30 julho 2023

XVII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 13,44-52

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus às multidões:
"O reino dos Céus é semelhante
a um tesouro escondido num campo.
O homem que o encontrou tornou a escondê-lo
e ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía
e comprou aquele campo.
O reino dos Céus é semelhante
a um negociante que procura pérolas preciosas.
Ao encontrar uma de grande valor,
foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola.
O reino dos Céus é semelhante
a uma rede que, lançada ao mar,
apanha toda a espécie de peixes.
Logo que se enche, puxam-na para a praia
e, sentando-se, escolhem os bons para os cestos
e o que não presta deitam-no fora.
Assim será no fim do mundo:
os Anjos sairão a separar os maus do meio dos justos
e a lançá-los na fornalha ardente.
Aí haverá choro e ranger de dentes.
Entendestes tudo isto?"
Eles responderam-Lhe: "Entendemos".
Disse-lhes então Jesus:
"Por isso, todo o escriba instruído sobre o reino dos Céus
é semelhante a um pai de família
que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas".

28 julho 2023

Poemas e fotografias dos dias que correm

Funchal (Julho de 2023)
 

Prazeres

O primeiro olhar da janela de manhã
O velho livro de novo encontrado
Rostos animados
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar duche, nadar
Velha música
Sapatos cómodos
Compreender
Música nova
Escrever, plantar
Viajar, cantar
Ser amável. 

Bertold Brecht, trad. Paulo Quintela

* tirado daqui

27 julho 2023

Duas Últimas

 Lembram-se desta cantora? Canta muito bem e é uma mulher interessante. E diz, para quem a quer ouvir, que do ponto de vista da orientação sexual é omnívora. 

JdB

26 julho 2023

Textos dos dias que correm

Felicidade e Alegria

Não creio que se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz, embora considere que nele seja essencial o viver alegre. O que é próprio do homem na sua forma mais alta é superar o conceito de felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e ver até o que pode vir do obstáculo exactamente como melhor meio para que possa desferir voo. Creio que a mais perfeita das combinações seria a do homem que, visto por todos, inclusive por si próprio, como infeliz, conseguisse fazer de sua infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os homens apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate que na paz, e sobretudo conservar perante o que vem de Deus a atitude de obediência ou melhor, de disponibilidade, de quem finalmente entendeu as estruturas da vida.
Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir bem no desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino, e foi pena que não fosse esta a lição essencial que tivéssemos tirado da tragédia grega; como pena foi que só tivéssemos olhado o fatalismo dos árabes pelo seu lado superficial.
Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral no desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: talvez o estivesse antes ou depois da prisão; mas era realmente um espírito de liberdade e um portador de liberdade o que, agrilhoado a montanha, se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, superá-lo ou não, ser alegre ou não. E este ser alegre não significa de modo algum a alegria daquele tipo americano de «Quebre uma perna e ria»; acho que eram muito mais alegres as pragas dos velhos soldados de Napoleão. No fundo é o seguinte: é necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma energia que se revelou pela física no mundo da extensão, se revele pelo espírito no mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda rolando sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

25 julho 2023

Do desporto e outras patetices *

 Há uns anos foi-me diagnosticada uma rotura de ligamentos irreversível num pé. Na minha proverbial ignorância - e até esse momento inesquecível de esclarecimento tardio - achava que ligamento era uma palavra do foro desportivo, como médio-ala, florete, falso lento e bola medicinal. Hesitei, na elaboração do rol, na utilização de fato de treino. Na verdade, já fez e talvez venha a fazer parte do vocabulário desportivo; numa dada altura, e pelos piores motivos, passou a ser incorporado na classificação vestuário, tal como calças de fantasia, cuecas, meias de cano alto ou popelina. 

Regresso aos ligamentos. Surpreendeu-me o facto de também ter ligamentos, eu que tenho pelo exercício desportivo o mesmo sentimento que a natureza tem ao vácuo: uma espécie de horror. Se o facto de ter ligamentos me irmanava, ainda que numa pequeníssima fracção, aos grandes atletas, a ideia de ter uma rotura de ligamentos  - e disso poder falar com um certo orgulho parcimonioso e enganador - dava-me uma determinada aura, como algo que se adquire novo mas já dotado de uma patine surpreendente e valiosa. 

A honestidade não me chega por via da virtude, mas da consistência do discurso; ou seja, não minto, não porque tenha uma espécie de nojo ético à falsidade, mas porque sou fraco mentiroso. Como naquele jogo em que ganha a pessoa que estiver mais tempo sem dizer sim ou não, toda a mentira é, em mim, um esforço que denuncio sem arte nem persistência. É por isso que tenho de referir que a rotura de ligamentos não me atingiu por via do desporto, mas de um descuido: coloquei mal o pé na escada de um apartamento onde fui moderadamente infeliz; o destino puniu-me já eu me despedia da casa e, entre o pé mal colocado e a entrega da chave à senhoria, não passou mais de 1 hora. Morri na praia - de contas acertadas e um artelho torcido.

Vem tudo isto a propósito do que oiço constantemente: fulano partiu uma omoplata a fazer ciclismo de corta-mato, beltrano rachou um osso a jogar futebol, sicrano abriu a cabeça na prática violenta do ski. Ora, não me parece que alguma vez tenha ouvido que fulano partiu uma omoplata a redigir uma tese de doutoramento, beltrano rachou um osso na contemplação da suave rotina das marés, sicrano abriu a cabeça na escuta atenta de um Requiem, sobretudo se for o de Mozart. O desporto, e penso que o pensamento é cimeiro na lista dos lugares-comuns, é de uma perigosidade extrema, e o Estado deveria sobrecarregar fiscalmente os desportistas, deixando os obesos em paz na sua gordura imóvel e inócua.

Daqui por 50 anos os meus bisnetos falarão de mim com a ternura falsa que devotamos aos que não conhecemos, mas de quem nos falam com desvelo. Citarão histórias a meus respeito, repetirão com orgulho os elogios que me fizeram, e que me assentam menos por via das minhas virtudes humanas, e mais pelas minhas qualidades de vendedor de feira, perito na arte do logro. E rematarão: coitado, parece que comia carne. Perante a necessidade de pedir desculpa aos animais de terra, do ar e do mar que aquele seu antepassado deglutia com laivos de pecado, sobra-lhes o conforto de poder dizer: ao menos não fazia desporto. 

Alguém inventou, como benéfica, a dieta do paleolítico. Alguém inventou, como benéfica, a prática do desporto. Comer mamutes parece ser, para alguns iluminados, uma opção de vida inquestionavelmente saudável, ainda que difícil. Para outros, o esplendor da saúde seria perseguir os ditos animais a pé, antes mesmo de os cozinhar a fogo lento. As minhas convicções de homem moderadamente esclarecido duvidam dessa dieta, como duvidam da virtude de um desporto que imprima um ritmo que acelere o coração para além do que acontece quando nos apaixonamos pela primeira vez; parece-me, aliás, do mais elementar bom senso definir esse ritmo cardíaco como um limite superior. Um dia mais tarde, creio e espero eu, se provará os enormes malefícios do desporto a não ser com uma valência de entretenimento, como ouvir a Marisol ou ler banda desenhada; um dia seremos lembrados por termos comido carne e por nos termos agitado freneticamente sem razão. Seremos, em 2069, os esclavagistas do século XXI, olhados com desdém retrospectivo.

Não serei vegetariano e não farei desporto. Sobre mim ficam memórias de carnívoro e de sedentarismo persistente. Aos meus bisnetos cabe-lhes 50% de alegria, o que já não é de deitar fora.

JdB   

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* publicado originalmente a 17 de junho de 2019

24 julho 2023

Tony Bennett (1926-2023)

Não sei se o disse aqui, neste estabelecimento: sempre gostei mais de Tony Bennett do que de Frank Sinatra.  Podem dizer que Sinatra era uma das vozes do século e que o Tony Bennett não era. Talvez. Mas revi-me muito em dois parágrafos que encontrei num blogue:

"Ele é o último dos cantores, contadores de histórias. Expressa as coisas à maneira de quem conta uma história", disse Eastwood à The Associated Press. 

E diz ainda:

Alec Baldwin, que fez o papel de Bennett num sketch do "Saturday Night Live", ao lado do próprio cantor bem-humorado, faz uma observação particularmente incisiva: "No teatro e nas actuações ao vivo... o público tem de acreditar que não há outro lugar onde preferir estar. E não há ninguém neste ramo que transmita isso de forma mais eficaz do que Bennett", diz Baldwin no filme.

Deixo-vos com a música mais famosa do seu repertório, talvez (I left my heart in San Francisco) e outra de que gosto muito também, de entre tantas outras que fizeram parte da minha vida musical.

JdB


23 julho 2023

XVI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 13,24-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus disse às multidões mais esta parábola:
"O reino dos Céus pode comparar
-se a um homem
que semeou boa semente no seu campo.
Enquanto todos dormiam, veio o inimigo,
semeou joio no meio do trigo e foi-se embora.
Quando o trigo cresceu e deu fruto,
apareceu também o joio.
Os servos do dono da casa foram dizer-lhe:
'Senhor, não semeaste boa semente no teu campo?
Donde vem então o joio?
Ele respondeu-lhes: 'Foi um inimigo que fez isso'.
Disseram-lhe os servos:
'Queres que vamos arrancar o joio?'
'Não! - disse ele –
não suceda que, ao arrancardes o joio,
arranqueis também o trigo.
Deixai-os crescer ambos até à ceifa
e, na altura da ceifa, direi aos ceifeiros:
Apanhai primeiro o joio e atai-o em molhos para queimar;
e ao trigo, recolhei-o no meu celeiro'".

Jesus disse-lhes outra parábola:
"O reino dos Céus pode comparar-se a um grão de mostarda
que um homem tomou e semeou no seu campo.
Sendo a menor de todas as sementes,
depois de crescer, é a maior de todas as hortaliças
e torna-se árvore, de modo que as aves do céu vêm abrigar-se nos seus ramos".
Disse-lhes outra parábola:
"O reino dos Céus pode comparar-se ao fermento
que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha,
até ficar tudo levedado".
Tudo isto disse Jesus em parábolas,
e sem parábolas nada lhes dizia,
a fim de se cumprir o que fora anunciado pelo profeta,
que disse: "Abrirei a minha boca em parábolas,
proclamarei verdades ocultas desde a criação do mundo".

Jesus deixou então as multidões e foi para casa.
Os discípulos aproximaram-se d'Ele e disseram-Lhe:
"Explica-nos a parábola do joio no campo".
Jesus respondeu:
"Aquele que semeia a boa semente é o Filho do homem
e o campo é o mundo.
A boa semente são os filhos do reino,
o joio são os filhos do Maligno
e o inimigo que o semeou é o Demónio.
A ceifa é o fim do mundo
e os ceifeiros são os Anjos.
Como o joio é apanhado e queimado no fogo,
assim será no fim do mundo:
o Filho do homem enviará os seus Anjos,
que tirarão do seu reino todos os escandalosos
e todos os que praticam a iniquidade,
e hão-de lançá-los na fornalha ardente;
aí haverá choro e ranger de dentes.
Então, os justos brilharão como o sol
no reino do seu Pai.
Quem tem ouvidos, oiça".

21 julho 2023

Poemas dos dias que correm

 

Madeira (Porto Moniz?) Julho de 2023

O cheiro do corredor 

O
corredor de hospital onde se aguarda a noticia é
escuro
e abafado. As cadeiras de plástico (polidas e
pacientes) aceitam familiares com
um único objectivo: «positivo
ou negativo?» O medo
bebe um cigarro
(fuma o terceiro café)
julgando furtar-se ao cheiro que habita
o corredor –
um cheiro iniludível que invade a memória
acerbando a angústia que antecede
o veredicto: «negativo
ou positivo?» As mãos
tecem litanias
algemadas a um terço (a esperança é o nervo
quando a crença é o músculo) e o
cheiro do corredor fica colado à resposta que
chega pelo fim do dia
devolvendo ordem ao mundo: «Negativo.»
«Negativo?»
«É negativo.»

João Luís Barreto Guimarães, in Nómada

20 julho 2023

Duas Últimas

 

Já o escrevi aqui: o violoncelo é, talvez, o mais bonito de todos os instrumentos musicais. Quando é utilizado para tocar uma obra particularmente bonita e triste (uma não vai sem a outra...) é de uma beleza sem par. 

Um dos concertos para violoncelo de que mais gosto é o de Dvorák e, dentro desta obra, o II andamento. Na interpretação de Jacqueline Du Pré, famosa violoncelista que morreu com apenas 42 anos, este movimento demora pouco mais de 14 minutos. Acontece que na versão de Mstislav Rostropovitch demora pouco menos de 13 minutos. Nma pesquisa adicional encontraríamos de certeza outros valores.

 

Não sou músico. Mas imaginando que Jacqueline Du Pré não inventou notas, significa isso que algumas passagens da obra (ou deste movimento) são mais lentas, talvez mais tristes. Quem tiver paciência ou gosto, que oiça ambas as interpretações e tire as suas conclusões.

JdB

19 julho 2023

Vai um gin do Peter’s ?

PASCAL, O BRILHANTE MATEMÁTICO FRANCÊS QUE PREFERIU OS POBRES

Por cortesia do autor, partilho a história de vida de um dos génios do século XVII, que se distinguiu na física, na matemática, mas igualmente na filosofia, na teologia, na literatura e até no martírio social que lhe foi infligido com enorme crueldade. Tudo na vida de Blaise Pascal teve uma produtividade incomum para quem não chegou a completar 4 décadas de vida.  

De pouco lhe serviu a sua genialidade, que parece antes ter atiçado uma facção poderosa da Igreja, que pactuava descaradamente com o mundanismo prevalecente na corte francesa. Pascal pagou caro por preferir o grupo que enjeitava o conforto e as honrarias dos cortesãos, preferindo uma vida de fé sóbria, atenta aos mais carentes – a grande ‘prova do algodão‘ em matéria de fé. Demasiado proeminente para poder ser ignorado, a corte moveu uma guerra sumamente mesquinha contra o cientista-filósofo. Replicavam a intolerância que Henrique VIII tivera com S.Thomas More (1478-1535), a quem mandara decapitar por ser demasiado importante para poder seguir um rumo diferente do do rei, sem que o monarca se sentisse desautorizado! Estranhas lógicas do poder. 

«Tintin & Blaise Pascal

Quem não conhece o Pascal como unidade de pressão? O nome desta unidade é uma homenagem a um homem extraordinário, cientista e filósofo do século XVII, que deixou uma obra notável apesar de ter morrido com apenas 39 anos.

É-nos hoje tão familiar que até no álbum «Coke en Stock» das aventuras de Tintin, do desenhador Hérgé (veja-se a imagem), Nestor, o mordomo do Capitão Haddock no castelo Moulinsart, se entretém a ler «Les Pensées» de Pascal, enquanto o Sr.Séraphin Lampion lhe fala ao telefone do seu tio Anatole.

Pascal construiu máquinas de calcular, demonstrou teoremas, investigou em física, estatística, matemática e escreveu obras de teologia que são obras-primas de literatura. Felizmente, começou os seus prodígios científicos com 16 anos, porque doutro modo este génio não teria tido tempo para deixar um legado tão valioso. É sobre este Pascal, com a sua história apaixonante, que surge agora de Roma uma importante novidade.

Corre no Vaticano que o Papa quer publicar uma Carta apostólica na próxima segunda-feira 19 de Junho, a comemorar os 400 anos do nascimento de Pascal. Não se sabe se estes dias que passou no hospital o obrigam a adiar o projecto, mas o simples propósito de comemorar a data representa uma mudança significativa. É verdade que este Papa já citou Pascal e alguma vez se declarou favorável à sua beatificação, mas a Carta apostólica será um passo inédito.

Pascal foi um homem de profunda fé e —assim pensa muita gente— um verdadeiro santo. Os autores de espiritualidade e vários Papas, Paulo VI, João Paulo II, etc., citam-no. O Papa Francisco classificou o seu livro mais conhecido «Les Pensées» (Pensamentos) como uma «obra esplêndida e com valor religioso». De facto, a vida de Pascal é um exemplo edificante de rectidão, de trabalho, de oração. Por que é que nunca se iniciou o correspondente processo de canonização?

A razão é que Pascal viveu a meio do século XVII, numa época de choque violento entre o poder do rei francês e parte da sociedade, entre correntes religiosas apoiadas pelo rei e outras perseguidas por ele. Pascal esteve próximo do povo devoto da abadia de Port-Royal, em Paris, onde a sua irmã Jacqueline era freira. A exigência e a fé daquela abadia faziam demasiado contraste com a corte mundana e com a ética decadente que dominava os bem-pensantes, de modo que estes reagiram obtendo a condenação póstuma de Jansénio e de muitos outros, incluindo a dita abadia. Alguns Jesuítas célebres tomaram parte na disputa, defendendo uma moral casuística relaxada, contra o que consideravam o rigorismo exagerado de Port-Royal, e Blaise Pascal respondeu-lhes com as «Cartas Provinciais», que foram mandadas queimar pelo Rei e, durante vários séculos, caíram muito mal entre os jesuítas.

A novidade é que o Papa Francisco se coloca do lado de Blaise Pascal, porque «a lógica casuística, diz o Papa, é uma hipocrisia».

Pascal viveu depois da sua conversão uma fé radical, de entrega a Deus e aos outros, mas sem aqueles traços de rigorismo pessimista ou de amargura que, segundo os seus adversários, caracterizavam o jansenismo. Outro dos méritos de Pascal foi reconhecer o papel da razão, reivindicado poderosamente por João Paulo II na sua Encíclica «Fides et ratio» (sobre a fé e a razão). A fé de Pascal nunca resvalou para o sentimentalismo, mas era a atitude racional de quem confia em Deus e argumenta solidamente essa confiança.

Estando Pascal a morrer, as autoridades religiosas recusaram-lhe os Sacramentos da Eucaristia e da Extrema-unção. Então, o extraordinário filósofo e cientista pediu para o levarem para o meio dos pobres, membros do Corpo de Cristo. Penso que este amor pelos pobres, característico de todos os santos, deve ser um elemento que o une ao Papa Francisco. 

Nestor lê os «Pensamentos» de Pascal, enquanto o Sr. Lampion fala ao telefone sem parar.

P.S.: Um padre de Lisboa, suspenso preventivamente durante vários meses devido a uma acusação de abuso sexual, acaba de ser reintegrado. Não se sabe quem fez a acusação, nem que crime teria sido cometido, nem quando. Centenas de pessoas manifestaram a sua perplexidade com esta acusação inverosímil. Terminou agora a injustiça flagrante. É preciso firmeza contra quaisquer abusadores, mas penas destas contribuem para isso?» 

José Maria C. S. André
Publicado, em Junho, em media canadianos e dos Açores 

Em todas as épocas, são extraordinárias as pessoas que aceitam as tribulações para defender o que consideram ser o caminho certo, verdadeiro. Mesmo sem o saberem, resultam num farol luminoso no meio da maior escuridão e desesperança, quando no curto prazo a corrupção parece dominar tudo e todos. Felizmente, não é assim, porque (curiosamente) o futuro tolera mal a mesquinheza e a mentira. Pascal teve requintes de grandeza humana inequívocos, que servem de exemplo para as fases turvas e decadentes da História, esgrimindo a sua voz e o seu prestígio a favor dos mais fracos, até ser proscrito e se lhe apagar a voz… mas não o impacto luminoso de uma vida ao serviço dos que sofrem.  

Maria Zarco 
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

18 julho 2023

Preces dos dias que correm *

Ponta de S. Lourenço (Madeira) Julho de 2023

 Prece

Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser.
Mas lembra-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.
   
Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte (1959)

***

Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistamos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Fernando Pessoa, Mensagem

***

Prece

Talvez que eu morra na praia,
Cercado, em pérfido banho,
Por toda a espuma da praia,
Como um pastor que desmaia
No meio do seu rebanho…

Talvez que eu morra na rua
- Ínvia por mim de repente –
Em noite fria, sem Lua,
Irmão das pedras da rua
Pisadas por toda a gente!

Talvez que eu morra entre grades,
No meio duma prisão
E que o mundo, além das grades,
Venha esquecer as saudades
Que roem o meu coração.

Talvez que eu morra dum tiro,
Castigo de algum desejo.
E que, à mercê desse tiro,
O meu último suspiro
Seja o meu primeiro beijo…

Talvez que eu morra no leito,
Onde a morte é natural,
As mãos em cruz sobre o peito…
Das mãos de Deus tudo aceito.
- Mas que eu morra em Portugal!

Pedro Homem de Mello

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* publicado originalmente a 24 de Setembro de 2015

16 julho 2023

XV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 13,1-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele dia,
Jesus saiu de casa e foi sentar-Se à beira-mar.
Reuniu-se à sua volta tão grande multidão
que teve de subir para um barco e sentar-Se,
enquanto a multidão ficava na margem.
Disse muitas coisas em parábolas, nestes termos:
"Saiu o semeador a semear.
Quando semeava,
caíram algumas sementes ao longo do caminho:
vieram as aves e comeram-nas.
Outras caíram em sítios pedregosos,
onde não havia muita terra,
e logo nasceram porque a terra era pouco profunda;
mas depois de nascer o sol, queimaram-se e secaram,
por não terem raiz.
Outras caíram entre espinhos
e os espinhos cresceram e afogaram-nas.
Outras caíram em boa terra e deram fruto:
umas, cem; outras, sessenta; outras, trinta por um.
Quem tem ouvidos, oiça".

Os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
"Porque lhes falas em parábolas?"
Jesus respondeu-lhes:
"Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos Céus,
mas a eles não.
Pois àquele que tem dar-se-á e terá em abundância;
mas àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado.
É por isso que lhes falo em parábolas,
porque vêem sem ver e ouvem sem ouvir nem entender.
Neles se cumpre a profecia de Isaías que diz:
'Ouvindo ouvireis, mas sem compreender;
olhando olhareis, mas não vereis.
Porque o coração deste povo tornou-se duro:
endureceram os seus ouvidos e fecharam os seus olhos,
para não acontecer
que, vendo com os olhos e ouvindo com os ouvidos
e compreendendo com o coração,
se convertam e Eu os cure'.
Quanto a vós, felizes os vossos olhos porque vêem
e os vossos ouvidos porque ouvem!
Em verdade vos digo: muitos profetas e justos
desejaram ver o que vós vedes e não viram
e ouvir o que vós ouvis e não ouviram.
Vós, portanto, escutai o que significa a parábola do semeador:
Quando um homem ouve a palavra do reino
e não a compreende,
vem o Maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração.
Este é o que recebeu a semente ao longo do caminho.
Aquele que recebeu a semente em sítios pedregosos
é o que ouve a palavra e a acolhe de momento,
mas não tem raiz em si mesmo, porque é inconstante,
e, ao chegar a tribulação ou a perseguição por causa da palavra,
sucumbe logo.
Aquele que recebeu a semente entre espinhos
é o que ouve a palavra,
mas os cuidados deste mundo e a sedução da riqueza
sufocam a palavra, que assim não dá fruto.
E aquele que recebeu a palavra em boa terra
é o que ouve a palavra e a compreende.
Esse dá fruto,
produz ora cem, ora sessenta, ora trinta por um".

13 julho 2023

Em memória de Milan Kundera (1929 - 2023)

A Sabedoria do Romance

O homem deseja um mundo em que o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, porque nele há o desejo, inato e indomável, de julgar antes de compreender. Sobre esse desejo são fundadas as religiões e as ideologias. Estas não se podem conciliar com o romance a não ser que traduzam a linguagem de relatividade e de ambiguidade dele para o seu discurso apodítico e dogmático. Exigem que alguém tenha razão: ou Anna Karenina é vítima de um déspota limitado, ou Karenine é vítima de uma mulher imoral; ou então K., inocente, é esmagado por um tribunal injusto, ou então, por trás do tribunal, está escondida a justiça divina e K. é culpado.
Neste «ou então-ou então» está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de olhar de frente a ausência do Juiz supremo. Por causa desta incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.

Milan Kundera, in "A Arte do Romance"

***

A Verdadeira Beleza de uma Mulher

Uma roupa desacertada, uns dentes ligeiramente tortos, uma mediocridade requintada da alma – estes são os tipos de detalhes que fazem uma mulher real, viva. As mulheres que vemos nos cartazes ou em revistas de moda – aquelas que todas as mulheres tentam imitar hoje em dia – como é que podem ser atraentes? Elas não têm realidade própria; são apenas a soma de um conjunto de regras abstractas. Elas não nascem de corpos humanos; elas nascem prontas a servir a partir de computadores.

Milan Kundera, in 'A Brincadeira'

12 julho 2023

Saudades Tuas *

 Por norma, estico-me devagar, sobretudo porque ao comprido o sono se apressa, e aguardo, num sossego mudo, que a noite me desça também sobre os olhos. Tenho tido saudades tuas. O Outono tem o condão de espicaçar a lembrança do teu corpo enroscado no meu, num novelo de calor. Pode ser que seja do frio, meio irmão da solidão, ou pode ser só mariquice, de qualquer forma, a tua ausência deixa-me suficientemente inquieto para rebolar uns minutos inconformados. Pensava que podia armar-me em homem e adormecer logo tudo de uma vez, te-lo-ia feito, noutro tempo, antes de te saber a outra metade da minha noite, mas agora já não consigo. Tenho tido saudades tuas.

Zdt.

* publicado originalmente a 16 de Novembro de 2010


11 julho 2023

Poemas e imagens dos dias que correm

 

Bintan, Indonésia (Maio 2023)

Felicidade

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas. 

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste. 

Cecília Meireles

10 julho 2023

Duas últimas *

 Esta música terá sido gravada em 1972. Procurei vagamente os motivos para o título, achando que poderia relacionar-se com o encontro de uma criança com a sua mãe. No primeiro comentário que vislumbrei há um petit rien de júbilo: uma música de paz, a celebrar o regresso dos soldados do Vietname. Não desisti da busca de uma comoçãozita nostálgica que contrabalançasse o ritmo alegre do reggae. Eis que me confronto com o espanto: a música relaciona-se com a morte do cão do artista, que foi buscar (o artista, não o cão) o título Mother and Child Reunion ao nome de uma receita chinesa feito com galinha e ovos... Há uma altura em que devemos interromper a nossa demanda, sob risco de desmoronamento emocional das nossas entranhas.

Talvez me lembre desta música em 1973, passava eu férias em Armação de Pêra (a convite do JdC, eminente colega bloguista), quando esta vila não era a profusão de rotundas e prédios que nascem do asfalto algarvio como cogumelos alucinogénicos. A vida corria mansa, com praia pela manhã, mini-golfe a seguir ao almoço, aprendizagem do King bufando cigarradas adolescentes, jogos de verdade ou consequência ao som de um coração que palpitava por um beijo na (ou quem sabe da...) rapariga de quem se gosta, cartas que se recebiam com uma alegria temerosa, porque o carteiro nem sempre toca duas vezes. De noite talvez (também) se dançasse Paul Simon num terraço qualquer, sob um céu mais estrelado do que o de hoje, porque a poluição não era tanta e a camada de ozono (tem a ver com as estrelas no céu?) era uma expressão de ficção científica.

Sou, decididamente, um nostálgico - ou talvez tenha as minhas memórias antigas mais frescas do que as modernas. A vida tinha menos confortos, ir daqui ao Algarve era um experiência rodoviária ímpar, à luz de hoje não se percebe como conseguíamos viajar num carro sem ar condicionado, direcção assistida ou com os postos de telefonia (dantes dizia-se telefonia, conjuntos, boîtes...) a desaparecerem ao fim de dez minutos de estrada. Tínhamos menos coisas, havia menos coisas, precisávamos de menos coisas - talvez por isso tudo fosse tão simples, tão divertido, tão arrebatador.

JdB

* publicado originalmente a 29 de Março de 2011 

09 julho 2023

XIV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mt 11,25-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, Jesus exclamou:
"Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes
e as revelaste aos pequeninos.
Tudo me foi dado por meu Pai.
Sim, Pai, Eu Te bendigo,
porque assim foi do teu agrado.
Ninguém conhece o Filho senão o Pai
e ninguém conhece o Pai senão o Filho
e aquele a quem o Filho o quiser revelar.
Vinde a Mim,
todos os que andais cansados e oprimidos,
e Eu vos aliviarei.
Tomai sobre vós o meu jugo
e aprendei de Mim,
que sou manso e humilde de coração,
e encontrareis descanso para as vossas almas.
Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve".

06 julho 2023

Carta a um anjo

 Nasceste hoje, mas há 29 anos.

***

Durante anos a fio poucos de nós sabiam que existia cancro nas crianças. Nos últimos dois ou três anos, talvez, correspondi-me, encontrei-me, conversei com quatro ou cinco ou seis pessoas que se confrontaram com a mesma estupecção: como assim, o meu filho pequeno tem cancro? Para além destes, vou sabendo de outros casos - filhos de pessoas que conhecem pessoas que me conhecem. É uma doença que existe, que aterroriza (apesar das enormes taxas de sucesso) que desestrutura uma família, que enche os dias de insónias e angústias. Mas é, também, uma doença que transforma pessoas - há quem fique mais forte, quem fique mais ansioso, quem ganhe ou perca fé, quem conjugue de forma diferente os verbos onde cabem futuro, presente, expectativa. Há quem se entregue e há quem fuja; há quem encontre sentido para as coisas e há quem perca o sentido das coisas. Há, por fim, quem queira guardar tudo dentro de si e há quem queira contar uma história para a qual nem sempre encontra interlocutor. 

Talvez as pessoas que me tenham agradecido eu ter-me cruzado na vida delas - eu que nem sabia que estas pessoas existiam - tenham encontrado em mim o ouvinte de que precisavam, alguém que não lhes dizia mais do que banalidades mas que imaginava (só se imagina, nunca se sabe) o que lhes ia na alma. A todas agradeço a confiança, a todas sou devedor de uma história partilhada que me enriqueceu internamente. Ser confrontado com a esperança, o desespero, a tristeza, a fé, a força, o choro ininterrupto ou o sentimento de injustiça, faz de nós pessoas mais conscientes da diversidade humana; faz de nós uma espécie de exploradores dos tempos modernos que descobrem, não a lança que trespassou Jesus Cristo ou o cálice da última ceia, mas o lugar geométrico onde todos nos encontramos e onde somos todos iguais - esse lugar que se chama vulnerabilidade. A descoberta da fragilidade no próximo, o contacto com a fragilidade do próximo é uma experiência humana fortíssima, sobretudo quando se sente que ela gemina com a nossa própria fragilidade. É dizer ao Outro, ou permitir que o Outro nos diga: põe a mão no meu coração. Altera-nos, aumenta-nos, comove-nos.

Não sei como se regista a vulnerabilidade que vemos nos outros, como se descreve a esperança que vemos nos outros, como se partilha uma história que, de uma certa forma, nos torna todos irmãos e iguais, apesar de todas as diferenças. É preciso dar um palco a estas histórias, acreditar que tudo é suportável se de tudo fizermos uma história, mas também que nada aconteceu verdadeiramente até ser descrito por palavras. 

Escrever sobre isto é fechar um ciclo que tem sempre uma abertura por onde se entra ou por onde se sai. Quem passa pela experiência de um filho com cancro, qualquer que seja o desfecho, pode fechar um ciclo, mas não apaga uma memória. Viver com esta lembrança não é uma fatalidade de que não conseguimos fugir. No fundo, talvez seja a humanidade a dizer-nos para não nos esquecermos de deixar o mundo um bocadinho melhor, para sermos os ouvidos dos que não tiveram boca. Quem não encontra uma escuta dificilmente terá uma voz.

***

Nasceste hoje, mas há 29 anos. O teu nascimento abriu as portas de um mundo que não sabíamos que existia, mas que nos transformou. Não somos os mesmos, não seremos os mesmos.

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram

05 julho 2023

Vai um gin do Peter’s ?

FOCADA NO ESSENCIAL  

Em Setembro passado, uma mãe – Mariana Abranches Pinto – partilhou o seu testemunho a acompanhar uma filha de 17 anos, com um cancro terminal. Ambas se prepararam para o cenário mais doloroso, inevitável no estádio avançado da doença. E a Nini partiu recentemente. Aquele testemunho foi dado no evento nortenho TEDxPortoSalon, onde a Mariana contou a sua experiência da melhor forma, com a autoridade de estar no olho do furacão.  


A sua intervenção mereceu um título desafiante, revelador da generosidade desta mãe coragem: «O bom morrer é responsabilidade de todos». Com serenidade, explica-nos a importância e o gosto de poder ajudar a avançar na vida. Sim, de aprendermos a viver, porque é disso que se trata. Um médico catalão até dá o conselho de termos bem presente a morte, no dia-a-dia, ganhando aquela familiaridade com que os piratas das Caraíbas levam um papagaio pousado no ombro. Não por sadomasoquismo, mas como lembrete para saborearmos melhor o presente, que é incrivelmente fugaz, para nos concentrarmos no que interessa realmente, indo ao essencial.

Do que disse, vale também a pena destacar a associação em que passou a colaborar – a Compassio (http://compassio.pt/) – para apoiar as famílias de doentes terminais e os próprios, cumprindo uma das missões mais difíceis e, simultaneamente, gratificantes: fazer companhia a quem sofre. Pretende-se que ninguém fique isolado e, aos poucos, possa encontrar um sentido na vida e voltar a ter um quotidiano preenchido, normalizado. Numa palavra: ajuda-se quem sofre a ser feliz, apesar e para lá das condições difíceis que lhe calhem em sorte.  

Cada um no seu calendário e nas suas circunstâncias específicas caminha para a derradeira etapa em que enfrentaremos a passagem desta vida para outra. Será o momento da morte. Poder avançar com companhia amiga é dos maiores dons! Que inspirador haver gente que nos ajuda a recentrar no essencial!  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

04 julho 2023

Poemas dos dias que correm

 Poema dum Funcionário Cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos 
dispersou-me os amigos 
tenho o coração confundido e a rua é estreita 

estreita em cada passo 
as casas engolem-nos 
sumimo-nos, 
estou num quarto só num quarto só 
com os sonhos trocados 
com toda a vida às avessas a arder num quarto só 

Sou um funcionário apagado 
um funcionário triste 
a minha alma não acompanha a minha mão 
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? 

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino 
irmão beijo namorada 
mãe estrela música 

São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida 
num quarto só 

António Ramos Rosa, in 'O Grito Claro'

02 julho 2023

XIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 10,37-42

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos:
"Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim,
não é digno de Mim;
e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim,
não é digno de Mim.
Quem não toma a sua cruz para Me seguir,
não é digno de Mim.
Quem encontrar a sua vida há-de perdê-la;
e quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la.
Quem vos recebe, a Mim recebe;
e quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou.
Quem recebe um profeta por ele ser profeta,
receberá a recompensa de profeta;
e quem recebe um justo por ele ser justo,
receberá a recompensa de justo.
E se alguém der de beber,
nem que seja um copo de água fresca,
a um destes pequeninos, por ele ser meu discípulo,
em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa".

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