Nasceste hoje, mas há 29 anos.
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Durante anos a fio poucos de nós sabiam que existia cancro nas crianças. Nos últimos dois ou três anos, talvez, correspondi-me, encontrei-me, conversei com quatro ou cinco ou seis pessoas que se confrontaram com a mesma estupecção: como assim, o meu filho pequeno tem cancro? Para além destes, vou sabendo de outros casos - filhos de pessoas que conhecem pessoas que me conhecem. É uma doença que existe, que aterroriza (apesar das enormes taxas de sucesso) que desestrutura uma família, que enche os dias de insónias e angústias. Mas é, também, uma doença que transforma pessoas - há quem fique mais forte, quem fique mais ansioso, quem ganhe ou perca fé, quem conjugue de forma diferente os verbos onde cabem futuro, presente, expectativa. Há quem se entregue e há quem fuja; há quem encontre sentido para as coisas e há quem perca o sentido das coisas. Há, por fim, quem queira guardar tudo dentro de si e há quem queira contar uma história para a qual nem sempre encontra interlocutor.
Talvez as pessoas que me tenham agradecido eu ter-me cruzado na vida delas - eu que nem sabia que estas pessoas existiam - tenham encontrado em mim o ouvinte de que precisavam, alguém que não lhes dizia mais do que banalidades mas que imaginava (só se imagina, nunca se sabe) o que lhes ia na alma. A todas agradeço a confiança, a todas sou devedor de uma história partilhada que me enriqueceu internamente. Ser confrontado com a esperança, o desespero, a tristeza, a fé, a força, o choro ininterrupto ou o sentimento de injustiça, faz de nós pessoas mais conscientes da diversidade humana; faz de nós uma espécie de exploradores dos tempos modernos que descobrem, não a lança que trespassou Jesus Cristo ou o cálice da última ceia, mas o lugar geométrico onde todos nos encontramos e onde somos todos iguais - esse lugar que se chama vulnerabilidade. A descoberta da fragilidade no próximo, o contacto com a fragilidade do próximo é uma experiência humana fortíssima, sobretudo quando se sente que ela gemina com a nossa própria fragilidade. É dizer ao Outro, ou permitir que o Outro nos diga: põe a mão no meu coração. Altera-nos, aumenta-nos, comove-nos.
Não sei como se regista a vulnerabilidade que vemos nos outros, como se descreve a esperança que vemos nos outros, como se partilha uma história que, de uma certa forma, nos torna todos irmãos e iguais, apesar de todas as diferenças. É preciso dar um palco a estas histórias, acreditar que tudo é suportável se de tudo fizermos uma história, mas também que nada aconteceu verdadeiramente até ser descrito por palavras.
Escrever sobre isto é fechar um ciclo que tem sempre uma abertura por onde se entra ou por onde se sai. Quem passa pela experiência de um filho com cancro, qualquer que seja o desfecho, pode fechar um ciclo, mas não apaga uma memória. Viver com esta lembrança não é uma fatalidade de que não conseguimos fugir. No fundo, talvez seja a humanidade a dizer-nos para não nos esquecermos de deixar o mundo um bocadinho melhor, para sermos os ouvidos dos que não tiveram boca. Quem não encontra uma escuta dificilmente terá uma voz.
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Nasceste hoje, mas há 29 anos. O teu nascimento abriu as portas de um mundo que não sabíamos que existia, mas que nos transformou. Não somos os mesmos, não seremos os mesmos.
❤️🙏🏻
ResponderEliminarO que fizeste desde há mais de 22 anos, o apoio que a tantos tens oferecido, os cargos a que nesta área deste ou dás o teu esforço e dedicação, falam por si e dispensam comentários.
ResponderEliminarTens na Madalena a tua fonte inesgotável de inspiração e força.
Grande abraço,
fq