29 outubro 2019

Do abandono e do regresso

Ao fim de dez anos de andanças por estes congressos onde se fala de oncologia pediátrica, é forçoso que se estabeleçam relações de natureza diversa: há o japonês, que conheço há dez anos e com quem nunca troquei mais do que palavras de circunstância; há o israelita com quem converso fluidamente e troco histórias; há a comunidade austríaca, feita de profissionais e sobreviventes, com quem me dou particularmente bem, com quem rio e converso seriamente; hás a luxemburguesas, as suíças, a neozelandesa com quem tenho uma relação bem disposta; há as indianas com quem tenho uma relação cordial, as indonésias ou alemães com quem tenho uma relação educada mas formal. E outras nacionalidades... Não faço alarde das internacionalização destes congressos: é assim que é: somos 171 organizações em quase 90 países; mesmo que não estejam lá todos representados, há muitos...

Estes congressos são momentos, também, de partilha, não pública, em frente a uma audiência, mas em frente a um café, num intervalo, na ponta de uma mesa de jantar, no cansaço de um fim de dia a ouvir e a raciocinar e a falar numa língua que não é a nossa. Vamos conhecendo as vidas, as dificuldades, as opções, as características. Para pessoas como eu, que gostam de dar profundidade e intimidade às relações, são momentos que podem ser de privilégio.

Diz-me alguém com quem converso: tenho horror à partida dos outros; tenho horror ao sentimento de abandono. Converso com outra pessoa que me diz: de onde quer que venha, mesmo que seja das férias mais divertidas, adoro o regresso a casa. Olho para dentro de mim. Não tenho o horror ao abandono, mas tenho um apego muito grande pelo regresso a casa, sendo que o itálico traduz que a expressão pode ser lida de forma metafórica. O horror ao abandono e o desejo de regresso cruzam-se, ainda que não de forma óbvia. Ambos falam da segurança conferida por algo ou por alguém. O regresso a casa pode ser um espaço, pode ser uma receita de compota de laranja, como no caso do marinheiro da equipa de Shackleton no Pólo Sul, a quem foi dito para levar apenas o essencial. Ou uma folha da Bíblia, no caso de outro marinheiro. Há abandono na mudança de uma casa como há regresso a casa mesmo que seja uma que não é nossa?

Olho à volta da sala onde se fala de oncologia pediátrica: vejo mães ou pais que perderam filhos e que teimam em encontrar um sentido para a vida nestas coisas; vejo sobreviventes que podiam ser outra coisa mas que querem ser sobreviventes nas organizações, vejo médicos a quem morrem crianças e que podiam ser dermatologistas a tirar rugas; vejo gente saudável, que ri, que tem um semblante triste mas que acodem a centenas ou milhares de crianças num Irão difícil, pejado de refugiados. Vejo gente que tem medo do abandono ou que deseja o regresso a casa. Vejo tudo, mas sei que só vejo uma parte pequena do que as pessoas são. Ou do que eu sou.

JdB

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