06 julho 2023

Carta a um anjo

 Nasceste hoje, mas há 29 anos.

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Durante anos a fio poucos de nós sabiam que existia cancro nas crianças. Nos últimos dois ou três anos, talvez, correspondi-me, encontrei-me, conversei com quatro ou cinco ou seis pessoas que se confrontaram com a mesma estupecção: como assim, o meu filho pequeno tem cancro? Para além destes, vou sabendo de outros casos - filhos de pessoas que conhecem pessoas que me conhecem. É uma doença que existe, que aterroriza (apesar das enormes taxas de sucesso) que desestrutura uma família, que enche os dias de insónias e angústias. Mas é, também, uma doença que transforma pessoas - há quem fique mais forte, quem fique mais ansioso, quem ganhe ou perca fé, quem conjugue de forma diferente os verbos onde cabem futuro, presente, expectativa. Há quem se entregue e há quem fuja; há quem encontre sentido para as coisas e há quem perca o sentido das coisas. Há, por fim, quem queira guardar tudo dentro de si e há quem queira contar uma história para a qual nem sempre encontra interlocutor. 

Talvez as pessoas que me tenham agradecido eu ter-me cruzado na vida delas - eu que nem sabia que estas pessoas existiam - tenham encontrado em mim o ouvinte de que precisavam, alguém que não lhes dizia mais do que banalidades mas que imaginava (só se imagina, nunca se sabe) o que lhes ia na alma. A todas agradeço a confiança, a todas sou devedor de uma história partilhada que me enriqueceu internamente. Ser confrontado com a esperança, o desespero, a tristeza, a fé, a força, o choro ininterrupto ou o sentimento de injustiça, faz de nós pessoas mais conscientes da diversidade humana; faz de nós uma espécie de exploradores dos tempos modernos que descobrem, não a lança que trespassou Jesus Cristo ou o cálice da última ceia, mas o lugar geométrico onde todos nos encontramos e onde somos todos iguais - esse lugar que se chama vulnerabilidade. A descoberta da fragilidade no próximo, o contacto com a fragilidade do próximo é uma experiência humana fortíssima, sobretudo quando se sente que ela gemina com a nossa própria fragilidade. É dizer ao Outro, ou permitir que o Outro nos diga: põe a mão no meu coração. Altera-nos, aumenta-nos, comove-nos.

Não sei como se regista a vulnerabilidade que vemos nos outros, como se descreve a esperança que vemos nos outros, como se partilha uma história que, de uma certa forma, nos torna todos irmãos e iguais, apesar de todas as diferenças. É preciso dar um palco a estas histórias, acreditar que tudo é suportável se de tudo fizermos uma história, mas também que nada aconteceu verdadeiramente até ser descrito por palavras. 

Escrever sobre isto é fechar um ciclo que tem sempre uma abertura por onde se entra ou por onde se sai. Quem passa pela experiência de um filho com cancro, qualquer que seja o desfecho, pode fechar um ciclo, mas não apaga uma memória. Viver com esta lembrança não é uma fatalidade de que não conseguimos fugir. No fundo, talvez seja a humanidade a dizer-nos para não nos esquecermos de deixar o mundo um bocadinho melhor, para sermos os ouvidos dos que não tiveram boca. Quem não encontra uma escuta dificilmente terá uma voz.

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Nasceste hoje, mas há 29 anos. O teu nascimento abriu as portas de um mundo que não sabíamos que existia, mas que nos transformou. Não somos os mesmos, não seremos os mesmos.

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram

2 comentários:

  1. O que fizeste desde há mais de 22 anos, o apoio que a tantos tens oferecido, os cargos a que nesta área deste ou dás o teu esforço e dedicação, falam por si e dispensam comentários.

    Tens na Madalena a tua fonte inesgotável de inspiração e força.

    Grande abraço,
    fq

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