31 outubro 2019

Poemas dos dias que correm

O 3 de Maio de 1808 em Madrid  (Francisco de Goya, 1814)

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

30 outubro 2019

Duas Últimas (sugerido por mão amiga)



I was always working steady
But I never called it art
I got my shit together
Meeting Christ and reading Marx
It failed my little fire
But it’s bright the dying spark
Go tell the young messiah
What happens to the heart

There’s a mist of summer kisses
Where I tried to double-park
The rivalry was vicious
The women were in charge
It was nothing, it was business
But it left an ugly mark
I’ve come here to revisit
What happens to the heart

I was selling holy trinkets
I was dressing kind of sharp
Had a pussy in the kitchen
And a panther in the yard

In the prison of the gifted
I was friendly with the guards
So I never had to witness
What happens to the heart

I should have seen it coming
After all I knew the chart
Just to look at her was trouble
It was trouble from the start
Sure we played a stunning couple
But I never liked the part
It ain't pretty, it ain't subtle
What happens to the heart

Now the angel’s got a fiddle
The devil’s got a harp
Every soul is like a minnow
Every mind is like a shark
I’ve broken every window
But the house, the house is dark
I care but very little
What happens to the heart

Then I studied with this beggar
He was filthy, he was scarred
By the claws of many women
He had failed to disregard
No fable here no lesson
No singing meadowlark
Just a filthy beggar guessing
What happens to the heart

I was always working steady
But I never called it art
It was just some old convention
Like the horse before the cart
I had no trouble betting
On the flood, against the ark
You see, I knew about the ending
What happens to the heart

I was handy with a rifle
My father’s .303
I fought for something final
Not the right to disagree

29 outubro 2019

Do abandono e do regresso

Ao fim de dez anos de andanças por estes congressos onde se fala de oncologia pediátrica, é forçoso que se estabeleçam relações de natureza diversa: há o japonês, que conheço há dez anos e com quem nunca troquei mais do que palavras de circunstância; há o israelita com quem converso fluidamente e troco histórias; há a comunidade austríaca, feita de profissionais e sobreviventes, com quem me dou particularmente bem, com quem rio e converso seriamente; hás a luxemburguesas, as suíças, a neozelandesa com quem tenho uma relação bem disposta; há as indianas com quem tenho uma relação cordial, as indonésias ou alemães com quem tenho uma relação educada mas formal. E outras nacionalidades... Não faço alarde das internacionalização destes congressos: é assim que é: somos 171 organizações em quase 90 países; mesmo que não estejam lá todos representados, há muitos...

Estes congressos são momentos, também, de partilha, não pública, em frente a uma audiência, mas em frente a um café, num intervalo, na ponta de uma mesa de jantar, no cansaço de um fim de dia a ouvir e a raciocinar e a falar numa língua que não é a nossa. Vamos conhecendo as vidas, as dificuldades, as opções, as características. Para pessoas como eu, que gostam de dar profundidade e intimidade às relações, são momentos que podem ser de privilégio.

Diz-me alguém com quem converso: tenho horror à partida dos outros; tenho horror ao sentimento de abandono. Converso com outra pessoa que me diz: de onde quer que venha, mesmo que seja das férias mais divertidas, adoro o regresso a casa. Olho para dentro de mim. Não tenho o horror ao abandono, mas tenho um apego muito grande pelo regresso a casa, sendo que o itálico traduz que a expressão pode ser lida de forma metafórica. O horror ao abandono e o desejo de regresso cruzam-se, ainda que não de forma óbvia. Ambos falam da segurança conferida por algo ou por alguém. O regresso a casa pode ser um espaço, pode ser uma receita de compota de laranja, como no caso do marinheiro da equipa de Shackleton no Pólo Sul, a quem foi dito para levar apenas o essencial. Ou uma folha da Bíblia, no caso de outro marinheiro. Há abandono na mudança de uma casa como há regresso a casa mesmo que seja uma que não é nossa?

Olho à volta da sala onde se fala de oncologia pediátrica: vejo mães ou pais que perderam filhos e que teimam em encontrar um sentido para a vida nestas coisas; vejo sobreviventes que podiam ser outra coisa mas que querem ser sobreviventes nas organizações, vejo médicos a quem morrem crianças e que podiam ser dermatologistas a tirar rugas; vejo gente saudável, que ri, que tem um semblante triste mas que acodem a centenas ou milhares de crianças num Irão difícil, pejado de refugiados. Vejo gente que tem medo do abandono ou que deseja o regresso a casa. Vejo tudo, mas sei que só vejo uma parte pequena do que as pessoas são. Ou do que eu sou.

JdB

28 outubro 2019

Fotografia e poema dos dias que correm

Lyon em Outubro de 2019, visto por um iPhone
Oásis

Aquela praia-contraste
Entre a liberdade e a lei
(Aquela praia ignorada!)
Foste tu que ma mostraste
Ou fui eu que a inventei?
Lençol de seda ou de linho?
Lençol de linho bordado?
Deitei-me nele ao comprido...
Lençol de seda ou de linho?
Lençol de espuma comprido...
Lençol de areia queimado!
Ai! aquela praia! Aquela
Que, na minha embriaguez
Manchei sem dó! Fiquei triste
Logo da primeira vez
Em que a vi... Não o sentiste?
Agora, lembro-me dela
Como de um lençol de renda
Rasgado por minha mão...
E fico triste, tão triste!
Todas as praias são brancas
E só aquela é que não!
Moinhos que andais no vento,
Leite que escorres na Lua,
Quero pedir-vos perdão!
Mas é tão grande, tão grande
Ai! é tão grande o contraste
Entre a liberdade e a Lei
Que, às vezes até nem sei
Se aquela praia ignorada
Foste tu que me mostraste
Ou fui eu que a inventei...

Pedro Homem de Mello

27 outubro 2019

30º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 18,9-14

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus disse a seguinte parábola
para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros:
«Dois homens subiram ao templo para orar;
um era fariseu e o outro publicano.
O fariseu, de pé, orava assim:
'Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros,
nem como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e pago o dízimo de todos os meus rendimentos'.
O publicano ficou a distância
e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu;
Mas batia no peito e dizia:
'Meu Deus, tende compaixão de mim,
que sou pecador'.
Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa
e o outro não.
Porque todo aquele que se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».

25 outubro 2019

Petit riens de um congresso


- Amiga das distantes Filipinas manda-me a imagem acima. 

- Converso com o presidente cessante da SIOP (Société Internationale de Oncologie Pédiatrique) com quem travei conhecimento e amizade no ano de todos os anos, 2001. Cruzamo-nos uma vez por ano, em sítios onde se fala de esperança, de tratamento, de doença, de estatísticas injustas. É oncologista pediátrico há 30 anos. Quando se reformar tentará ir para África fazer voluntariado. Se voltasse atrás? Fazia tudo igual. Todos os dias toca numa fotografia que tem pendurada no sítio onde trabalha. Toca no nariz de uma rapariga que o levou a rapar o cabelo e que morreu. Foi esta e mais outras que não conseguiu salvar. Se voltasse atrás? Fazia tudo igual.

- Assisto à apresentação de um funcionário superior da OMS, médico novo, responsável pela iniciativa global de combate ao cancro pediátrico. É um homem competente, afável, que sabe as estatísticas: 80% de sobrevivência nos países desenvolvidos, 20% de sobrevivência nos países que o não são, onde estão 90% dos casos de cancro infantil. Tirou umas férias, depois de ter tido uma filho há 4 meses. Para onde foi? Fazer voluntariado médico para o Quénia. 

- É nestes médicos que vejo a essência da medicina. Outros haverá que não conheço, muitos haverá que querem negócio. Mas é destes que quero falar agora, para que não me esqueça que sou vice-presidente de uma associação global que lida com estes temas, e com os 20% de sobrevivência. 

- Vejo brasileiros, ugandeses, iraquianos, japoneses, suecos, chilenos, coreanos, austríacos, russos chineses ou franceses. Riem, abraçam-se os que são de abraçar; cumprimentam-se, revêm velhos amigos. Falam a mesma linguagem da esperança e das estatísticas que teimam em aparecer. São a minha grande família internacional, em frente de quem  (não estes, mas outros iguais) chorei pela primeira vez em 2002, por falar destes temas que me acompanham há 18 anos. 

- Vejo um filme sobre irmãos em luto. Um filme duro, desafiante, que nos faz relembrar distracções dolorosas com os nossos filhos sobreviventes, que nos faz pensar no tanto que temos de fazer. Miúdos que só viam as fotografias do irmão morto em casa, ou que achavam que só tinham o amor dos pais se estivessem doentes, ou que teimam em não soltar nem soltar-se.  

- Faço trocadilhos, rio, gozo com amigos, falo alemão (que é uma forma de fazer trocadilhos incompreensíveis), arrisco o francês e as três palavras que sei dizer em russo. Falamos a língua da esperança e das estatísticas, mas cada um também fala a sua original, onde se refugia, onde tem mau feitio e defeitos. Praguejo em português porque estou cansado ou me sinto destratado, choro em francês quando o presidente do SIOP se refere a mim num discurso de despedida, ou fungo em etíope porque sim.

- Passar uma semana nestas andanças é um cansaço mental, uma cansaço físico e, por vezes, um cansaço da alma. Se voltasse atrás? Fazia tudo igual, talvez melhor. Nesse sentido sou um felizardo. 

Desculpem qualquer coisinha.

JdB

24 outubro 2019

Petit riens de uma viagem de avião a Lyon


De Lisboa para Lyon o voo foi simpático, apesar de muito cedo. Avião do tipo usado pela Portugália; serviço simpático, com uma hospedeira a pedir-me, educada e encarecidamente, se eu podia ir para a fila da saída de emergência, algo que é o desejo de gente grande como eu. 

Duas notas de curiosidade:

Parte significativa dos passageiros provém da África francesa subsariana, algo que se percebe pela cor da pele e pela língua falada. Já a assistente de bordo havia anunciado que descíamos para Lyon e que para isso tínhamos de nos manter sentados e com o cinto de segurança apertado, eis que um afro-francês se levanta, de escova e pasta de dentes na mão. Estou habituado, quando isso acontece, a que alguém do pessoal de bordo se levante e encaminhe o passageiro de volta para o lugar. O sistema utilizado naquele momento foi mais eficiente: transmitido pelo sistema de som da avião, para que toda a gente ouvisse, a instrução foi clara: PLEASE GO BACK TO YOUR SEAT. SIT DOWN!

Reparem na fotografia acima: você está sentado próximo à porta de saída de emergência.  Mas que raio de português é este? Você? Está sentado próximo à? Próximo à? Você? Informei a chefe de cabine que me informou que não tinha visto, mas que não era a primeira vez que substituíam sinalética devido ao (mau) português. Quando a música de entrada no avião for a um samba perceberemos que a TAP é totalmente brasileira. Talvez passe a chamar-se TAB.

JdB

23 outubro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

SURDO-MUDO DESCOBRIU ANTES DOS OUTROS A VISITA DE NEPTUNO AOS AÇORES

A história do deus romano dos mares está documentada no museu do mítico «Peter Café Sport», que alberga a maior coleção particular de «Scrimshaw» (1) – a arte de gravação, entalhe ou pintura em ossos da mandíbula da baleia ou do cachalote – além de outras preciosidades náuticas e notícias que somam memórias iatistas, desde que foi inaugurado, em 1986. Ali consta a fotografia do deus romano Neptuno, como me indicou um/a leitor/a deste blog, a quem agradeço muito a dica noticiosa e o desafio lançado da forma mais simpática.

Também a origem do nome Peter’s, como é mais conhecido o café dos velejadores situado no meio do Atlântico, tem uma história: deve-se a um oficial da Royal Navy que, nos idos do século passado, conheceu o dono do simpático estabelecimento, José Henrique Azevedo (JHA, pai do actual dono), quando o navio «HMS Lusitania II» atracou no porto da ilha do Faial. Achando-o muito parecido com o seu filho Peter, resolveu chamá-lo pelo mesmo nome. A ideia pegou. 



Há 33 anos, entre as 12h e as 16h do Sábado 15 de Fevereiro de 1986, o arquipélago açoriano foi açoitado pela pior tempestade do século XX, provocada pelo furacão Alex. Na estreita e, por vezes, feroz massa de água que separa o Faial da ilha do Pico, a célebre expressão de Vitorino Nemésio «Mau tempo no Canal» só pecou por defeito. A pequena cidade portuária da Horta foi varrida por ventos de 225 km/hora e fustigada por ondas de 20m e 30m de altura, que duplicavam ao rebentar contra a costa, segundo as notícias da época. 

Fã de ondas homéricas, o filho homónimo de JHA, com 27 anos, fez questão de captar em slides aquelas horas de fúria dos ventos e do Atlântico. Mal terminou o serviço no Peter’s, partiu para a sua reportagem com dois amigos corajosos, que ajudaram a dar lastro ao carro e a segurar a máquina fotográfica. 

Como de costume, no Verão seguinte, houve uma sessão em frente ao café para mostrar os diapositivos do ano. Os slides correram ao som de boa música, sem que ninguém reparasse numa imagem curiosa. A foto-galeria fez sensação, porque mais ninguém tinha saído de casa e testemunhado tantas perspectivas da violência da natureza à passagem do Alex.  

Dois anos depois, quando imprimiu um par de imagens da tormenta de 1986 e as mostrou a um grupo de navegadores estrangeiros, o empregado surdo-mudo do Peter’s alertou-o para o perfil bem delineado numa delas: Neptuno pousara a sua cabeleira farta no rochedo enorme da costa Oeste do Monte da Guia. 

Fotografia tirada do Observatório meteorológico Príncipe Alberto do Mónaco, situado a sul da cidade

Mais tarde, na mesmíssima encosta visitada por Neptuno, outro fotógrafo captou a efígie da mulher do deus náutico, formada pela rebentação de outra onda gigante. Calhou no dia que os açorianos dedicam aos namorados, conhecido pela ‘Quinta-feira de Amigas’:

© António Pedro Oliveira, em Fevereiro de 2014.

Uma descrição especialmente deliciosa (creio) sobre o Peter’s veio de Maria José Nogueira Pinto, escrita com a elegância que era seu apanágio. Alude, ao de leve, à memorável visita de Neptuno: «O Café Sport Peter é uma das coisas mais lindas que me foi dada conhecer. Ou seja, é como nos romances, como nos filmes, como nos sonhos. Pelo menos para quem, como eu, é atlântica de alma e coração e tem dos portos, dos barcos e das viagens uma ideia irremediavelmente romântica. À minha volta, os personagens não desiludem. Vêm das sete partidas e formam um conjunto inesperado, cosmopolita e universal porque o Peter denomina-se com orgulho “o lugar de refúgio e auxílio dos iatistas que cruzam o Atlântico”. De surpresa em surpresa subo ao andar de cima para ver o Scrimshaw, museu onde aprecio dezenas de dentes de baleia que os marinheiros poliram, gravaram e pintaram “durante as longas viagens e esperas” com “as ilhas, as gentes e a saudade...” E também a fotografia de Neptuno, que visitou aquele mar na grande tempestade de 1986.» [publicada em 1993, no jornal PÚBLICO]

JHA/Peter recorda sempre a misteriosa descoberta da fotografia da sua vida, tardiamente, quando menos esperava, depois de já ter sido vista por tanta gente que não dera por nada! E logo envolveu a sua paisagem marítima preferida registada numa data histórica e perigosa, em que só ele e os amigos se tinham atrevido a sair de casa. Valeu-lhe aquele segundo olhar, que vislumbrou mais e antes dos outros um rosto inscrito no recorte da água salgada.


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas, numa Quarta-feira)
____________________________
(1) https://www.visitportugal.com/pt-pt/content/museu-de-scrimshaw

22 outubro 2019

Crónicas de Lyon


Janto em Lyon ao lado do meu novo colega de board do CCI, um zimbabweano, de origem não inglesa, como poderia sugerir o nome. É tipicamente africano, if you know what I mean... Mostra-me a nota que fotografei; diz-me ele que é para nunca se esquecer do buraco em que esteve a economia local. Pergunto-lhe se a situação agora é pior do que era em 2008, quando lá estive. Muito pior, responde. Não há nada e tudo está em greve: os médicos, os enfermeiros, os professores... Há gente, diz-me ele, que suspira por Mugabe. Pergunto-lhe a opinião: responde que sim, que tem saudades de Mugabe; a vida era muito difícil, mas não havia fome, que ele decretaria que houvesse pão a 1 dólar, ou o que seja. 

Das saudades de Mugabe passa para o elogio do Zimbabwe, que era o país mais ilustrado de África, que tinha tudo para ser a inveja do continente. Acaba por não ter nada, não ser nada, apenas o fracasso de políticas erradas. E as pessoas, diz, ele, usam a instrução para resolver problemas de falta de tudo, não para ir para a rua lutar pela mudança.

Pergunto-lhe então se conhece alguns portugueses, se sabe se ainda há uma comunidade importante. Ri-se, e diz que conhece um único português: my wife, informa, acrescentando que a mulher não sabia quem era o pai, mas que toda a gente que a via afirmava ser filha do Matos, um português da Madeira. Disse-me que a mulher tinha cara de portuguesa, o que provocou algum espanto numa espanhol a que ouvia a conversa: o que é a cara de portuguesa? Não hesita: tem um ar mediterrânico, diz-me o homem que ri e diz ser genro de uma freira, que a filha foi educada nas dominicanas que a acolheram. Mostra-me uma fotografia; percebe-se que é mulata, pouco interessante fisicamente. Puxei pela cabeça mas não sei quem é o Matos, apesar de conhecer gente na, ou da, Madeira.

Por fim, o facto de ter estado no Zimbabwe permite-me contar este episódio sem vestígios de racismo: o homem do Zimbabwe fotografou todos os pratos que lhe serviram. Só quem lá esteve sabe o que isto significa.  

JdB 

21 outubro 2019

Reuniões dos dias que correm



De hoje até sábado será isto. Durante uma semana a oncologia pediátrica ocupará os meus dias quase todos. Assisti ao (meu) primeiro congresso em 2009, talvez. 

Muita coisa mudou entretanto: eu representava uma associação portuguesa - a Acreditar - e agora, não só continuo a representar a mesma associação, como tenho responsabilidades internacionais. Por outro lado, há 10 anos (e o primeiro congresso foi há 25!) as apresentações das associações de pais ou de doentes ainda eram algo incipientes, reflectiam um nascimento recente ou as dificuldades de crescimento. Éramos uma grande família que se emocionava com os sucessos e dificuldades dos outros membros das famílias. E grande parte (uma muito grande parte) de quem comparecia eram os Pais. 

Hoje há profissionais, gente nova que não viveu a doença, sobreviventes com carreiras, cursos superiores e empenho na causa. Hoje somos parceiros institucionais da Organização Mundial de Saúde, somos parceiros credíveis da comunidade médica internacional, gerimos localmente orçamentos grandes, temos projectos "continentais" (sobretudo Europa). Porém, a par desses avanços, criámos talvez algum afastamento entre as organizações regionais: não há garantia que a gente nova e profissional que tem desempenhos fantásticos na Europa tenha preocupação pelo drama da oncologia pediátrica em África; tenho dúvidas se a Ásia se interessa muito pela América Latina, e vice-versa. Não é um problema de falta de "compaixão" - talvez seja um problema de focus local excessivo, a perda de uma certa visão global sobre o drama da doença.

É isto, para já.

JdB 

20 outubro 2019

XXIX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 18,1-8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus disse aos seus discípulos uma parábola
sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar:
«Em certa cidade vivia um juiz
que não temia a Deus nem respeitava os homens.
Havia naquela cidade uma viúva
que vinha ter com ele e lhe dizia:
'Faz-me justiça contra o meu ad
versário'.
Durante muito tempo ele não quis atendê-la.
Mas depois disse consigo:
'É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens;
mas, porque esta viúva me importuna,
vou fazer-lhe justiça,
para que não venha incomodar-me indefinidamente'».
E o Senhor acrescentou:
«Escutai o que diz o juiz iníquo!...
E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos,
que por Ele clamam dia e noite,
e iria fazê-los esperar muito tempo?
Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa.
Mas quando voltar o Filho do homem,
encontrará fé sobre esta terra?»

18 outubro 2019

Poema* e música** dos dias que correm

oração pagã

se é obra tua,
que assim seja.
publica-a onde o vento a leve.
não sejas lenta nem rápida,
não sejas longa nem breve.
deixa-te fielmente acontecer.
despede-te, depois, de ti,
renasce outra vez,
com palavras fortes e cheias
feitas de marés e luas mansas.
e de tudo o mais que em ti falta,
e de tudo o mais que de ti sobeja.

volta atrás,
despe-te agora do artifício,
reiventa o deserto em cores impossíveis,
e simples.
faz o milagre acontecer em tua casa.
sê árvore, ave, gota, filamento.
levanta de ti mesmo vôo.
faz deste lugar a hora suprema,
agarra com limpidez, ternura e febre
este outro tu - puro e sedento -
escuta o tempo e o que ele te diz:
é este, para sempre, rapariga,
o teu único e verdadeiro momento.

gi




* publicado originalmente em 31 de Julho de 2009

** publicado originalmente em 24 de Setembro de 2009

17 outubro 2019

Textos dos dias que correm

A Dor Evitada

É certo que a infelicidade não depende apenas da dor, mas a alegria, essa, só devia depender da ausência de dor física. Vinte séculos inteiros e completos não inventaram uma explicação do sofrimento; sofre-se em comparação com o que é não sofrer, e nenhum homem saudável quer ser educado previamente para aquilo que é mau. Já não se treina a resistência à dor: evita-se, sim, a mistura com essa 'coisa' repelente.

Gonçalo M. Tavares, in "A Máquina de Joseph Walser"

***

A Dor como Padrão para a Intensidade dos Sentidos

Normalmente, a ausência de dor é apenas a condição física necessária para que o indivíduo sinta o mundo; somente quando o corpo não está irritado, e devido à irritação voltado para dentro de si mesmo, podem os sentidos do corpo funcionar normalmente e receber o que lhes é oferecido. A ausência de dor geralmente só é «sentida» no breve intervalo entre a dor e a não-dor; mas a sensação que corresponde ao conceito de felicidade do sensualista é a libertação da dor, e não a sua ausência. A intensidade de tal sensação é indubitável; na verdade, só a sensação da própria dor pode igualá-la.

Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'

***

O Homem não Foge da Dor

Não é verdade que o homem procure o prazer e fuja da dor. São de tomar em conta os preconceitos contra os quais invisto. O prazer e a dor são consequências, fenómenos concomitantes. O que o homem quer, o que a menor partícula de um organismo vivo quer, é o aumento de poder: é em consequência do esforço em consegui-lo que o prazer e a dor se efectivam; é por causa dessa mesma vontade que a resistência a ela é procurada, o que indica a busca de alguma coisa que manifeste oposição.
A dor, sendo entrave à vontade de poder do homem, é portanto um acontecimento normal - a componente normal de qualquer fenómeno orgânico. E o homem não procura evitá-la, pois tem necessidade dela, já que qualquer vitória implica uma resistência vencida.
Tome-se como exemplo o mais simples dos casos, o da nutrição de um organismo primário; quando o protoplasma estende os pseudópodes para encontrar resistências, não é impulsionado pela fome, mas pela vontade de poder; acima de tudo, ele intenta vencer, apropriar-se do vencido, incorporá-lo a si. O que se designa por nutrição é pois um fenómeno consecutivo, uma aplicação da vontade original de devir mais forte.
Em tudo isto, a dor não só tem por consequência necessária a diminuição da sensação de poder, como até serve, na maioria dos casos, como excitante da mesma sensação de poder, sendo o obstáculo um stimulus dessa vontade de poder.

Friedrich Nietzsche, in 'A Vontade de Poder'

16 outubro 2019

Duas Últimas

Junto segue um concerto ligeiro, para dias mais tristes ou desinteressantes. Não faço ideia se a máquina de escrever é ainda uma HCESAR. Provavelmente não, porque o cavalheiro é espanhol; além disso, já não haverá muitas pessoas a lembrarem-se do que era esse teclado. Não porque eu seja muito velho, mas porque tenho memória para coisas inúteis. Foi numa máquina dessas (manual) que comecei a escrever em 1979, no saudoso jornal O Dia. Num assomo de modernidade, o jornal investiu em máquinas eléctricas, com teclado AZERTY. Durante três dias suei dos dedos, à procura das letras. Coisas do passado, no fundo. Divirtam-se, se o vídeo vos der para isso. 

JdB


15 outubro 2019

Textos dos dias que correm

O risco dos riscos

«A esperança é uma determinação heroica da alma. A mais alta forma da esperança é o desespero vencido. A esperança é o risco a correr. É, aliás, o risco dos riscos.»

«Estai sempre pronto a responder a cada um que vos interrogue a razão da esperança que está em vós»: este famoso programa, expresso pela Primeira Carta de S. Pedro (3,15), tem no centro uma virtude teologal que, enquanto tal, é dom divino, mas que é também compromisso operativo do crente.

É isso que nos recordam as palavras acima citadas desse grande escritor católico francês que foi Georges Bernanos (1888-1948), no seu ensaio “A liberdade, para quê?”.

Outro escritor francês, também católico, Charles Péguy, não muitos anos antes, tinha composto todo um poema sobre esta virtude, “O pórtico do mistério da segunda virtude” (1911). Ele recordou o quanto é difícil esperar, enquanto desesperar é a opção mais fácil, deixando-se quase andar à deriva.

É o que também sublinha Bernanos: esperar é, seguramente, um risco, exige coragem, reação, empenho. Mas é só por esta via que se reencontra o sentido perdido da vida, e se faz calar o grito do desespero, que é sinal de morte.

É verdade que este caminho é muitas vezes árduo. Karol Wojtyla, antes ainda de se tornar papa, num seu drama, “A loja do ourives”, declarava: «Não há esperança sem medo, como não há medo sem esperança».

Por isso, é preciso enfrentar com realismo e determinação o risco da esperança, fazendo dela quase o emblema do cristão que a testemunha num mundo tantas vezes entristecido e subtilmente desesperado, ainda que sob o manto exterior da alegria.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 14.10.2019

14 outubro 2019

Da Cartuxa


Mão amiga mandou-me mais um artigo sobre o fecho da Cartuxa de Évora (de onde tirei a imagem acima). Ironicamente, a meio de um trabalho académico sobre silêncio monástico, a única cartuxa portuguesa vai fechar. Este facto não significa nada, é apenas uma coincidência - mas é curioso, contudo.

Nos últimos meses li e pensei muito sobre silêncio, sobre ruído e sobre som, que são coisas diferentes, sobre lentidão, sobre música triste ou força centrípeta, sobre Outono e recolhimento, sobre contemplação e acção. Está tudo relacionado e cada vez estou mais convencido daquilo em que acredito, ou que me faz bem.

"Para louvar da glória de Deus, Cristo, Palavra do Pai, escolheu pelo Espírito Santo, desde o princípio, homens que conduziu à solidão para os unir a Si em íntimo amor. Fiel a esta vocação, no ano do Senhor de 1084, Mestre Bruno entrou com seis companheiros no deserto da Chartreuse, onde se instalou.” (dos estatutos da Ordem Cartusiana).

Deixo-vos com algo celestial, para compor o silêncio reconfortante. Enviado pela mesma amiga.

JdB

13 outubro 2019

XXVIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 17,11-19

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
indo Jesus a caminho de Jerusalém,
passava entre a Samaria e a Galileia.
Ao entrar numa povoação,
vieram ao seu encontro dez leprosos.
Conservando-se a distância, disseram em alta voz:
«Jesus, Mestre, tem compaixão de nós».
Ao vê-los, Jesus disse-lhes:
«Ide mostrar-vos aos sacerdotes».
E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra.
Um deles, ao ver-se curado,
voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz,
e prostrou-se de rosto por terra aos pés de Jesus
para Lhe agradecer.
Era um samaritano.
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Não foram dez que ficaram curados?
Onde estão os outros nove?
Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus
senão este estrangeiro?»
E disse ao homem:
«Levanta-te e segue o teu caminho;
a tua fé te salvou».

11 outubro 2019

10 outubro 2019

Duas Últimas

Repito o que me sugeriu mão amiga, com as palavras de quem me sugeriu:

Fado que não é fado:



E não-fado que é fado



E agora os dois juntos:

09 outubro 2019

Vai um gin do Peter’s ?

CUMPRIR UMA PROMESSA COM E PARA AS CRIANÇAS DO PLANETA – A 18 DE OUTUBRO

Em 2005, mães venezuelana ficaram impressionadas com um grupo de crianças que se juntou espontaneamente para rezar o terço, no santuário de Nossa Senhora em Caracas. Uma das crescidas lembrou-se do desafio lançado pelo P. Pio (canonizado em 2002) e proferido como promessa: «Quando um milhão de crianças rezar o Rosário, o mundo mudará» pela conversão. Daí, surgiu a vontade de ampliar a cadeia de oração às crianças de todo o planeta, contando com o apoio da AIS-Ajuda à Igreja que Sofre, que persiste.

Da Venezuela para o mundo

Chegar a todos os recantos da terra

Para facilitar a internacionalização da ideia, consagrou-se um dia no ano para o terço ser rezado nas quatro partidas do mundo. Fixou-se o 18 de Outubro, relacionado com o início desta iniciativa e dia de memória do evangelista mais culto da biografia de Jesus – S. Lucas, o único dos quatro com estudos. Seria médico de origem síria, provavelmente não-judaica (tese prevalecente entre os exegetas), numa fase em que o círculo dos primeiros cristãos já se estendia para lá do judaísmo. 

Portugal também alinha no movimento com um grupo de mais novos a conduzir o terço das 18h30, a partir da Capelinha das Aparições em Fátima. Por todo o país, haverá ainda inúmeras iniciativas regionais (1)

«Um milhão de crianças reza o terço para a unidade e a paz, a 18 de Outubro»

Explicava o P. Pio de Pietrelcina – protagonista de histórias dignas de Harry Potter, passadas na Segunda Guerra com pilotos nazis e aliados, devido aos seus dons da levitação e da bilocação, entre outros –, que a oração das crianças sobe ao céu como uma flecha. E torna-se mais potente com a intercessão de Maria, pelo que o terço infantil fará o ‘dois em um’. 

Pergunta no portal https://millionkidspraying.org/en/ «Has anyone ever told you that you also have a Mother in heaven?»

No fundo, o santo italiano do século XX repescou a tese já defendida e aplicada pelo Papa da Grande Guerra – Bento XV – que, em 1916, encarregou as crianças de rezarem pela paz. Para o efeito, a 30 de Julho, reuniu no Vaticano as crianças de Roma (2). Um pouco mais de um ano depois, a Rússia abandonava o palco de guerra e mais um ano volvido assinava-se o armistício. Localmente, ainda se arrastaram focos de combate na frente Leste e a pátria dos Czares sovietizava-se ao preço de uma guerra civil devastadora, que só terminou em 1922, com a vitória de Lenine. 

Acrescento ainda outra iniciativa, que antecedeu em meia década a feliz ideia nascida na Venezuela. Corria o ano de 2000, em que João Paulo II voltou a Portugal. Declarado Ano Santo, o ‘Papa Peregrino’ tinha reduzido drasticamente o ritmo intenso das viagens, embora fizesse 3 excepções, nesta sequência: Monte Sinai no Egipto, Terra Santa em Israel e Fátima para a beatificação dos Pastorinhos. Lúcia ainda era viva e participou nas cerimónias da Cova de Iria. Um grupo de mães resolveu lançar um movimento de oração, pondo as crianças no epicentro para melhor prepararem a viagem papal, a 12 e 13 de Maio. Denominou-se «Crianças Rezam com os Pastorinhos», para recuperar o terço em família, a partir da iniciativa dos mais novos. Envolveu perto de um milhar de miúdos, que também acompanharam S. João Paulo II, na Capelinha, à chegada ao Santuário. O Pontífice deteve-se largos minutos em silêncio, incansavelmente agradecido à Mãe que terá desviado a bala mortífera para o salvar. Apesar de tudo, não foi tão prolongado como na primeira vez que viera a Fátima, logo após o atentado. Aliás, nas vésperas, tinham chovido pedidos dos media para não voltar a haver um silêncio tão ingerível para a comunicação social. Em 2000, foi marcante testemunhar o silêncio respeitado por todos aqueles pequeninos que, à sua maneira, partilharam o recolhimento do Papa mariano. Alguns eram de tenra idade e havia, pelo menos, uma deficiente quase profunda, que viveu o momento com uma tranquilidade e alegria tocantes.


O Papa polaco considerava o terço uma via privilegiada para a Paz, como escreveu na Exortação sobre o Rosário: «O Rosário é, por natureza, uma oração orientada para a paz, precisamente porque consiste na contemplação de Cristo, Príncipe da paz e ‘nossa paz’ […]. Depois, o Rosário é oração de paz também pelos frutos de caridade que produz. […]  Ao facilitar o encontro com Cristo nos mistérios não pode deixar de mostrar também o rosto de Cristo nos irmãos, sobretudo nos que mais sofrem. […] Em suma […] torna-nos também construtores da paz no mundo. […] Longe de constituir uma fuga aos problemas do mundo, o Rosário leva-nos assim a vê-los com olhar responsável e generoso, e alcança-nos a força de voltar para eles com a certeza da ajuda de Deus e o firme propósito de testemunhar em todas as circunstâncias ‘a caridade, que é o vínculo da perfeição’».

Mantendo o foco nos mais novos, uma das flashmobs mais giras aconteceu em Paris, no centro comercial Beaugrenelle, numa pacata tarde de Sábado, depois do Natal de 2014. Pretendia homenagear o programa de televisão “Prodígios”, da France 2 [segue após o anúncio]: 


Em tempo de partilha dos microfones e holofotes com os mais novos para tratar dos desafios ambientais, não será mais urgente e importante contar com eles – a geração do futuro – para juntos chegarmos à paz, com as armas da paz? 18 de Outubro pode ajudar a fazer a diferença, se quisermos alinhar com as crianças. 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
 (1)  Mapa dos pontos do globo, com zoom país-a-país, para mostrar os locais onde haverá encontros para a reza do terço em grupo:  https://millionkidspraying.org/en/praying-map/   
(2)  Ref. também no “gin” postado a 24 de Maio de 2017.

08 outubro 2019

Poemas dos dias que correm

Difícil fotografar o silêncio

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros, em “Ensaios fotográficos”

07 outubro 2019

Do meu cão e das eleições

Momento 1: o  meu cão antes das primeiras projecções

Momento 2: o meu cão ao ouvir as primeiras projecções

As fotografias acima reflectem de forma inequívoca a atitude do meu cão - um setter inglês com 4 anos - face às eleições de ontem. Embora não pareça claro, se o mundo fosse justo e desenhado segundo o modelo do PAN, o meu cão teria direito a voto. Para além de poder vir a ter um Serviço Nacional de Saúde, de valer mais do que um ser humano em coma, o meu cão teria direito a voto, que seria exercido segundo moldes a definir em sede própria, ou seja, uma comissão adequada para o efeito. 

Volto ao dia de ontem: num primeiro momento, o meu cão - um setter inglês com 4 anos, repito - está espojado numa almofada que o protege do frio do lajedo. A postura física é um misto de abandalhamento, desinteresse e despudor. Eram 19h59 minutos. Depois, 1 singelo minuto depois, na mesma almofada que o protege do frio do lajedo, ouve as projecções e a sua atitude torna-se mais digna, mais interessada, mais expectante. Não há alegria nele - apenas um movimento de corpo, um rodar da cabeça na direcção do parlamento. Afinal, o CDS, um partido que defende a vida e as pessoas, está em risco de disputar o eleitorado com um partido que defende um vegetarianismo que não saberia qualificar e o direito dos animais a entrar em restaurantes e estabelecimentos similares.

O meu cão está feliz, o que é uma ironia. Ou será um sinal, o que também é uma ironia. Portugal, mais do que ser nevoeiro, tornou-se um lugar perigoso, que requer atenção. 

JdB

06 outubro 2019

XXVII Domingo do Tempo Comum

EVANGEHO - LUCAS 17,5-10

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os Apóstolos disseram ao Senhor:
«Aumenta a nossa fé».
O Senhor respondeu:
«Se tivésseis fé como um grão de mostarda,
diríeis a esta amoreira:
'Arranca-te daí e vai plantar-te no mar',
e ela obedecer-vos-ia.
Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado,
lhe dirá quando ele volta do campo:
'Vem depressa sentar-te à mesa'?
Não lhe dirá antes:
'Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires,
até que eu tenha comido e bebido.
Depois comerás e beberás tu.
Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou?
Assim também vós,
quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei:
'Somos inúteis servos:
fizemos o que devíamos fazer'».

04 outubro 2019

Duas Últimas

Beethoven escreveu a sua 7ª sinfonia e, por maioria de razão, o segundo andamento da dita obra. Liszt decidiu transcrever o andamento para piano. Curiosamente (ou talvez não, para um entendido em música) falamos de 8'46" na versão orquestra, e de 10'53" na versão piano. Liszt interpretou no piano aquilo que Beethoven entendeu compor para uma orquestra. O som é diferente, a melodia talvez pareça diferente. 

Um dia voltarei ao tema, para me debruçar sobre esta dúvida: transcrever uma obra musical para piano é o mesmo que responder "rim" à pergunta "com três letras, pode viver-se com um só". Até lá, quando a trombeta assinalar a minha total senilidade, apreciem ambas as versões.

JdB



03 outubro 2019

Poemas dos dias que correm

Poema do Silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

José Régio

02 outubro 2019

Do arroz de lampreia e da conversa

Não é difícil encontrar uma linha clara e inequívoca a ligar o arroz de lampreia e a arte da conversa. Ao contrário do que possa pensar-se, a ligação não é cronológica (seria demasiado pobre), isto é, ambas as actividades podem ser relativamente concomitantes porque uma suscita a outra. A ligação também não é ao nível da mestria (seria demasiado simples) isto é, para ambas as actividades se requer técnica, saber, experiência. A linha clara que une o arroz de lampreia e a arte da conversa reside mais ao nível da matemática: é uma linha binária, uma condição eliminatória, definitiva: 1 ou 0, sim ou não, branco ou preto, do lado de cá ou do lado de lá.

Desconfio de gente que à pergunta gostas de arroz de lampreia / de conversar? responde com um é-me indiferente. Os amantes de ambas as actividades têm apenas uma opção temporal, ou seja, dizer que hoje não me apetece ou dizer que hoje apetece-me muito. O verbo apetecer tem de ser precedido por um advérbio de tempo. O arroz de lampreia estabelece uma divisão muito definitiva entre duas classes de pessoas, o que não acontece com o bitoque, a dourada escalada ou o bacalhau à zé do pipo. Há uma divisão clara entre os que apreciam a vitualha e aqueles a quem a vitualha sugere um refluxo gástrico - ou que o têm, propriamente dito. Com a conversa é o mesmo: há os que gostam, e que podem dizer mas hoje não me apetece, e os que não gostam, e nos quais a frase mas hoje não me apetece se constitui como mentira. 

O arroz de lampreia e a arte da conversa são pares humanos, não pelo facto de atingirem os mesmo sentidos - que não atingem -, mas pelo facto de não permitirem estados intermédios, de ligeira indiferença ou indefinição: há quem coma a iguaria por educação, há quem converse por amabilidade. Porém, no semblante de um e de outro se descortina o desagrado que é reduzido à sua insignificância por via da urbanidade, da civilidade entre participantes numa mesma soirée. Não se gostar e dar a entender que se gosta é próprio de gente muito fina, de actores ou de diplomatas - três classes muito semelhantes.

Desconfiem das pessoas que entendem que pode responder-se à pergunta gosta de conversar? com um depende. Não depende; gosta-se de conversar como se gosta de açorda - pode acontecer é o interlocutor ser maçador, como pode acontecer fazer-se açorda com restos de pão de leite: ambos são detestáveis. Mas quem gosta de conversar, gosta; quem não gosta, não gosta. Pode aplicar-se a mesma linha de pensamento ao arroz de lampreia: Pergunta: gosta? Resposta: depende. Depende de quê? De ser feito com lampreia de aviário? Ou com arroz basmati?

Desconfiem, na verdade, de pessoas que não são determinadas nem claras quanto ao arroz de lampreia ou à conversa. E desconfiem de pessoas que discorrem sobre o tema, imaginando que isso concorre para a riqueza das nações.

JdB 

01 outubro 2019

Textos dos dias que correm

O silêncio do deserto

«Há um silêncio de paz, quando o deserto dispensa, ao anoitecer, a sua frescura, dando-nos a impressão de que já chegámos ao porto tranquilo, e as velas amainaram. Há o silêncio do meio-dia, quando sob o sol escaldante cessam pensamentos e movimentos. E há o silêncio profundo, quando, de noite, até a respiração se suspende, e começamos à escuta.»

Um provérbio tuaregue afirma que «quem não conhece o silêncio do deserto, não sabe o que é o silêncio». É o que também atesta, com o excerto que citámos, o escritor-aviador francês Antoine de Sanit-Exupéry (1900-1944), que viveu alguns períodos em Marrocos.

Hoje, 30 de setembro, celebramos a memória litúrgica de S. Jerónimo, o célebre tradutor latino da Bíblia. Ele optou por abandonar a barulhenta e mundana Roma, onde tinha vivido recolhendo sucesso atrás de sucesso, para retirar-se no deserto de Belém.

O verdadeiro silêncio não é mera ausência de sons, como o deserto não é, de todo, ausência de presenças. Com efeito, os sentidos tornam-se mais vigilantes e os pensamentos mais límpidos, e vivem-se assim experiências bem mais intensas.

Nós, mergulhados nos ruídos e nas coisas, flutuamos à superfície da vida, e somos incapazes de descer às profundezas. Somos incapazes de fazer limpeza na mente e no coração, de modo a deixarmos só as verdadeiras realidades importantes. Não conseguimos apreciar a paz e a quietude, envolvidos como estamos no frenesim do fazer e do mover.

Eis, então, a necessidade de uma experiência de deserto e de silêncio para reencontrar Deus e o nosso eu.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 30.09.2019

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