02 fevereiro 2022

Vai um gin do Peter’s ?

BOLCHEVISMO É O CENÁRIO DE FILME RUSSO IMPERDÍVEL

O talentoso Nikita Mikhalkov ganhou, em 1995, o óscar mais credível da Academia de Hollywood – o do Melhor Filme Estrangeiro – pela sua obra-prima «SOL ENGANADOR»(1). Quatros depois da queda do Muro de Berlim, é possível que o Ocidente também tenha querido aproveitar a estatueta para animar o Kremlin a aproximar-se dos valores ocidentais e a abandonar, de vez, o totalitarismo comunista.  

O realizador inspirou-se na história de um dos oficiais heróis da Revolução de Outubro (1917) – Kotov – para filmar o alastrar do ideário comunista por todo o território da maior nação do mundo (em área). A cena passa-se num pacato Verão de 1936, numa dacha à antiga, onde permanecia a família de sempre, com os hábitos e privilégios da elite dos Romanov. Até a criada percebia francês e só tomava remédios vindos de Paris, a esgotarem-se, porque o fornecimento cessara no final de 1917. Situada a boa distância de Moscovo, aquela família saboreava o conforto de continuar a viver numa ‘bolha’, à margem do aggiornamento revolucionário, que pretendia tabular o quotidiano de toda a população segundo os ditames do Estado. Entenda-se, do déspota. A liberdade que se respirava na casa grande devia-se ao casamento da ‘menina’ da velha guarda com um herói revolucionário, endeusado pelas massas, à boa maneira das revoluções, que instigam comportamentos acéfalos e massificados, para melhor domar o povo. Entenda-se, coatar-lhe a liberdade, eliminando-lhe quaisquer veleidades de escolha ou de afirmação pessoais. O ascendente desmesurado do oficial, claro nas cenas de abertura, tem a atenuante do bom uso da sua autoridade para salvar as colheitas dos pobres camponeses, em risco de serem espezinhadas por tanques. Mas é inegável o poder discricionário de um Estado habituado a dispor dos bens privados com total insensibilidade e capricho. O totalitarismo comunista exibe-se no seu esplendor, ignorando o povo de que se alega libertador.

Depois da aclamação popular, o Coronel volta a casa para gozar o dia de folga na dacha, entretanto invadida por um visitante misterioso e atrevido, mas conhecedor dos recantos da casa… Mal tira a máscara, o intruso cai nos braços da família, porque era amigo de longa data, aliás delfim do patriarca (morto há anos) e o noivo óbvio da filha… actualmente casada com o militar bolchevique. Um imbróglio afectivo ali, à vista de todos, consequência directa da devastação e das cisões sociais provocadas pelos revolucionários no seu assalto ao Kremlin. Percebe-se quanto as feridas da Guerra Civil se reabriam, mal eram destapadas, denunciando uma dor imensa recalcada, mas ainda por curar, chorando um futuro comprometido.          

O duelo entre os dois homens começa por ser circunstancial, atiçado pelos percursos de vida distintos, mas com o pormenor de partilharem a afinidade mais indesejável: gostarem da mesma mulher. Rapidamente, o confronto desagua num despique civilizacional, de valores antagónicos, entre a sofisticação cultural e artística de um face à bravura e alguma coerência de percurso do outro. Curiosamente (ou significativamente), o peso pluma do combate entre ambos são as divergências políticas de origem, até por um deles ter cedido ao oportunismo típico de muitos (se não da maioria dos) revolucionários carreiristas, com cedências de consciência para a execução de purgas hediondas, que lhes envenena o carácter. O filme escancara-as, com clareza meridiana, no final. Ao invés, há menos lugar para os idealistas genuínos – como o filme também denuncia – já se si raros, mas alvos fáceis dos predadores e bajuladores do líder, de que as revoluções se alimentam.    

Há quem considere os dois arquirrivais masculinos as facetas algo contraditórias do próprio Nikita, nascido em 1945, na dacha de uma família aristocrata, com pergaminhos do tempo dos czares e notáveis talentos artísticos. Estranhamente, não foi perseguida pelo sovietismo e, especificamente, Nikita entendeu-se bem os diferentes líderes, de Brezhnev a Putin. Porém, a qualidade da sua filmografia vale por si, independentemente de uma eventual excessiva elasticidade política.

O argumento de SOL ENGANADOR é perpassado por várias modalidades de amor, desde a paixão narcisista, que oscila entre a autofagia e o apego à sobrevivência a qualquer preço (como as revoluções), até ao amor-dádiva, que tem o expoente na entrega do Cor. Kotov à filha Nadia, unidos por um elo inquebrável, a roçar o sagrado. Mas, em todas as versões, é sempre a busca de felicidade o móbil universal do comportamento humano. 

O título «SOL ENGANADOR» replica uma canção muito em voga no Leste europeu e na Rússia, na década de trinta do sécula passado, referindo-se à desilusão amorosa, mas com a invulgaridade de ser declarada pelo lado feminino. A tradução inglesa vincou a conotação política com «Burnt by the sun», que se enquadra na dedicatória com que o filme termina: «a todos os q. foram queimados pelo sol da Revolução». No fluir da trama, percebe-se que abarca mais conotações, inclusive por aludir ao estranho aparecimento de uma pequena bola de fogo, que surge do nada para se lançar em fúria devastadora sobre árvores viçosas, irromper na casa da dacha e estilhaçar uma das fotografias do álbum de família pendurada na parede ou fazer outros estragos cirúrgicos. 

Habilmente, ao jeito de um Woody Allen, Mikhalkov preenche a maioria do argumento com a comédia de enganos e contradições em que redunda o avanço tentacular do comunismo. É, basicamente, risível. À medida que a trama se adensa, as consequências graves do desprezo pela liberdade individual e a crueldade oportunista das constantes purgas estalinistas ganham força, acabando por se mostrar sem refolhos, nos minutos finais, com a subtileza possível. De resto, a brutalidade do bolchevismo é caldeada por uma ironia muito divertida, que não poupa a falta de qualidade e de coerência mínima dos revolucionários mais acérrimos. Até as ridículas quadras ou as coreografias apoucadas dos grupos infanto-juvenis “Pioneiros” são uma paródia à lavagem ao cérebro tentada pela revolução. Por junto, é a qualidade do quotidiano culto e festivo da dacha que prevalece no filme, discorrendo sobre a vida da elite russa, antes de ser atingida pelo rolo-compressor bolchevique. Ouve-se boa música, toca-se piano eximiamente, dança-se e há sapateado, declama-se poesia, citam-se artistas e filósofos ocidentais, passeia-se na praia fluvial e saboreia-se a felicidade do dia-a-dia de uma família feliz, mesmo com as bizarrias de cada um. Apenas no desporto se cedeu à opção mais popular introduzida pelo Coronel – o futebol.   

O tom tranquilo vem do facto de a história fluir sob a inocência luminosa da pequena filha do Coronel e igualmente filha do actor que encarna o Coronel – o próprio Nikita. O nome da personagem coincide com o criança na vida real – Nadia. Esta sobreposição foi intencional, para facilitar o desempenho da personagem, cujo olhar puro que lança sobre a realidade e sobre todas as personagens (os temíveis polícias políticos incluídos) parece rasgar uma nesga de esperança num período intoxicado de mentiras, manipulações e autoritarismos. Quase no final, o efeito do estandarte gigantesco de Estaline a erguer-se aos céus, içado por um balão, ensombrando e tornando irrespirável o horizonte dos seus compatriotas, serve de metáfora a um tempo prisioneiro de uma estrela enganadora.   

Sem atenuar o peso trágico das revoluções, no fundo, Nikita revela que o principal interlocutor na vida de cada um nunca é uma revolução, mas antes a relação de cada um com a Verdade conforme a percepciona, em cada altura, e as escolhas que abraça, mesmo num espaço de liberdade exíguo como são as guerras, os regimes totalitários e demais fenómenos radicais. Esse cenário de situações limite ajuda a clarificar as motivações mais íntimas das personagens (até para o próprio), entre Verdade ou mentira, Amor ou ódio, com menos possibilidade de se mesclarem em cinzentismos dúbios. Foi essa a primeira metade da mensagem transmitida na noite dos Óscares. Em Hollywood, começou por surpreender todos ao fazer-se acompanhar pela filha, a única criança (de uns 7 anos) na cerimónia. Subiu ao palco com ela e, no final, colocou-a ao ombro num gesto afectuoso e inédito (‘deslocado’, para alguns) naquele ambiente de adultos VIP, em traje de gala. 

Em poucas palavras, Mikahlkov revelou a sua bússola, evocando a demanda do protagonista do filme «8 e ½» de Fellini, galardoado, em 1964, com o mesmo óscar e interpretado por Mastroiani: «I want to say the truth, which I don’t know but I try to find. I want to say the Truth, the cruel Truth [na acepção da verdade ‘pura e dura’]. But I am sure the cruel Truth without love is a lie!». Décadas antes, a filósofa judia alemã Edith Stein (ou Sta.Teresa Benedita da Santa Cruz, convertida ao catolicismo e carmelita, morta em Auschwitz e declarada co-padroeira da Europa pelo Papa polaco) afirmara o mesmo por outras palavras: «do not accept anything as the truth if it lacks love and do not accept anything as love which lacks truth». 

Na senda dos grandes artistas de outras paragens, reverbera em SOL ENGANADOR a missão magna da arte e do artista, na fórmula de Fellini: «o visionário é o único verdadeiro realista», pois ao iluminar o presente, permite ganhar o futuro. Mais tarde, referindo-se a si e a Pasolini, o italiano desabafara: «No fim de contas, ele e eu narrámos sempre derrotas. Mas […] acredito que a arte é isto, a possibilidade de transformar a derrota em vitória, a tristeza em felicidade».

E o preço do tríptico Verdade com amor e liberdade, que contracenam na obra do russo?... Nikita associa-o ao preço da própria vida, ainda que cedida em lágrimas (de Kotov, no fim), das que Pasolini definiu com magna poesia: «… uma lágrima? É o que mostra, contra toda a capitulação, que o mal é o contrário do bem.»  Também no gesto desesperado do inimigo do Coronel – perpetrado na água, mas já sem simplicidade para chorar – se confirma a destrinça vital entre o bem e o mal. Subtil e claro, à russa. Bom filme!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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Título original: UTOMLENNYE SOLNTSEM
Título traduzido em Portugal: SOL ENGANADOR  (seguindo a linha francesa)
Título em inglês: BURNT BY THE SUN
Realização: Nikita Mikhalkov
Argumento: N.Mikhalkov e Rustam Ibragimbekov
Produzido por: Leonid Vereshchagin, Armand Barbault, Michel Seydoux e Nikita Mikhalkov.
Produção: Franco-russa
Banda Sonora: Eduard Artemyev
Duração: 2h15 / 135 min.
Ano: 1994
Países: Rússia e França
Elenco: Nikita Mikhalkov  (Kotov), Nadya Mikhalkova  (filha do realizador, encarna tb a personagem de filha, com o mesmo nome de Nadya), Oleg Menshikov  (Mitya), Ingeborga Dapkunayte (Marusya) 
Local das filmagens: Moscovo e província russa. 
Prémios: Óscar do Melhor Filme Estrangeiro (1995), tb o Grande Prémio de Cannes, Prémio of the Ecumenical Jury (ao realizador) e nomeado em inúmeros festivais de cinema, da Austrália, Argentina à Turquia!

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