30 junho 2023

Textos dos dias que correm

UM 

Nunca ninguém me tinha dito que a dor se assemelhava tanto ao medo. Não que esteja assustado, mas a sensação é a de estar assustado. A mesma ânsia no estômago, o mesmo desassossego, os bocejos. Não paro de engolir em seco.

Noutras alturas é mais como estar ligeiramente ébrio ou ter sofrido uma pancada na cabeça. Há uma espécie de pano invisível entre mim e o mundo. Sinto dificuldade em compreender o que me dizem. Ou talvez dificuldade em desejar compreender.

É tudo tão desinteressante. E no entanto, quero ter pessoas à minha volta. Temo os momentos em que a casa fica vazia. Se ao menos falassem uns com os outros e não comigo.

Há momentos em que, ah!, tão inesperadamente!, algo dentro de mim tenta convencer-me de que, afinal, não sinto assim tanto, não tanto como isso. O amor não é tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Sou uma dessas pessoas que têm muito “a que se agarrar”. Estas coisas acabam por passar. Vá lá, não pode ser assim tão mau. Envergonha-nos darmos ouvidos a esta voz mas, por um momento, parece estar a sair-se bem. E depois é a súbita punhalada do ferro em brasa da memória e todo esse “bom senso” se desfaz em nada como uma formiga na boca de um forno.

No ressalto passamos às lágrimas e ao patético. O sentimentalismo das lágrimas. Quase lhes prefiro os momentos de agonia. Pelo menos esses são límpidos e honestos. Mas o banho de autocomiseração, esse lamaçal, o repugnante prazer, pegajoso e adocicado, de lhe ceder — desgosta—me. E, mesmo quando a ele me abandono, sei que só pode levar-me a deturpar a imagem da própria H. Dê eu mão livre a essa disposição e em poucos minutos terei trocado a mulher real por uma mera boneca sobre a qual choramingar. Graças a Deus, a memória que dela tenho é ainda demasiado forte (mas será sempre demasiado forte?) para me permitir chegar a tal ponto.

Porque H. não era nada assim. O seu espírito era flexível, rápido e enérgico como um leopardo. Paixão, ternura ou dor, nada conseguia desarmá-lo Farejasse ele a mínima baforada de hipocrisia ou pieguice, logo saltava e nos deitava por terra sem nos dar tempo sequer a perceber o que tinha acontecido. Quantas das minhas bolhas de autocomiseração não fez ela rebentar?! Bem depressa aprendi a deixar-me de baboseiras ao falar com ela, a não ser pelo puro prazer — e aí volta a punhalada do ferro em brasa — de a ver apanhar-me em falta e rir-se de mim, Nunca fui tão pouco tolo como enquanto apaixonado de H.

E também nunca ninguém me falou da indolência da dor. Excepto no meu trabalho, onde o mecanismo parece continuar a mover-se praticamente corno de costume, abomino o mínimo esforço. Não apenas escrever mas até ler uma carta já é demais. Até barbear-me. Que importa agora se o meu queixo está áspero ou macio? Diz-se que o homem infeliz quer distracções, algo que o faça esquecer-se de si próprio. Talvez, mas só na medida em que um homem, completamente derreado, poderá precisar de mais um cobertor numa noite gelada. Vai preferir ficar para ali a tiritar que levantar-se para o ir buscar. É fácil entender por que motivo os solitários se tornam desleixados e, finalmente, sujos e nojentos. 

c. s. lewis
dor
trad. carlos grifo babo
grifo
1999

28 junho 2023

Crónicas de um doutorando muito tardio

Malacca, Maio de 2023

A minha tese de doutoramento entrou em fase de hibernação quando assumi funções voluntárias internacionais - em Outubro de 2020. A partir desse momento o voluntariado não me deu tréguas: chegaram a ser dezenas de mails por dia para ler, responder, redigir, decidir, encaminhar; eram reuniões constantes e virtuais em inglês; eram projectos que requeriam liderança, acompanhamento ou apenas presença. Era muita coisa - frequentemente demasiada para um cérebro que encolhe sem retorno. Para uma tese que tinha livros lidos, ideias construídas, supervisão segura, eu tinha escrito, em três anos, 30 páginas sofríveis. Olhava em frente e, nos meus sonhos mais selvagens, antevia pouco. Talvez em Outubro, quando acabasse uma parte mais exigente do meu doutoramento, eu pudesse retomar a tese e o gosto - que o tenho, ainda - de escrevê-la.

Há algumas semanas foi-me dito que eu não devia continuar a tese a que me tinha proposto (e o tema continua a interessar-me) mas que devia mudar completamente de rumo, para abarcar a minha vida de 20 anos na comunidade da oncologia pediátrica - uma comunidade composta por pais, doentes, sobreviventes, voluntários, profissionais de saúde.  

Perguntaram-me ainda o que retenho destes últimos 7 anos de vida mais internacional. A resposta não foi difícil. O que retenho? Ocorre-me imediatamente:

- metaforicamente (embora o episódio seja real), um israelita a dançar com uma egípcia, como se fosse uma espécie de “esperanto” do sentimento; há um “lugar” onde esta comunidade se encontra, onde todos somos iguais, onde todos falamos a mesma língua. Talvez seja o que alguém me referiu – a vulnerabilidade.

- A ideia de que os Pais querem contar uma história para a qual não têm um ouvinte tendo de recorrer a um cavalo (referência a um conto de Tchekhov, chamado Tristeza, no qual um cocheiro que quer contar o drama da sua filha que morreu recorre ao cavalo, porque não há ninguém que queira ouvi-lo).

- A ideia de força, de organização, de solidariedade desta comunidade da oncologia pediátrica.  

É então que me cruzo com uma pista - o conceito de Medicina Narrativa (Narrative Medicine em inglês) um conceito que se prende com a conjugação da evidência clínica, testada e comprovada, à interpretação dos sentimentos e emoções do doente por intermédio do seu discurso, oral ou escrito, como meio de fomento da atenção, respeito, afiliação, confiança e empatia (Charon, 2001, 2012). Num instante me interesso pelo tema sobretudo porque dá importância à história que ninguém quer ouvir, mas também porque há muito pouca coisa feita na área da Pediatria e menos ainda, por maioria de razão, na oncologia pediátrica.

O desafio está(-me) lançado. Fruto de alguém que conhece alguém já falei com gente que sabe muito disto, que escreveu livros e tem doutoramentos na área, que num repente se entusiasma por ver o potencial de se falar sobre isto na pediatria (em Portugal). Eu, num certo sentido, fecho um ciclo. Afinal, tudo o que rodeia as crianças com cancro me tem dado sentido à vida desde há 21 anos. Escrever a tese sobre este tema é um pequeno tributo que presto a uma comunidade que me deu tanto.

JdB 

27 junho 2023

Nota dissonante *

Numa decoração obcecada pela simetria seriam o elemento que a desfaz. Num jardim pintado de verde esmeraldino seriam o destaque do vermelho sanguíneo. Numa biblioteca ornada de lascívia e sensualidade, seriam a secura da literatura puritana. Naquela festa eram a nota dissonante no meio de uma homogeneidade óbvia, porque o caminho social de quem convida pode ser calcetado pela diversidade mais improvável.

Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.

Aos primeiros acordes da música muitos se lançaram à dança, abanando os braços, abrindo sorrisos, contorcendo pernas, lançando cabelos ao vento da agitação delirante, porque os corpos pedem movimento, as tensões requerem libertação, os maus humores merecem bálsamos a ritmos frenéticos.    

Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.

Paulo agarrou Alexandra pela cintura e rodopiou pela pista, indiferente ao mundo, aos outros convidados, à exiguidade do recinto, ao espaço alheio, a uma certa convenção que exige gestos moderados. Afastavam-se, aproximavam-se, juntavam os rostos até não caber uma folha de papel bíblia entre uns lábios pintados com cor escura – os dela – e uns encimados por uma pilosidade desfasadamente juvenil – os dele.

Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.

As mãos sabedoras de Paulo percorriam as costas franzinas de Alexandra que se oferecia às pernas que se tocam sem pudor, aos peitos que se esmagam num fervor rítmico, às coxas que meneiam numa sensualidade pecaminosa. À toada batida do cantor o casal respondia de igual forma, perante uns convidados que se afastavam como quem dá espaço à lascívia, à paixão, ao arrebatamento, à diferença ou à prudência, porque a manifestação pública do amor pode provocar sentimentos contrastantes de  incómodo e inveja.

Acabaram por sair a meio da noite, talvez porque a nota dissonante se tivesse tornado demasiado evidente ou porque, quem sabe, tivesse chegado o tempo da carnalidade que pede um local recatado, um par de velas com aroma de baunilha, uma nudez quente e uma música cheia de frases bonitas. Abandonaram a festa de mãos dadas, numa cumplicidade feita de indiferença e provocação. Ainda os viram a entrar num Toyota amarelo onde se vislumbrou o início de um beijo húmido e prolongado.

Atravessaram a ponte encaminhando-se para sul. Quando entraram em casa, uma cave triste, num prédio triste no fundo de uma rua ainda mais lúgubre, já não havia palavras entre ambos. Cada um seguiu para o seu quarto num silêncio absoluto, ainda que fortemente transpirado. Alexandra, contabilista numa empresa de aluguer de roulottes em Paio Pires, sentou-se ao computador. Tinha deixado a meio um chat com um brasileiro que, do Recife, lhe dizia frases tórridas carregadas de uma sexualidade dengosa. Ele, Paulo, vendedor de soluções informáticas para microempresas, eterno vencido na luta contra o acne persistente, ligou dois computadores: num, jogou uma simultânea de xadrez com um jogador turco, um mongol e um peruano; no outro, acedeu a um site de filmes pornográficos onde todos os intervenientes eram cegos.

Hit the road Jack and don't you come back no more, no more, no more, no more.

JdB

* publicado originalmente a 5 de Janeiro de 2012

26 junho 2023

Poemas dos dias que correm

 

Kuala Lumpur, Maio de 2023

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

25 junho 2023

XII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 10,26-33

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos:
"Não tenhais medo dos homens,
pois nada há encoberto que não venha a descobrir-se,
nada há oculto que não venha a conhecer-se.
O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia;
e o que escutais ao ouvido proclamai-o sobre os telhados.
Não temais os que matam o corpo,
mas não podem matar a alma.
Temei antes Aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo.
Não se vendem dois passarinhos por uma moeda?
E nem um deles cairá por terra
sem consentimento do vosso Pai.
Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.
Portanto, não temais:
valeis muito mais do que os passarinhos.
A todo aquele que se tiver declarado por Mim
diante dos homens
também Eu Me declararei por ele
diante do meu Pai que está nos Céus.
Mas àquele que me negar diante dos homens,
também Eu o negarei
diante do meu Pai que está nos Céus".

23 junho 2023

Pensamentos dos dias que correm *

 Emigrar 

Às vezes penso em emigrar. É uma tendência fatal dos Portugueses que se manifesta desde o primeiro bocejo; só que um é de fome e outro de puro aborrecimento: um sugere-o a contracção do estômago onde se digerem côdeas e couve galega; outro, a mente em que se arrefecem pensamentos e suas consolações. Por isso, por esta inclinação movediça, a nossa cultura é estrangeirada; não se recorre ao sabor pátrio, de tanto que ele se traduz em humilhação e impedimento. Mas vai eu, em tentação de romper com muitas amizades, que em serem inimigas me dariam mais proveito, estabeleço planos tão bem gizados que, a traduzirem estratégia guerreira, já tinha por camaradas Aníbal e Alexandre. Todavia, há sempre um nada que me assombra e imobiliza. Não é o respeito por coisas famosas, a História e os grandes cá da terra. São coisas pequenas, devoradoras da paz se as temos por distantes: um dia de chuva na Primavera, com aqueles campos acima do Ave, crivados de malmequer amarelo, desse de que se faziam colares, com cheiro ácido, de botica. […] Às vezes penso, é certo, em emigrar. Entre os que se entendem há demasiada claridade. E preferimos incertezas vulgares a tácitas indiscrições, de gente vizinha e, no geral, amiga. Mas depois mudamos de ideia. 

agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008

22 junho 2023

Dos olhos e do Lindoso *

 - Você sabe, aquela ideia dos jornais taparem os olhos das pessoas para que elas não sejam reconhecidas é ridícula. Acha que o Cavaco Silva só reconhecido pelos olhos, e não pela boca? Ou o António Costa com aquela cor indiana? Ou o Tolstoy e aquela barba? Além disso, não sei se você sabe que, no que se refere ao contacto com os outros, a visão é um sentido difícil de interpretar. Ou seja, quando alguém olha para nós nunca sabemos exactamente que olhar é aquele.... Você está a ouvir alguma coisa do que eu estou a dizer, António Bernardo? 

António Bernardo sobressaltou-se, mas não tirou as mãos do livro que folheava naquele momento. Há muito que perseguia aquela Resenha Histórica das Famílias Nobres do Alto Lindoso, com profusas ilustrações do autor, que encontrara numa oportunidade fantástica num alfarrabista em mudança de colecção. 

- Estou a ouvir tudo, Matilde. Os olhos, o Cavaco, o Costa e o russo. 

- Há essa coisa da iridologia, uma técnica que permite ver doenças nas pessoas só de olhar para a íris. Mas eu falo de um nível diferente. No fundo, olhar para alguém e perceber o que traduz aquele olhar: raiva, desejo, simplicidade, compaixão. Não lhe descortinar o fígado, mas adivinhar-lhe o momento. Eu acho que sou muito sensível aos olhos de uma pessoa, estou sempre a detectar sinais.

- Acho isso fantástico, Matilde. Eu lembro-me de falarmos nisso quando casámos e você achou que o sacristão tinha olhos de desdém. Eu só via olhos castanhos, mas você via-lhes desdém. 

- Tem de andar mais para trás, António Bernardo. Foram os seus olhos que me perderam naquele cocktail da tia Mariazinha, quando nos conhecemos. Vi-o no jardim e percebi que estava agarrada como uma drogada; os seus olhos revelavam muito do que vim a conhecer e que tanto me atraiu... Riram para mim, percebe?

António Bernardo afagou de novo o livro, mirando-o por todos os lados: estava encadernado com rigor, perícia, gosto, cabedal e ouro. Olhou pela janela aberta da sala e tentou o impossível: sentar virtualmente na sua sala as famílias nobres do Alto Lindoso, como se uma aristocracia de antanho pudesse estar ali com ele, a falar dos sucessos e das conquistas, da fé e das caçadas, da voragem expansionista que estimula e atemoriza; uma conversa aprazível, pares entre pares, sem que a presença de uma televisão, de um aquecedor a óleo ou de um cachimbo estilizado lhes tolhesse o discurso por se perceberem uma nota dissonante. 

Não conseguiu ver ninguém, a não ser a Clara, sua colega no escritório: uma rapariga bonita, da sua idade, jovem advogada que se formara com uma nota fantástica num faculdade desafiante. António Bernardo escondera-lhe o seu casamento que atravessava um ligeiríssimo momento rotineiro, apesar do amor existente. Clara era alta, magra, de feições correctas, vinda de Germil (Ponte da Barca, Lindoso). Acima de tudo adivinhava-lhe os pensamentos olhando-o profundamente nos olhos:

-  Gostavas de beijar-me, António Bernardo? Ou de mais alguma coisa, já agora? Porque é isso que dizem os teus olhos... 

E António Bernardo sorria e beijava-a de olhos muito abertos, para que a Clara, nascida no Lindoso, lhe visse a alma, o desejo ou talvez, quem sabe, o remorso pela traição à Matilde, a mulher de quem ele gostava e para quem os olhos não tinham supostamente segredo.

- Estás triste, António Bernardo? Os teus olhos não enganam...

António Bernardo pousou o livro, deitando um último olhar a uma das profusas ilustrações do livro, fixando o olhar num senhor antigo, afagando um podengo à lareira. Olhou para a Matilde e quis esquecer a Clara, a elegância da Clara, a clarividência da Clara (uma associação onde encontrava um presságio curiosos...). Fixou os olhos em Matilde que, sorridente, lhe devolveu o olhar:

- Não me faça esses olhos doces, António Bernardo, de cão triste que quer um afago e cinco minutos de atenção. Já o conheço tão bem... Esses olhos nunca me enganaram. Quer ir beber um chá para se animar?

António Bernardo levantou-se e agarrou Matilde pela cintura. Levantou-a e sentou-a nas costas de um sofá. Depois, olhando muito para ela, beijou-a ardentemente, sensualmente, com uma voracidade inaudita. Afagou-a como se afaga uma fato novo ou um livro raro - com sensibilidade e paixão. Desejou-a mais do que nunca e disse-lho. Um desejo carnal, quase animal, carregado também de um amor que ele conseguia dividir com a Clara (Germil, Lindoso). No fim, deitados os dois no sofá, semi-vestidos e ofegantes, sorriram um para o outro.

- O que lhe dizem os meus olhos agora, Matilde?

JdB     

* publicado originalmente a 13 de Março de 2017

21 junho 2023

Vai um gin do Peter’s ?

O “TPC” MUDOU-LHE A VIDA

FAIRY TALE HOJE, REAL 

Quem diria que um TPC – irritante, para tantos – iria revolucionar a vida de uma criança pobre das profundezas do Peru? Assim aconteceu com o rapazinho de 11 anos, que não tinha sequer luz em casa para poder fazer os trabalhos da escola. Por isso, ia para a rua, onde aproveitava a luz do candeeiro público para estudar. 

Felizmente, as câmaras de vigilância da povoação peruana de Moche captaram a reincidência daquele episódio e perceberam que haveria uma extrema carência a precisar de solução. Alertaram a Câmara Municipal e o Presidente interessou-se em ajudar a resolver as dificuldades mais elementares dos pais do pequeno Víctor Martín Angulo Córdova. Além de não terem dinheiro para pagar a electricidade, também não tinham o certificado de propriedade do seu casebre, indispensável para poderem celebrar um contrato de fornecimento eléctrico. 

Resolvida a parte logística da casa dos Córdova, mais surpresas os esperavam, depois de a curta-metragem com Víctor a estudar na rua começar a rolar na net, postada por mão atenta. Num ápice tornou-se viral e chegou a quem devia, no longínquo Golfo Pérsico. Precisamente, um milionário do Bahrain ficou emocionado com tanta bravura no meio de tamanha pobreza. Ao contrário de Víctor, nunca lhe faltara dinheiro, mas doía-lhe a pobreza afectiva em que passara a infância. E sentia que nunca teria tido a força interior do pequeno peruano para se apegar aos estudos e aguentar enormes desconfortos para tentar singrar nos estudos. A Víctor, animava-o o sonho de ser polícia para poder combater alguns dos maiores flagelos do seu país, especialmente penalizantes para os desfavorecidos: a droga, a delinquência e a corrupção. 


Ahmed Mubarak não hesitou em viajar do Bahrain até ao Peru para conhecer Víctor e abrir os cordões à bolsa, proporcionando uma casa capaz à família Córdova. E passou a dar uma mensalidade para ajudar à educação do seu corajoso protegido. A única condição pedida por Mubarak ao peruano foi manter o empenho nos estudos. 

Em 2019, quando estas imagens correram mundo, Vítor tinha 11 anos. 

Ahmed estendeu também a generosidade à escola de Víctor, remodelando-a e dotando-a de um laboratório informático bem apetrechado, depois de este o ter alertado para as dificuldades da maioria dos seus colegas, com deficiências semelhantes às dos Córdova. 

Nas nuvens cinzentas que se adensam sobre os riscos da IA e da net, em geral, é reconfortante testemunhar estes efeitos benignos da net, quando bem usada. Como não reconhecer que simplifica tanto a divulgação de informações e dicas úteis, além de favorecer o surgimento destes ‘contos de fadas’, que mais parecem obras fictícias de Charles Dickens? Apesar de tudo e como sempre, estes ‘modern fairy tales’ só evoluem para happy ends, quando vários corações se deixam tocar e movidos ‘com-paixão’ estendem a mão para dar a ajuda que se impõe. Haverá olhos para ver e mãos disponíveis?...  Já crianças e famílias em carência extrema não faltam.

Boas notícias merecem ser celebradas, até para confirmar quanto a vida pode e merece ser festejada, já hoje e continuamente melhorada! Sempre inspirador, Bruce Springsteen e a The E Street Band lembram-nos que podemos ser e abrir a todos: «(a) LAND OF HOPE AND DREAMS» (concerto ao vivo, em Nova Iorque, em 2019): 


Num registo clássico, também a marcha gloriosa de Edward Elgar inspira. O título diz tudo – «LAND OF HOPE AND GLORY» e a sua sonoridade épica convida a interpretações entusiasmadas como a da Orquestra e do Coro Sinfónico da BBC (em 2009), acompanhados pela multidão que enchia o Royal Albert Hall. O talento e o humor muito britânico do maestro David Robertson ajudou a contagiar a grande sala com o espírito de festa do compositor. Numa das suas tiradas divertidas citou o dito tradicional sobre o facto de a Grã-Bretanha ser uma nação «built on tea», para brincar com o entusiasmo daquele público bem conhecedor da ária de Elgar. Só não lembrou o contributo dos Portugueses para a introdução do chá na Europa, para a abertura das rotas comerciais marítimas entre a Ásia e o Velho Continente e para a própria instituição do five o’clock tea na corte de Londres, por mérito de Catarina de Bragança, mulher do rei Carlos II(1): 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

__________________
(1) Em https://www.bbc.com/travel/article/20170823-the-true-story-behind-englands-tea-obsession, a BBC conta a história e clarifica o contributo determinante da princesa portuguesa, que foi rainha nas Ilhas Britânicas. 

20 junho 2023

Textos dos dias que correm

 

Aeroporto de Singapura, Maio de 2023

O Feio Tem Mais Encanto Que o Belo

Por vezes existe nas pessoas ou nas coisas um charme invisível, uma graça natural que não pôde ser definida, a que somos obrigados a chamar o «não sei o quê». Parece-me que é um efeito que deriva principalmente da surpresa. Sensibiliza-nos o facto de uma pessoa nos agradar mais do que deveria inicialmente e somos agradavelmente surpreendidos porque superou os defeitos que os nossos olhos nos mostravam e que o coração já não acredita. Esta é a razão porque as mulheres feias possuem muitas vezes encantos que raramente as mulheres belas possuem, porque uma bela pessoa geralmente faz o contrário daquilo que esperávamos; começa a parecer-nos menos estimável. Depois de nos ter surpreendido positivamente, surpreende-nos negativamente; mas a boa impressão é antiga e a do mal, recente: assim, as pessoas belas raramente despertam grandes paixões, quase sempre restringidas às que possuem encantos, ou seja, dons que não esperaríamos de modo nenhum e que não tinhamos motivos para esperar.
Os encantos encontram-se muito mais no espírito do que no rosto, porque um belo rosto mostra-se logo e não esconde quase nada, mas o espírito apenas se mostra gradualmente, quando quer e do modo que quer; pode esconder-se para surgir de novo e proporcionar essa espécie de surpresa que constitui os encantos.

Baron de Montesquieu, in "Ensaio Sobre o Gosto"

19 junho 2023

Duas Últimas

Acho esta música - com a qual me cruzei por puro acaso - fantástica. Foi também por puro acaso que vi a interpretação que é fantástica (sim, sim, estou a repetir o objectivo) plena de qualidade e sensualidade. Não conhecia a cantora, pelo que fui investigar quem era. 

Da Wikipédia: Storm Large (born Susan Storm Large, June 25, 1969) is an American singer, songwriter, actress and author. (...) Large is bisexual, though she dislikes the term and instead calls herself "sexually omnivorous."

Notável a forma como a cantora se define: sexualmente omnívora

Espero que gostem e que balancem.

JdB 

18 junho 2023

XI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 9,36-10,8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus, ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão,
porque andavam fatigadas e abatidas,
como ovelhas sem pastor.
Jesus disse então aos seus discípulos:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao Senhor da seara
que mande trabalhadores para a sua seara».
Depois chamou a Si os seus doze discípulos
e deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros
e de curar todas as doenças e enfermidades.
São estes os nomes dos doze apóstolos:
primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão;
Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;
Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano;
Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;
Simão, o Cananeu, e Judas Iscariotes, que foi quem O entregou.
Jesus enviou estes Doze, dando-lhes as seguintes instruções:
«Não sigais o caminho dos gentios,
nem entreis em cidade de samaritanos.
Ide primeiramente às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Pelo caminho, proclamai que está perto o reino dos Céus.
Curai os enfermos, ressuscitai os mortos,
sarai os leprosos, expulsai os demónios.
Recebestes de graça, dai de graça».

16 junho 2023

Dos detalhes *

Kuching, Malásia (Maio de 2023)

O detalhe é parte errática da minha vida. Sou mais homem para lhe dizer que não do que sim, não por opção de vida ou natureza estética, mas porque foi assim que fui crescendo. Na minha vida profissional, tempos houve em que, de olhos postos no futuro, discutia com um colega a mudança de um depósito com capacidade de trinta toneladas - ou a colocação do dito onde ele não existia. Eram os savings, a rentabilidade, a redução do esforço físico, a segurança de homens e bens, a eficácia. Dadas as grandes coordenadas e os movimentos amplos do cérebro, ao meu colega surgiam ninharias, pedaços de tubo sem cabimento, válvulas imprescindíveis e inexistentes, uma electricidade que só imaginando, pequeninos entraves. Sem isto o projecto não funcionava, pelo que um coca-bichinhos ao lado dava jeito. Sempre lhe agradeci isso. 

Não sei se o corpo é o melhor espelho da alma humana, para revisitar a citação. Em mim talvez seja - sou grande, desajeitado, ávido por vezes, com um jeito de mãos que num canhoto equivale a duas mãos direitas. Preciso de espaço, choco com as coisas, sou mais homem de cozinhar ranchos do que pequeninos pratos, olho com inveja para quem, na casa vizinha, faz de um bocado de polvo uma obra prima de estética e pormenor. Sou cavalheiro de força bruta, que cumpre o que outros cumprem no mesmo tempo - mas com o dobro do esforço. Falta-me souplesse muscular, como falta sensibilidade para, num tabuleiro, optar pelo toque de classe em detrimento da eficácia. À palavra requinte dou pouco mais do que uma conotação gramatical. Por vezes o detalhe é apenas uma rima pouco óbvia. 

Ao longo dos últimos anos sinto que tenho vindo a mudar. Ou talvez tivesse sido sempre assim, e tudo se escondia por trás de um tamanho acima de média e de uma fome que não dava descanso. Continuo a ser grande e ávido, sem gestão de esforço no pouco exercício físico que faço, sem um splash de azeite que, num prato de faiança velha, lhe dê um toque gourmet. Apesar de tudo isto há, em mim, o apego a um certo detalhe: uma frase num fado, um quite num toureiro, uma metáfora, um raciocínio numa homilia, uma discrepância numa família que vai ao museu. Não sei de onde me vem isto agora, que descamba em ideias escritas num caderno para uma memória futura que não usarei - uma lista infinda de pormenores garatujados a tinta bordeaux, que pouco mais tem do que uma valência vagamente antiga. Também não sei o sentido deste texto, mas o estabelecimento é meu, e ontem precisava de repousar o cérebro numa almofada de petit-riens.

Roland Barthes, n' A Câmara Clara, aborda o tema do detalhe aplicado à fotografia. Há o studium - uma espécie de interesse humano geral pela fotografia que nos remete para uma informação clássica, mais ou menos estilizada, mais ou menos conseguida em função da mestria do fotógrafo: uma paisagem, um par de velhos, um cão a dormir ao calor do verão. E há o punctum, um elemento que vem perturbar o studium. Diz R Barthes: O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me modifica, me apunhala). Talvez parte da minha vida seja uma eterna e desajeitada procura do punctum

JdB

* publicado originalmente a 5 de Fevereiro de 2014

14 junho 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (VIII) - a gastronomia


Provavelmente já escrevi neste estabelecimento sobre gastronomia asiática, embora a expressão "asiática" não seja específica, porque engloba, no meu léxico de viajante, o Japão, a China, a Índia e, agora, a Malásia, Singapura ou Indonésia. 

Dizer que Portugal tem uma das melhores gastronomias do mundo não é um nacionalismo bacoco. Acredito na frase, genuinamente. Porquê? Por várias razões: (i) tem uma variedade enorme de carnes ou peixes, sendo imbatível na doçaria; (ii) tem uma variedade imensa de formas de cozinhar esta enorme quantidade de matéria-prima: pode grelhar-se, cozer-se, assar-se ou comer-se cru, ligeiramente temperado; (iii) por causa de (i) e (ii), a comida portuguesa (e não só, claro) tem uma gama enorme de sabores. 

A comida indiana e a comida malaia têm algo em comum: são muito condimentadas e a maior parte dos pratos assentam em matéria-prima frita. Tal como senti na Índia, ao fim de alguns dias tudo me parece saber ao mesmo - a caril, ou a um qualquer picante. A comida condimentada começa no pequeno-almoço e segue por todas as refeições. 

Fomos convidados por um casal de amigos malaios para jantar em Kuala Lumpur. O nosso anfitrião pediu ostras para entrada. As ostras eram boas, grandes, frescas, com um intenso e agradável sabor a mar. A primeira coisa que o meu amigo malaio fez foi deitar-lhes tabasco em cima destruindo aquilo que, no meu entender, faz da ostra um petisco quase inigualável. Em boa verdade, este meu amigo viaja sempre com um frasco de tabasco. Argumenta que a comida europeia sabe a pouco (pudera...) e que o picante ajuda a balançar os sabores. 

Nesta viagem fomos convidados para jantar num bom restaurante chinês (onde comemos óptimos dim sums) e num restaurante japonês, onde comemos pratos que não se comem facilmente em Portugal. Nada era frito, nada era condimentado, tudo tinha um paladar agradável e suave. Se o meu amigo malaio lá estivesse, estou certo de que verteria o seu tabasco por cima, tal como fez em Barcelona, em cima de um bacalhau frito...

JdB

13 junho 2023

Texto para o dia de hoje

A linguagem é viva, quando falam as obras

Quem está cheio do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos sobre Cristo, como a humildade, a pobreza, a paciência e a obediência; falamo-las, quando mostramos aos outros estas virtudes na nossa vida. A linguagem é viva, quando falam as obras. Cessem, portanto, as palavras e falem as obras. De palavras estamos cheios, mas de obras vazios; por este motivo nos amaldiçoa o Senhor, como amaldiçoou a figueira em que não encontrou fruto, mas somente folhas. Diz São Gregório: «Há uma norma para o pregador: que faça aquilo que prega». Em vão pregará os ensinamentos da lei, se destrói a doutrina com as obras.

Mas os Apóstolos falavam conforme a linguagem que o Espírito Santo lhes concedia. Feliz de quem fala conforme o Espírito Santo lhe inspira e não conforme o que lhe parece!

Há alguns que falam movidos pelo próprio espírito e, usando as palavras dos outros, apresentam-nas como próprias, atribuindo-as a si mesmos. Desses e de outros como eles, fala o Senhor pelo profeta Jeremias: Eis-Me contra os profetas que roubam uns aos outros as minhas palavras. Eis-Me contra os profetas, oráculo do Senhor, que forjam a sua linguagem para proferir oráculos. Eis-Me contra os profetas que profetizam sonhos mentirosos – oráculo do Senhor – e, contando-os, seduzem o povo com mentiras e jactância, não os tendo Eu enviado nem dado ordem alguma a esses que não são de nenhuma utilidade para este povo – oráculo do Senhor.

Falemos, por conseguinte, conforme a linguagem que o Espírito Santo nos conceder; e peçamos-lhe, humilde e devotamente, que derrame sobre nós a sua graça, para que possamos celebrar o dia de Pentecostes com a perfeição dos cinco sentidos e a observância do decálogo, nos reanimemos com o forte vento da contrição e nos inflamemos com essas línguas de fogo que são os louvores de Deus, a fim de que, inflamados e iluminados nos esplendores da santidade, mereçamos ver a Deus trino e uno.

Dos Sermões de Santo António de Lisboa, presbítero

12 junho 2023

the untitled words *

 flores colhidas com os lábios. uma canção impossívelmente romântica, a rasgar a noite. poesia escrita a fogo e pele. um estremecimento qualquer. palavras inventadas, a sair do forno. uma semântica livre. liberdade sem perguntas. um abraço inesperado. um disco perdido. um bilhete para a alegria. uma canção eléctrica, a ferver, no meio da madrugada. a pergunta certa. não ter medo. entender que, às vezes, desaparecemos, mas que voltamos sempre. carácter. bondade inabalável.

noites longas, largas, lentas, lânguidas, lábeis. a aurora numa cidade nova. café. filmes, como no meu tempo. o sporting. dignidade nos gestos. pele. a praia no inverno. a praia no verão, quando a tarde finda. conduzir no alentejo, de janelas abertas e coração aceso. jantares sem relógio. design, em sentido lato. simplicidade. conversar conversar conversar. laços de ternura. as memórias do meu país afectivo. sentido de família. espírito livre. gentileza em terra hostil. fósforos metafóricos. sol, sul, sal. amanhãs que teimam em cantar. brilho nos olhos dos outros. o conforto dos estranhos. amanheceres interiores. todos os/as avós do mundo. rostos desconhecidos que nos comovem. amor em estado puro. sensibilidade e bom-senso. absoluta fome de absoluto. coisas anacrónicas. palavras como crepitar, feérico, embriaguez, transbordante. roçar o ridículo para ousar o sublime. reconhecer os mestres. ter memória. a gratidão. heróis improváveis. amores impossíveis. generosidade desinteressada. pessoas que perguntam 'como estás?' e esperam pela resposta. valores. a estética da ética. a ética da estética. viver o melhor possível. livros que nos rasgam em mil. livros que nos reconstroem. filigranas subtis. a beleza de certas lágrimas. mudar a nossa rua. uma mão estendida. acreditar sempre. ler prosa e senti-la como poesia. ser justo. delicadeza avulsa. os detalhes. viagens cá dentro. horizontes em branco. esculpir palavras.

gi

* publicado originalmente a 14 de Novembro de 2008

11 junho 2023

X Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 9,9-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus ia a passar,
quando viu um homem chamado Mateus,
sentado no posto de cobrança dos impostos,
e disse-lhe: «Segue-Me».
Ele levantou-se e seguiu Jesus.
Um dia em que Jesus estava à mesa em casa de Mateus,
muitos publicanos e pecadores
vieram sentar-se com Ele e os seus discípulos.
Vendo isto, os fariseus diziam aos discípulos:
«Por que motivo é que o vosso Mestre
come com os publicanos e os pecadores?».
Jesus ouviu-os e respondeu:
«Não são os que têm saúde que precisam de médico,
mas sim os doentes.
Ide aprender o que significa:
‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’.
Porque Eu não vim chamar os justos,
mas os pecadores».

09 junho 2023

08 junho 2023

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

EVANGELHO - Jo 6, 51-58

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo descido do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei de dar é a minha Carne
pela vida do mundo».
os judeus discutiam entre si:
«Como pode Ele dar-nos a sua Carne a comer?»
Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a Carne do Filho do homem
e não beberdes o seu Sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a mina Carne e bebe o meu Sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha Carne é verdadeira comida
e o meu Sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue
permanece em Mim, e Eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram;
quem comer deste pão viverá eternamente».

07 junho 2023

Vai um gin do Peter’s ? 

 FESTA DO CORPO DE DEUS SOLENE E SALEROSA

Na antiga capital da Hispânia visigoda e depois da Espanha imperial (1519-61), por ordem de Carlos V – a Festa Corpus Christi é comemorada com especial pompa, preparando-se cada rua, cada casa, cada janela de Toledo, para homenagear a passagem da magnífica custódia do século XVI, que leva a hóstia consagrada. Feita pelo grande ourives Enrique de Arfe, é uma joia com 183kg de prata e 18kg de ouro. Percebe-se o antigo dito popular espanhol: «Há três quintas-feiras mais reluzentes que o sol — Quinta-feira Santa, Corpus Christi e Ascensão”.



Este ano, Toledo já entrou em contagem decrescente para esta grande Quinta-feira, engalanando varandas e janelas com panejamentos de encarnados fortes junto à catedral, enquanto dos varandins das casas particulares pendem mantas ricamente bordadas e de mil tons, a par de grinaldas e bandeiras, além de vasos e cestos repletos de flores, que perfumam o ar. Cobrem as ruas mais importantes antigos toldos de lona, de fundo branco bordados com brasões ou armas episcopais, cedidos pelas confrarias de tecelões. 

Preparativos para a Festa de 2023

A própria catedral gótica é revestida com 48 faustosos tapetes flamengos mostrando alegorias eucarísticas, tecidos no século XVII para esta ocasião. Na porta do templo com a Virgem Branca, a imagem de pedra resplandece ladeada pelas grandes tapeçarias.

Tapeçarias flamengas nas paredes da Catedral.

Tudo na cidade edificada sob o cume da colina e bordejada pelo Tejo concorre para dar cor às pedras antigas das suas edificações centenares. Os toledanos, à espanhola, trajam de festa ajudando a dar pompa à grande homenagem desta Quinta – já amanhã. 

Mais preparativos, nesta semana.

A procissão começa após a Missa Pontifical decorrida na catedral gótica e apenas participada pelos membros do cortejo (meio Toledo) e pelos convidados de honra, por restrições de espaço. A outra metade de Toledo e milhares de turistas acumulam-se pelas ruas a aguardar a passagem do Corpo de Deus.

Do lado de fora do templo, um silêncio expectante prepara-se para a saída do cortejo pela Porta Plana da catedral, anunciada por salvas de 21 tiros de canhão (as que são devidas aos reis) e pelo repique esfusiante dos sinos. A multidão aplaude com entusiasmo e a banda entoa a «Marcha Real», enquanto a Procissão avança calmamente, saboreando cada passo, envolta por nuvens de incenso. 

A abrir o desfile vem a cavalaria da Guarda Civil, seguida da sua banda musical abrilhantada pelos timbaleiros da Prefeitura. Segue-se o mestre de cerimónias trajado de festa em cor preta e empunhando uma vara da altura da custódia do Santíssimo Sacramento, usada na véspera para marcar o espaço que teria de ficar vago nas ruas de Toledo. Irá depois a magnífica cruz processional do século XV, que pertencera a Rei Afonso V de Portugal, o Africano, podendo ter chegado à corte espanhola como presente. 

O desfile inclui uma fila ao meio com os capelães ou sacerdotes ou dignitários de cada irmandade, levando o báculo ou o estandarte ou os pendões identificativos. De cada lado, são ladeados por duas filas paralelas de outros membros do cortejo. 

A rica custódia com o Santíssimo Sacramento é transportada numa carruagem coberta de flores e escoltada pelos cadetes da Academia de Infantaria, que se celebrizaram pela defesa do Alcazar de Toledo contra a agressão comunista (1936), durante a sangrenta Guerra Civil espanhola. Atrás, seguem as mais altas dignidades: o Arcebispo-primaz de Toledo com seu séquito, depois as autoridades regionais e provinciais, o prefeito da cidade e o corpo docente da Universidade. No final, vem a Companhia de Honras da Academia de Infantaria e a sua banda musical.  

Como programa complementar da procissão, há a possibilidade de visita aos pátios
das principais casas toledanas.

A cidade aconchegada entre as muralhas medievais e o curso do rio muito azul transborda de gente, que acompanha em silêncio o percurso da custódia, num ambiente de oração invulgar para grandes ajuntamentos. Assim se repete a excepcionalidade que se vive no Santuário de Fátima.  

Quando na Europa do século XIII emergiram as celebrações públicas para reconhecimento da presença de Cristo na hóstia consagrada, o Papa Urbano IV decidiu estender a toda a Igreja a festa do Corpo de Deus, encomendando a S.Boaventura e a S.Tomás de Aquino textos solenes para a efeméride. Diz a tradição que, quando começou a ler em alta voz o ofício composto pelos dois santos, rasgou o que tinha escrito. É da autoria de S.Tomás a letra de «Panis Angelicus», que corresponde à penúltima estrofe do hino «Sacris solemniis», escrito para a Festa de Corpus Christi e aqui interpretado no dueto memorável de Sting e Pavarotti: 

Como observava um jornalista que participou na histórica procissão de Toledo: «Deus está ali»! No seu testemunho comovido: «Se o sol de Toledo ilumina de verdade, mais do que ele resplandece e ofusca, elevado na custódia, o Santíssimo ao passar pelas suas ruas». Nesse dia, Deus caminha connosco pelos passeios da cidade que quisermos partilhar com Ele. 

Amanhã, em Lisboa, a procissão do Corpo de Deus partirá da Sé, às 17h00. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

06 junho 2023

Poemas dos dias que correm *

Uma das torres Petronas (em tempos o edifício mais alto do mundo)
vista de outra das torres Petronas (Kuala Lumpur, Malásia) 

A vida responsável

Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura. 

Amalia Bautista

* tirado daqui

05 junho 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (VII) - tradição versus modernidade

 


A fotografia de cima foi tirada nos arredores de Kuching, na Malásia. A fotografia de baixo foi tirada em Batu Cave, a 30 minutos de comboio de Kuala Lumpur, igualmente na Malásia. São diferentes geograficamente - uma é da península (como é referida aquela parte do país) a outra da ilha de Bornéu. Embora não tenha a certeza, estou convicto de que a pessoa da fotografia de cima não seria hindu. 

Apesar de todas as diferenças, há algo que as torna iguais. O quê? A presença da modernidade, representada por um telemóvel ou por uma lixadora eléctrica. Quem os empunha veste-se de forma tradicional - um nativo do Bornéu, um hindu da Malásia. Porém, apesar do tradicionalismo da vestes, já nada se faz sem o recurso à tecnologia.

Há 5 anos, talvez, estive no Japão. Entrei num templo onde imperava a madeira, o silêncio e as figuras de -Buda. Nada naquele espaço tinha vestígios de uma modernidade ruidosa; tudo era convidativo de um certo recolhimento. As pessoas, descalças, caminhavam pelo interior do templo sussurrando. Eis senão quando aparece um jovem local com uma t-shirt, uma calças modernas e um boné com a pala virada para trás. Aproxima-se da caixa das "esmolas", abre um saco de plástico e despeja as contribuições num movimento eficaz e de recolha ruidosa da generosidade dos fiéis. Num minuto tinha desaparecido uma certa espiritualidade despojada para abrir espaço a uma mundanidade excessivamente terrena.

Uma lixadora eléctrica, um telemóvel, um saco de plástico. Por mais tradicionais que queiramos parecer, somos sempre traídos pelo conforto da modernidade.

JdB          


04 junho 2023

Solenidade da Santíssima Trindade

 EVANGELHO - Jo 3,16-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Deus amou tanto o mundo
que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n'Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n'Ele não é condenado,
mas quem não acredita n'Ele já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus».

02 junho 2023

Viagem ao Sudeste Asiático (VI) - Kuala Lumpur (iii)

O rapaz da fotografia teria uns 15 ou 16 anos, talvez. Tomou o pequeno almoço ao nosso lado no hotel. Durante 30 minutos comeu com as mãos - ovos mexidos, seguramente, e talvez comida malaia - enquanto olhava para o telemóvel. Pegava na comida com as os dedos, enrolava, juntava um pouco de couve ou arroz, e levava tudo à boca. 

A legenda desta fotografia é: mas que grande javardice. Acontece que a javardice (se se quisesse usar este adjectivo) não é ele comer com as mãos, mas ele não largar o telemóvel enquanto toma o pequeno almoço. Comer com as mãos é cultural; fixar-se no telemóvel é conjuntural. Daqui a 2 ou 3 gerações os netos do rapaz continuarão a comer com as mãos, porque a tradição é esta. Não há garantia, no entanto, de que ainda se olhe para o telemóvel enquanto se come, enquanto se conversa, enquanto se espera pelo metro.

O acto de comer com as mãos - que quase repugna um ocidental - é diferenciador, já que só algumas culturas o fazem. Porém, estar permanentemente fixado num ecrã de telemóvel torna todas as raças iguais, no que isso tem de mau: ninguém vê o que se passa à volta, ninguém se apercebe do "outro", ninguém sai da sua conchinha, do seu pequeno mundinho feito de gente que se segue, de fotografias cheias de felicidade ou de voyeurismos.

Choca-me ver um rapaz a comer com as mãos? Não muito. Um dia, em Dublin, juntámo-nos para jantar num pub. Pedimos várias coisas, nomeadamente um guisado. A minha amiga Poonam, indiana, comeu com as mãos, enrolando a carne no puré de bata. Não me choca, por isso. Choca-me - isso sim - a alienação, a fixação de tanta gente, de tanta idade, na porcaria de um telemóvel, não para trabalhar, para manter uma mente ilusoriamente ocupada.

JdB  

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