02 novembro 2021

Da paz *

Já aqui escrevi sobre isto, estou certo. Mas também estou certo de não me lembrar quando, nem a propósito de quê. Talvez fossem apenas devaneios - como tantos dos meus textos - lidos por um punhado incompleto de fiéis leitores e outro punhado menos incompleto de pessoas que por aqui passam, diária e ingenuamente, à procura de um sobressalto criativo do editor e dono do estabelecimento.  Talvez fossem desejos meus de me ler a mim próprio. Tenho destas coisas na escrita: um misto de gozo e de pedagogia própria. Se eu ler o que escrevi é quase como se fosse outra pessoa a dizê-lo, e as coisas assumem uma relevância diferente. Sempre para melhor, adivinho eu. Até porque me acontece algo de há tempos para cá: desenvolvo um argumento e, a meio do caminho, sinto a necessidade de perguntar: estou a fazer-me entender? Do lado de lá vem quase sempre um sim, e eu, cheio de inseguranças, prefiro ler-lhes sinceridade a compaixão. 

Retomo o raciocínio: falo de paz conquistada. Há quem precise de estar em paz consigo para conquistar a paz externa; há quem precise de paz com os outros para conquistar a paz consigo próprio. Sei o que sou e a minha ordem de precedência na paz interna / externa. Mas não é disso que falo, que os que me lêem - poucos, o que é sinal de discernimento - já deram para esse peditório. A minha dúvida é esta: há alguma coisa que nos diga que uma forma é melhor do que a outra?  Isto é, há regras aconselhadas, teorias elaboradas, versículos bíblicos que nos ensinem a calcorrear o caminho da santidade para o qual temos de escolher este em detrimento daquele?

Acabei esta semana de ler as cartas que Etty Hillesum escreveu do campo onde esteve presa, na Holanda. Talvez a parte mais bonita, e que decora uma parte da contracapa, seja esta: "queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é realmente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de mim, costumo caminhar a paso enérgico ao longo do arame farpado e, nessas alturas, volta a assolar-me o sentimento de que esta vida é algo de glorioso e magnífico e que, um dia, teremos de construir um mundo totalmente novo. E quanto mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade teremos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós. Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir."

Etty Hillesum embarcaria no comboio da morte em 7 de Setembro de 1943 com os Pais e o irmão. Nenhum sobreviveu. A sua última carta conhecida data desse dia. Há referência a um postal que foi atirado para os carris. Talvez haja aqui a metáfora de uma carta que foi enviada para o mundo, não para um destinatário especial.

Etty partiu em paz. Durante dois anos, as cartas que ela escreve falam de trivialidades, deste ou daquele, mas também falam de miséria, de sofrimento, de morte. Sempre numa referência aos outros, sempre numa enorme compaixão pelo próximo, compaixão que se revelava em actos concretos, não em palavras mais ou menos bonitas. Etty condoeu-se, tratou, chorou - sempre pelos outros. Quando partiu para um destino que ela sabia não ter regresso partiu, repito, em paz. Onde foi ela buscar esta paz? Aos outros, ou os outros foram beneficiários de uma paz que era dela? 

No excerto que cito mais acima, encontro uma possível resposta para uma pergunta - onde começa a paz? - que talvez só a mim interesse. Na frase "... sentimentos que temos de conquistar dentro de nós" talvez esteja tudo...

JdB     

* publicado originalmente em 30 de Dezembro de 2015

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