23 julho 2020

Dos arautos de um tempo que há-de vir


Numa dada altura da pandemia criou-se uma ideia de que a humanidade poderia ter sido confrontada - no melhor sentido da palavra - com uma epifania. O teletrabalho revolucionaria - para melhor - a vida profissional das pessoas; a experiência do confinamento permitira descortinar as virtudes de uma existência lenta, sem desperdício nem consumismo; as relações entre os seres humanos mais próximos enchera-se de uma dimensão benfazeja, repleta de cumplicidades e passeios ao fim da tarde. Acontecera, à escala global, o que acontece às pessoas confrontadas com uma morte iminente: tornam-se melhores, devotando uma especial atenção aos pormenores, às rotinas suaves, ao relacionamento de proximidade. Até o desaparecimento do beijo ou do aperto de mão parecia contribuir para essa felicidade tão surpreendente.

O desconfinamento trouxe o tema para as conversas de jantar ou de café: a comunidade dos Homens não voltaria a ser igual, pois o maldito vírus constituía-se como a salvação do planeta, da espécie, do mundo. Seríamos mais solidários, mais ambientalmente correctos; as restrições à circulação poriam ordem no turismo de massas, devolvendo a cidade aos cidadãos, expurgando o alojamento local como quem expurga a formiga branca: sem hesitação nem desejo de poupança.

Como já tive oportunidade de escrever neste estabelecimento, dentro de mim há um optimista acanhado; tão acanhado que quase nunca surge, cedendo o palco ao pessimista que me habita há mais de seis décadas. Ao contrário de todos os comentadores da televisão, sorridentes e confiantes com um renque de livros por trás, não acredito na redenção da humanidade; acredito, isso sim, que o virus suspendeu o pior que nos habita, sendo que a suspensão dura o tempo que medeia o grito há virus e o grito há vacina. Vi gente assim: vítimas de uma doença grave tornam-se melhores; logo que se curam voltam ao mesmo...

Como detectamos se houve ou não mudança nos comportamentos? Estando atentos, percebendo que nada disto é repentino, mas gradual: pessoa a pessoa, grupo a grupo, comunidade a comunidade. A saga obscena da mudança da Cristina Ferreira da SIC para a TVI é um sinal: podemos falar de números astronómicos pagos a quem se dedica a entreter gente ou da ética subjacente ao rompimento unilateral de um contrato. A saga obscena da contratação de Jorge Jesus é outro sinal: leio que o custo do frete do avião pode ter ascendido aos 100.000€, e penso se não haverá voos diários do Rio de Janeiro para Lisboa. A chegada de Jorge Jesus a Tires, rodeado de polícias armados e com viseiras, como se se tratasse de uma testemunha em risco ou de um mafioso em fuga é um sinal da nossa menoridade, iniciada (ou continuada....) por Marcelo, Costa e Ferro Rodrigues a anunciarem jogos de futebol como quem anuncia a cura para o cancro.

Mais do que treinador competente de futebol ou entertainer competente de televisão, Jorge Jesus e Cristina Ferreira são os arautos de um tempo que há-de vir, ou que há-de regressar: o tempo do pão e do circo. A mudança das pessoas estará restringida a um nicho, como o novo cinema turco ou a cozinha molecular. 

JdB 

     

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