Chegará o momento em que a memória é maior do que o sofrimento e o cobre como um manto de serenidade.
Entre o final da semana passada e o princípio desta, dois amigos perderam gente que lhes era próxima e de quem sentirão saudades. Num caso era a afinidade, noutro era o sangue. É irrelevante a quantidade de saudades que terão dos seus mortos, porque a dor do luto não se mede com a escala de Richter.
A frase que encima o texto foi-me enviado por um deles com a pergunta: isto está certo?, porque quem ma mandou renovava uma experiência de morte, achando que eu havia vivido uma experiência da morte. A minha resposta, totalmente!, representava uma convicção, mais do que uma diplomacia de misericórdia.
Não digo mais do que diriam psicólogos e outros técnicos desta área, nem diferente do que diriam pessoas que passaram por experiências de, ou da morte. Não acrescento mais, por fim, ao que disse durante estes últimos anos.
Não há dia em que não lembre quem me morreu. Aqui e ali, nos momentos mais sombrios que todos temos, lembro como me morreram, que o acto de desaparecer e a forma de desaparecer nem sempre são indissociáveis. Relativamente aos nossos mortos temos memórias e temos sentimentos. O que perdura de um e de outro quando o negro da alma vai dando lugar a lutos mais aligeirados? O que é mais doloroso de manter, o que é mais saudável activar dentro de nós? Não sei, nunca dediquei muito tempo a racionalizar uma dicotomia sobre a qual desconheço quase tudo. Mas sei o que o tempo faz, o que faz, sobretudo, a qualidade do tempo. Sei para mim, que sou incompetente para receitas universais: falar, lembrar, contar histórias e com elas sorrir, rir mesmo, talvez; assumir a dor da mesma forma que se assume o frio ou a noite, que mais não são do que o contraponto de momentos mais felizes; ter fotografias, guardar um ou outro objecto, não reprimir o que a mente apresenta aos sentidos; chorar sozinho ou com os amigos, comover-se com as coisas, por insignificantes que sejam; estar atento aos sinais; lembrar tudo, que a natureza do corpo, deixando-a livre, segue bem. Ter Fé, ter Fé, ter Fé.
Aristóteles achava que a queda dos objectos era explicada pela tendência de cada um em procurar o seu local de repouso natural. Podemos, mesmo que isso exija um esforço desnecessariamente grande, replicar o raciocínio para o tema em apreço: tendemos para a paz interior, que é uma espécie de gravidade por explicar, porque é isso que Deus, a primeira causa de tudo, deseja para nós. Não ensino nada a ninguém mas acredito, com a mesma força com que acredito que Deus não é senão Amor, que de todos os nossos mortos, bem feitas as coisas - ou feitas as coisas de forma humanamente imperfeita -, teremos uma quantidade imensa de memórias pacíficas. A paz está para as memórias como a terra está para os objectos. Sei-o, mesmo que não me saiba fazer entender.
JdB
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* publicado originalmente 16 de Outubro de 2013
4 comentários:
Belo texto.
Abr
fq
Vamos lá a trabalhos.
Haverá memória guerreira?
Haverá amnésia amarela, pacífica ou cor-de-burro-quando-foge?
Memória é memória; sem adjectivo.
Não há memórias adjectiváveis.
Abraço
Anónimo,
Embora agradeça a sua visita e os seu comentário, deixe-me lá discordar de si. Como assim, não há memórias adjectiváveis? Não podemos ter memórias boas ou memórias más? A memória do cheiro a estrume ou do cheiro a maresia é apenas memória? Ter memória de um nascimento ou de uma morte é apenas ter memória?
Explique-me lá isso da memória não adjectivável. Nalgum ponto o meu raciocínio estará a falhar...
JdB, concordo. Deixe-me ter a inspiração e a vontade de o explicar.
Abraço
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