa, com a casa, que agradece ao algodão com a mesma alegria com que agradece ao terylene, que é uma espécie de S. Francisco dos objectos. 

Antes de me certificar que as colheres de pau estão arrumadas por tamanho (recomendação importante) deixem-me dizer que mão amiga me mandou o link para se poder ouvir a Mixórdia de Temáticas do Ricardo Araújo Pereira. Ele viu o que eu vi - mas conta-o com mais graça... 

JdB       

2 comentários:

  1. Às vezes, o minimalismo é mesmo resultado de um mínimo de capacidade pensante. Reduz-se o objetivo, minimizam-se os meios para o alcançar, e, em vez de lembrarmos que, como dizia o poeta Sebastião da Gama, "pelo sonho é que vamos", vamos indo pelas t-shirts, tapetes e outros têxteis não menos úteis, alcançando, num final apoteótico, um êxtase quase místico... Enquanto formos indo por esses caminhos, não vamos mesmo é a lado nenhum.

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  2. Graça,

    Obrigado pela visita.
    E tem razão - entre minimalismo de objectos e minimalismo de ideias a fronteira pode ser um fio de cabelo. Ficamos mais leves, seguramente, mas não sei se ficamos melhores...

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