05 janeiro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

FESTA DE REIS COM JACQUES BREL E UM DISCÍPULO DE FRA ANGELICO 

Em véspera de Dia de Reis, entramos na contagem decrescente para uma das festas luminosas da sequência iniciada na noite de 24 de Dezembro. Cores quentes e festivas, enfeites e luzes de todos os tamanhos, tecidos aconchegantes e coloridos, doçaria rica, tudo é convocado para ajudar a comemorar o nascimento do Bebé de Belém. Na arte, a chegada dos Magos ao presépio é apoteótica e os italianos têm jeito para festejar, como confirma a «Adoração» concebida por um discípulo de Fra Angelico – Zanobi Strozzi (1412-1468).

A cena decorre em pleno dia e a profusão de dourados salpica de brilhos estelares os trajes sumptuosos das figuras, como se os raios cintilantes da abóbada celeste tivessem descido à terra e tocado a humanidade. Cumpre-lhes assinalar a presença das personagens ali reunidas para celebrar e tornar único aquele momento. As cintilações do ouro destacam-se em vestes onde domina uma paleta variada de tons carmesins e azuis.

«Adoração dos Magos» (1433-4), atribuído a Zanobi Strozzi (1412–1468).
Do acervo da National Gallery de Londres. 

A paisagem sóbria, onde apenas sobressaem os verdes frescos das copas das árvores e do chão viçoso pontuado de flores, oferece o enquadramento ideal para a descoberta do Menino anunciado por uma estrela misteriosa. Misteriosa até por só ter sido perceptível aos Magos, que a reconheceram como guia até ao rei dos reis. 

O pintor italiano adopta o costume de diferenciar os Sábios pela idade, mas não pela etnia, como se tornou depois comum, a fim de os tornar representativos da humanidade, para lá do universo judaico. Strozzi segue igualmente a tradição de os hierarquizar pelo ancião, a quem cabe a honra de se acercar da mãe com o Menino ao colo e, significativamente, mais se inclinar, colocando-se literalmente de gatas para lhe poder beijar o pé. 

Da tela irrompe uma beleza harmoniosa e uma tranquilidade subtil e sólida, sumamente serena junto à Sagrada Família, à direita, onde o tempo parece ter ficado suspenso. Já no extremo oposto do cortejo reina algum movimento, certa azáfama, pois os pajens dos ilustres visitantes não resistem a comentar o insólito episódio, em que os Magos se ajoelham com enorme reverência e o mais velho chega ao cúmulo de se despojar da sua coroa, prostrar-se aos pés de um Bebé, que não é seu neto, e oferecer-lhe ouro. De facto, aos Reis bastara-lhes ver, como a Maria e a José, que mansamente (e, talvez, também com espanto) aceitam apresentar o Filho a quantos se aproximaram – todos desconhecidos! –, sabendo que lhes cabe velar pelo Bebé. A simplicidade da gruta que os abriga diz tudo sobre a sua pobreza.

A par dos sábios, são os poetas que gostam de ser guiados por estrelas. Assim aconteceu ao compositor e cantor belga Jacques Brel, para quem a festa se faz com música e poesia, mesmo – ou mais ainda – quando a dor imensa prevalece na linha do horizonte visível. Por isso é menos tranquila, mas não menos lúcida, a composição que fala do astro-guia dos três Sábios do Oriente. Qual Mago do século das duas Guerras Mundiais e dos totalitarismos mais mortíferos, Brel ousou pedir uma estrela capaz de iluminar uma vida: 


«Sonhar um sonho impossível / carregar a dor das partidas / 
arder de uma qualquer febre/ partir para onde ninguém parte/ 
amar até à laceração/ amar, mesmo em excesso, mesmo mal/ 
tentar, sem força nem armadura,/ alcançar a inacessível estrela./
ESTA É A MINHA DEMANDA: 
SEGUIR A ESTRELA».

Como é habitual na estrela dos poetas, também a de Brel conduz ao amor na versão mais elevada, pelo que corresponde ao maior sonho do ser humano. Será impossível?... Nesse amor encontrou o Cardeal-poeta José Tolentino Mendonça a síntese do Natal: «Amou-nos tanto que nos deu o Seu próprio Filho. O milagre do Natal assenta sobre este dom absoluto, que nos faz perceber que só somos na medida em que nos damos.»

No mesmo sentido, um escritor norte-americano do século XIX, Henry van Dyke, criou a lenda do Quarto Rei Mago («The other Wise Man», publicada em 1895), chamado Artaban, que viu e reconheceu a estrela que impressionara Gaspar, Melchior e Baltasar. Juntou pedras preciosas e uma pérola extraordinária para servirem de presente ao soberano de todas as gerações. No caminho, cruzou-se com indigentes, a quem acudiu com o dinheiro da safira. Só que essa demora, fê-lo perder o cortejo dos três. A viagem sozinho foi mais atribulada, pelo que chegou demasiado tarde a Belém. O Menino já tinha fugido para o Egipto. Artaban tentou ir-lhe no encalce, em vão. Mas continuou a deparar-se com gente em engulhos, que pôde socorrer vendendo o rúbi. Após três décadas de buscas infrutíferas pelo Menino, apanhou-se em Jerusalém na Páscoa do ano 33. Mal entrou na cidade, viu uma pobre camponesa, em vias de ser escrava. Resolveu resgatá-la com a última preciosidade do seu presente-tesouro: uma pérola esplendorosa. Depois, foi arrastado por uma multidão, que se encaminhava para o monte calvário, onde três condenados iriam ser crucificados. Na confusão da turbamulta, acabou fulminado por uma telha pesada, que escorregou de um telhado para onde tinham trepado uns mirones. Mesmo antes de sucumbir, sentindo que falhara no principal, ouviu uma voz segredar-lhe: «Vem, bendito de meu Pai, (…) porque tive fome, e deste-me de comer; tive sede, e deste-me de beber; (…). (Q)uando o fizeste a um dos meus irmãos mais pequenos, a Mim o fizeste.». Artaban fechou os olhos com um sorriso radioso, pois o Rei que buscara toda a vida, tinha vindo ao seu encontro. 

Um dos pormenores curiosos da estória de van Dyke tem a ver com a origem da narrativa, que sempre considerou um presente de Natal, daqueles que não cabem em embrulhos: «I do not know where this little story came from--out of the air, perhaps. One thing is certain, it is not written in any other book, nor is it to be found among the ancient lore of the East. And yet I have never felt as if it were my own. It was a gift, and it seemed to me as if I knew the Giver.» Hollywood e a Broadway adaptaram o argumento para filmes e peças de teatro, onde é uma constante o Quarto Mago ser uma figura em aberto, clamada por quem mais precisa, época-a-época, chamando-nos… 

Um tempo novo, inaugurado durante a época festiva começada na noite mais estrelada da história, favorece um futuro benigno, com possibilidade de luz, para lá das nuvens que, eventualmente, ensombrem o horizonte mais próximo. Possa este fogo de artifício ecológico, da autoria da artista de Berlim, Sarah Illenberger, servir de metáfora às mil formas de pontilharmos de esperança cada dia de 2022!  Feliz Dia de Reis.



Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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