BALANÇO DE VIDA, COM BOA ANTECEDÊNCIA
No final de Agosto de 2006, apenas um ano depois de ser eleito Papa e década e meia antes de morrer, Bento XVI resolveu publicar uma súmula estranhamente intitulada de «TESTAMENTO ESPIRITUAL». A publicação tão antecipada de um testamento foi mais uma das suas muitas originalidades, fazendo jus ao espírito livre e criativo deste teólogo-investigador incansável.
Ao contrário do que ficou para a história, a vida de Bento XVI foi pautada por enormes ousadias, forjadas por uma coragem que nunca vergou, nem mesmo quando rasou a morte. A primeira ameaça foi o nacional-socialismo, de cujo quartel desertou, depois de ser convocado à força, aos 16 anos. Não fora o cansaço extremo das tropas do Reich, quase no final da Segunda Guerra, e Ratzinger teria sido abatido sem piedade. Ainda em criança, toda a família ficara em risco, quando o pai (polícia de profissão) se recusou a apoiar o recém-empossado Hitler e se permitiu criticar o nacional-socialismo. Por sorte, foi “apenas” penalizado profissionalmente e desterrado para um povoado da Alemanha profunda.
No Concílio Vaticano II, Joseph destacou-se como um dos jovens teólogos (senão o mais) vanguardista e brilhante. Voltou a ser revolucionário nas suas investigações teológicas e até como Cardeal, sendo consensualmente (delatores incluídos) tido por o melhor teólogo vivo. Foi o único prefeito conhecido da quase desconhecida Congregação para a Doutrina da Fé, que entrou nos holofotes dos media pelo seu sucesso na gestão de dossiers complicados. O mais emblemático foi o da Teologia da Libertação, resolvido em tempo recorde – menos de um ano. O movimento tornara-se numa ameaça de cisma por parte da Igreja latino-americana, eivado de ideias interpelativas, reivindicações justas mas boa dose de marximo-leninismo violento nas entrelinhas. Os fundadores – os irmãos Boff, ambos franciscanos nascidos no Brasil – dividiram-se em relação ao desactivador daquela bomba-relógio religioso-política: Clodovis compreendeu e acabou por alinhar com Ratzinger, enquanto Leonardo se zangou e não perdoou a intervenção clarificadora do alemão, que desmontou em duas penadas a nebulosa de fé e de revolução social que alastrara pela América Latina como fogo na pradaria, baralhando e arrastando multidões de pobres e de menos letrados.
Logo na forma como chegou ao Vaticano, Ratzinger foi inédito ao recusar três vezes o convite insistente do Papa polaco para ser prefeito, acabando por impor uma condição que costumava impedir o exercício da função: continuar a publicar livros e artigos académicos. Tramou-se, porque João Paulo II conseguiu abrir uma excepção e isentá-lo daquela restrição. A contragosto, teve de deixar a Alemanha e mudar-se para o Sul da Europa.
Também o seu doutoramento foi atípico, pois em vez de suscitar um debate aberto e livre, próprio de uma academia amadurecida como a alemã, estalou em polémica entre o júri, que se engalfinhou numa discussão insólita, impropriamente centrada nas suas posições pessoais, sem sequer darem espaço para o doutorando intervir. Assim incumpriram a regra mais elementar de um doutoramento, depois de Ratzinger ter ousado defender e publicar uma tese a que um catedrático do júri se opunha ferozmente. Com ironia, o polémico recém-doutorado tornou-se, de imediato, na coqueluche dos teólogos alemães, com aulas a transbordar de alunos, de visitantes estrangeiros e até de curiosos.
Embora apelidado de “Panzer Cardinal”, foi o único pensador católico convidado pela Sorbonne, em 1999, para integrar o grupo de sumidades da filosofia que proferiram conferências sobre os desafios do novo milénio. Curiosamente, foi a elite da intelectualidade francesa que melhor percebeu quanto as controvérsias em torno de Ratzinger provinham mais de um espírito livre, corajoso e muito audaz do que da rebeldia caprichosa e tonitruante de algumas escolas de pensamento parisienses.
Calhou ser este Papa da palavra e do pensamento rigorosos a tomar a liberdade de abençoar a criança e também o ursinho de peluche, percebendo quanto o brinquedo amparava a pequenina doente! Este gesto simples cativou um vaticanista anti-Bento XVI, que passou a fã do Papa misterioso e imprevisto, de personalidade tímida e semi-introvertida, nos antípodas do super comunicativo antecessor polaco.
Sempre original, Bento XVI/Ratzinger abordava a fé cristã pela óptica da razão, explicando que o cristianismo era herdeiro da filosofia helénica, impregnado pela história de fé do Povo Eleito com o Deus que se ia revelando Pai. Considerava a ciência um ganho para a fé cristã e não lhe vislumbrava qualquer incompatibilidade, alertando para o facto de as alegadas divergências provirem de interpretações subjectivas e isoladas, não-representativas nem da Ciência nem da fé lúcida e informada. Reflectia sobre o Amor sob todos os prismas, incluindo o erótico, que mereceu ser tema na sua primeira Encíclica, fascinando intelectuais agnósticos e ateus de diferentes latitudes. Foi sempre um apaixonado pela verdade, ciente (até pela infância sob o regime de Hitler) do risco dos desvios totalitários, mal se ignora a premissa mais sólida e universal da liberdade: «o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade. E isto significa que a razão, no fim do dia, acabará por vergar-se às pressões dos interesses e do utilitarismo, perdendo a capacidade de reconhecer a verdade como critério único».
Já como Papa, o sucessor do grande João Paulo II resolveu tomar o nome de um antecessor esquecido, do tempo da Primeira Guerra Mundial – Bento XV. Mais uma vez, revelava-se profético (2005), antevendo o alcance das nuvens negras que despontavam no horizonte da história. Taxado de conservador-mor, foi o primeiro a decretar tolerância-zero à pedofilia (ainda na Congregação, introduziu procedimentos severos, que foram em parte sabotados por funcionários da Curia, despedidos logo que os identificou), considerando que configurava um “crime”, que os processos também deviam transitar para as autoridades judiciais, em acréscimo à justiça vaticana (onde nada prescreve). Opôs-se ao silêncio sobre estes crimes vis e obrigou os eclesiásticos (Bispos incluídos) que os encobriram a abdicar, fazendo rolar cabeças na Irlanda, na Austrália, nos EUA, etc. Aliás, calar nunca foi o seu lema, tendo pago como poucos a audácia das posições em contracorrente, quer enquanto o achavam progressista, quer como defensor do legado filosófico-teológico da doutrina cristã enquanto prefeito.
Em 2013, voltou a protagonizar mais uma originalidade, ao deixar a Cátedra de Pedro para se dedicar a rezar pela Igreja e pelo pontífice que lhe iria suceder. Curiosamente, somou a proeza de ser o Papa a morrer com mais idade, aos 95 anos, embora tivesse resignado há oito anos. Recolhido no pequeno mosteiro dos jardins do Vaticano, ‘Mater Eclesiae’, Bento XVI sustentou Francisco e só quebrou o silencio pontualmente para defender o argentino, procurando dissipar suspeitas de desalinhados e/ou desiludidos com o Papa em funções.
Com boa antecedência da Partida definitiva, o alemão quis partilhar um balanço de vida sábio e tranquilo, aberto a todos os desfechos, incluindo o derradeiro. Estava pronto para cruzar o limiar da morte, confiando-se ao ritmo da natureza. Aliás, desde cedo, fora sensível à ecologia, tendo sido o primeiro Papa a alertar para a importância do respeito pelas leis e pelo ciclo da natureza. E foi coerente no momento mais difícil, aceitando a hora de morrer ditada pelo apagamento natural do corpo. Recusou ser hospitalizado e sujeitar-se a prováveis ‘encarniçamentos clínicos’ para sacar mais um tempo de vida, tão artificial e anti-natura quanto a antecipação forçada da morte por eutanásia. Como escreveu um jornalista agnóstico: «Bento XVI escolheu uma morte digna (ao recusar o hospital), e essa foi a sua última mensagem de Fé».
«O MEU TESTAMENTO ESPIRITUAL (em 2006)
Se nesta tarda hora da minha vida olho para as décadas que percorri, como primeira coisa vejo quantas razões tenho para agradecer. Agradeço antes de tudo ao próprio Deus, o dispensador de todo bom dom, que me doou a vida e me guiou através de vários momentos de confusão; levantando-me sempre toda vez que começava a escorregar e dando-me sempre novamente a luz da sua face. Retrospectivamente vejo e compreendo que mesmo os trechos obscuros e cansativos deste caminho foram para a minha salvação e que justamente neles Ele me guiou bem.
Agradeço aos meus pais, que me doaram a vida num tempo difícil e que, a custa de grandes sacrifícios, com o seu amor me prepararam uma magnífica morada que, com sua clara luz, ilumina todos os meus dias até hoje. A lúcida fé de meu pai me ensinou a nós, filhos, a crer, e como indicador sempre foi firme em meio a todas as minhas aquisições científicas; a profunda devoção e a grande bondade de minha mãe representam uma herança à qual jamais poderei agradecer suficientemente. Minha irmã me assistiu por décadas de maneira desinteressada e com afetuoso cuidado; meu irmão, com a lucidez dos seus juízos e a sua vigorosa determinação, sempre me abriu o caminho; sem este seu contínuo preceder-me e acompanhar-me, não poderia ter encontrado o caminho justo.
De coração agradeço a Deus pelos muitos amigos, homens e mulheres, que Ele sempre colocou ao meu lado; pelos colaboradores em todas as etapas do meu caminho; pelos mestres e os estudantes que Ele me deu. Agradecido, confio a todos à Sua bondade. E quero agradecer ao Senhor pela minha bela pátria nos pré-alpes bávaros, na qual sempre vi transparecer o esplendor do próprio Criador. Agradeço às pessoas da minha pátria, porque nelas pude sempre experimentar de novo a beleza da fé. Rezo para que a nossa terra permaneça uma terra de fé e vos peço, queridos compatriotas: não vos distraiais da fé. E finalmente agradeço a Deus por todo o belo que pude experimentar em todas as etapas do meu caminho, especialmente, porém, em Roma e na Itália, que se tornou a minha segunda pátria.
A todos aqueles que de algum modo tenha cometido um erro, peço perdão de coração.
Aquilo que antes disse aos meus compatriotas, o digo agora a todos aqueles que na Igreja foram confiados ao meu serviço: permanecei firmes na fé! Não vos deixeis confundir! Com frequência, parece que a ciência – as ciências naturais de um lado e a pesquisa histórica (em particular a exegese da Sagrada Escritura) de outro — seja capaz de oferecer resultados irrefutáveis em contraste com a fé católica. Vi as transformações das ciências naturais desde tempos remotos e pude constatar como, ao contrário, tenham desaparecido aparentes certezas contra a fé, demonstrando-se ser não ciência, mas interpretações filosóficas somente aparentemente incumbentes à ciência; assim como, por outro lado, é no diálogo com as ciências naturais que também a fé aprendeu a compreender melhor o limite do alcance de suas afirmações e, portanto, a sua especificidade. São pelo menos 60 anos que acompanho o caminho da Teologia, em especial das Ciências Bíblicas, e com o subseguir-se das várias gerações vi ruir teses que pareciam inabaláveis, demonstrando-se serem simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher ecc.), a geração existencialista (Bultmann ecc.), a geração marxista. Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses tenha emergido e emerja novamente a razoabilidade da fé. Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida — e a Igreja, com todas as suas insuficiências, é realmente o Seu corpo.
Por fim, peço humildemente: rezem por mim assim que o Senhor, não obstante todos os meus pecados e insuficiências, me acolher nas moradas eternas. A todos aqueles que me são confiados, dia após dia, vai de coração a minha oração,
Era Saramago quem lembrava o elo intrínseco entre saber viver e saber morrer, dito no seu modo provocador: «Fugir da morte pode tornar-se num modo de fugir da vida.» Talvez mais desafiante seja o conselho de Vasco Pinto Magalhães, SJ: «Era importante falar mais vezes da morte. Ela está aí, sempre presente na vida de cada um, e é saudável saber encará-la, já que ninguém lhe foge! Ela é o avesso da vida. E, saber olhá-la e admiti-la, só nos pode dar força para viver e apreço pela vida. Evitar que as crianças vejam, toquem, a morte dos seus familiares, em vez de as defender, fragiliza-as, e não as educa na verdade.» Para inaugurar o Novo Ano valerá a pena convocar vozes diferentes, que ajudem a iluminar cada novo dia de 2023, preenchendo-o com o Amor pleno e profundo sobre o qual (Quem) escreveu Bento XVI.
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Gostei muito de ler.
ResponderEliminarExcelente artigo sobre um grande Homem.
fq
Pela escrita tranquila, limpa, escorreita. Pelo relembrar, sem drama, uma vida difícil. Um dos seus melhores Gins.
ResponderEliminarCumprimenta
ao