A GREGA DA TURQUIA MUDOU A HISTÓRIA
Nas voltas inimagináveis da vida, emergem personalidades extraordinárias, frequentemente a despontar em momentos adversos, onde as próprias circunstâncias hostis favorecem a clarificação das intenções e aptidões de cada um. É dos principais motivos por que muitos realizadores e argumentistas da Sétima Arte escolhem cenários de guerra e de enorme provação para fazer fluir as suas narrativas, sabendo quanto os ambientes de limite humano revelam melhor as personagens até ao tutano. Também assim acontece no dia-a-dia: quem conhecia a fibra de Zelensky, antes de as tropas de Putin invadirem a Ucrânia? Quem antecipava o talento de Van Gogh, que morreu apenas com uma tela vendida?
Nesta Segunda, tive o privilégio de ver um filme, entre o documentário e a ficção, que está na fase dos ajustes finais. O autor é um dentista de sucesso, que aproveitou a fase de confinamento decretada durante a pandemia covid19, para se estrear num novo hobby – o cinema! Apesar de ser um homem dos sete-ofícios, dotado de sensibilidade artística, fez um curso de cinema para se familiarizar com o vasto potencial tecnológico à disposição de qualquer amador. Com raízes no Norte do país, soube filmar com mestria a beleza das paisagens e de alguma etnografia transmontanas, que servem de cenário a uma mensagem subtil e densa onde se reflecte sobre a arte, o artista e a origem mais profunda da obra de arte. Interpelativo e originalíssimo. Quando for do domínio público, poderá ser tema de um “gin”. Mas neste início de semana, já alimentou a animada conversa do jantar que se seguiu ao visionamento do filme. Quantas pessoas terão tirado tão bom partido da pandemia (começando e acabando em mim)?
A originalidade do percurso individual confirma a condição única de cada ser humano. Mesmo os de vidas aparentemente pacatas e comuns poderão resguardar segredos e talentos inimagináveis, como foi o caso de Fernando Pessoa para quase todos. Há, depois, as existências implausíveis e fulgurantes, como a da inesperada soberana do garboso Império Romano, nascida numa família humilde da Turquia. Para lá da origem incomum para o cargo, ainda somou mais méritos e improbabilidades, como lembra um artigo gentilmente cedido pelo autor:
«A GREGA DA TURQUIA
É tão grande a multidão dos santos e santas que, ao fim de vinte séculos de cristianismo, não é possível celebrá-los todos. Destacam-se uns poucos, conforme a sensibilidade de cada época, mas todos contribuem para tornar gloriosa a história da Igreja. Entre esses santos, conta-se uma mulher do século IV, que se celebra no dia 18 de Agosto. Hoje em dia é menos lembrada, mas muitos a recordam, numa das quatro estátuas colossais que estão sob a cúpula da basílica de S. Pedro, uma em cada esquina, diante do altar papal. A estátua dela é obra do escultor Andrea Bolgi (1651).
Escultura de Santa Helena, na basílica de S. Pedro, numa das quatro esquinas diante do altar papal |
Nasceu na província romana de Bitínia, hoje no Norte da Turquia, junto ao Mar Negro, numa família pagã, pobre. Deram-lhe um nome que estava na moda, Helena, que significa de origem grega, apesar de a Bitínia não fazer parte da Grécia.
Ainda muito nova, quando trabalhava numa hospedaria, passou por lá o poderoso Tribuno romano Constâncio Cloro que reparou na elegância e na inteligência dela e a tomou como mulher. O direito romano não permitia que um Tribuno daquele estatuto se casasse com uma rapariga do povo, mas ninguém proibia que Cloro vivesse com ela. Tiveram um filho, chamado Constantino, que ainda muito novo se manifestou um líder extraordinário, adorado pelos exércitos sob o seu comando e pelo povo.
A carreira fulgurante de Constâncio Cloro elevou-o a César da Gália, da Grã-Bretanha e da Espanha, isto é, de toda a Europa romana da época, à excepção da Grécia e da Itália, e, chegou o momento em que lhe deu jeito casar-se com Teodora, filha do Imperador Maximiliano Hércules. Para isso, Cloro repudiou Helena e separou-a do filho de ambos, Constantino.
Este revés durou treze anos, até à morte de Constâncio Cloro, ocasião em que o jovem Constantino ascendeu a César e, por manobras políticas, batalhas vitoriosas e eliminação de adversários, chegou rapidamente a Imperador único de Roma. A partir desse momento, Helena tornou-se a mãe do Imperador, a quem ele se sentia profundamente ligado.
A aldeia em que Helena nasceu foi elevada a Cidade de Helena, «Helenópolis», e Constantino concedeu enorme autoridade à sua mãe e deu-lhe o título de «Augusta».
Foi nessa época que Helena se converteu ao cristianismo e realizou uma revolução na sociedade romana. Interessou-se pelos pobres, pelos doentes, pelos prisioneiros, pelos mineiros e por outros trabalhadores que viviam em condições difíceis. Era uma mulher poderosa, atraente, activa e inteligente, que sabia conviver com o povo e com os mais altos dignatários, com um grande sentido da justiça e uma autoridade inata, naquele ambiente dominado por homens violentos. Não se pense que a situação de Helena era fácil. A violência e os assassinatos eram comuns na corte e o próprio Constantino cometeu vários homicídios, até entre familiares próximos. Helena interveio, mas nem sempre chegou a tempo. A Igreja, até então perseguida, deveu-lhe muito.
Naqueles tempos, em que muitos dos que sobreviviam à nascença não chegavam aos 40 anos, Helena viveu —cheia de energia e actividade— até aos 80. Ainda nos últimos tempos, fez várias viagens, a principal das quais à Terra Santa, para se ocupar dos lugares da vida de Cristo.
Uma das medidas dos imperadores pagãos para combater o cristianismo tinha sido destruir os lugares mais sagrados da vida de Cristo: o Calvário onde foi crucificado, o túmulo, a gruta de Belém onde nascera, o Jardim das Oliveiras. Curiosamente, ao construírem templos pagãos nesses lugares, pretendendo apagar deles a memória de Cristo, documentaram para a história onde ficavam exactamente esses mesmos lugares. Helena dirigiu as obras de recuperação e as escavações para encontrar a Cruz do Salvador. Efectivamente, desenterraram no local três cruzes e encontrou-se a inscrição mandada colocar por Pilatos, «Jesus Nazareno, Rei dos Judeus», como o atestam os Evangelhos de S. Mateus, de S. Marcos, de S. Lucas e de S. João. No entanto, subsistiam dúvidas sobre qual das três cruzes era a de Jesus, que ficaram esclarecidas quando um doente ficou curado milagrosamente ao tocar numa delas. Encontraram-se também os pregos que fixaram Jesus à Cruz e, por influência da mãe, o Imperador Constantino juntou um desses pregos ferrugentos às jóias do seu diadema imperial.
É impossível resumir aqui o que Santa Helena fez na Terra Santa e noutros lugares, porque manteve uma actividade incessante até aos 80 anos. A memória da Igreja recorda sobretudo a sua relação com a Cruz de Jesus e por isso a escultura gigantesca que está diante do altar papal, na basílica de S. Pedro, representa-a segurando devotamente a Cruz. Hoje, poucas vezes se celebra a memória de Santa Helena no dia 18 de Agosto, mas é fácil lembrarmo-nos dela na grande festa do dia 14 de Setembro, chamada da Exaltação da Santa Cruz.»
Na misteriosa sequência da vida humana, claro que conta muito o que cada um faz com o tempo e as circunstâncias que lhe calham, segundo comprova o dentista talentoso, agora, realizador nas horas livres. É caso para dizer: ‘todos iguais, todos muito diferentes’, o que só não é uma constatação fantástica para quem queira impor à diversidade humana um igualitarismo redutor, necessariamente empobrecedor. Chegam a ser divertidos os desfechos menos prováveis da história, que baralham os cálculos dos mais astutos, iludidos com a miragem possessiva de controle da realidade. Quanta vaidade ou, simplesmente, quanto irrealismo sobre o magma que compõe a Vida, impregnada de uma novidade quase indomável! Felizmente, o curso do planeta azul escapa-nos, em parte, não parando de nos surpreender.
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Mesmo bom incluindo o apoio de José Maria C.S. André.
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