COMO KAFKA TERÁ CONSOLADO UMA CRIANÇA
Um ano antes da sua morte, no passeio diário pelo parque Steglitz, em Berlim, conta-se que o escritor checo de raízes judaicas Franz Kafka (1883-1924) e a sua última companheira Dora Diamant deram com uma criança a chorar copiosamente. Querendo consolá-la, aproximaram-se para perceber o motivo do desgosto – perdera a boneca. Habilmente, Kafka sugeriu à menina que não se tratara de uma perda mas de uma partida, pois a boneca decidira viajar pelo mundo, desejosa de conhecer outros lugares e novos amigos.
O olhar atento, frontal e triste, que perpassa nos seus livros. À direita: num café de Praga, no 1º quartel do séc.XX. |
Estátuas de homenagem a Kafka, na sua cidade natal – Praga. O da esquerda evoca o conto do checo «Descrição de uma luta». |
Dora Diamant – atriz polaco-judia, oriunda de uma família judia ortodoxa, perto de 15 anos mais nova do que Kafka, que o terá reaproximado do Talmude. |
Semi incrédula, a pequenina enxugou as lágrimas e começou a inquirir o seu interlocutor sobre a veracidade da insólita justificação daquele desaparecimento doloroso. Desencantando nova proeza ficcional, o checo insistiu na sua tese e propôs-se mostrar-lhe uma prova da partida da boneca, aludindo à carta que esta lhe escrevera, na qualidade de ‘carteiro de bonecas viajantes’. Surpreendida e confusa, a criança ficou a aguardar pela carta de que Kafka era, estranhamente, o guardião.
Mal chegou a casa – contou Dora Diamant – o escritor sentou-se à escrevaninha, com o empenho nervoso com que cumpria as suas obrigações editoriais, e começou a redigir a primeira missiva da boneca viajante. No dia seguinte, leu-a e entregou-a à criança, comprometendo-se a servir de correio para as novas epístolas da boneca a narrar as aventuras pelo mundo. Ao longo de um par de semanas, o escritor e Dora cumpriram o ritual do encontro no parque com a pequenina, sempre com um novo escrito da boneca. Entretanto, o escritor teve um novo surto de tuberculose e foi internado. A 3 de Junho de 1924, com 40 anos, chegou a hora da Partida de quem se prestara ao humilde papel de mero carteiro.
Um dos especialistas em Kafka – Klaus Wagenbach – procurou, em vão, pela criança e pelas cartas que o checo lhe teria escrito, em nome da boneca. Assim, subsiste como única fonte deste episódio da biografia de Kafka a sua última companheira.
Décadas depois, a história inspirou outros escritores, como Paul Auster, que a narrou na novela «The Brooklin Follies». Também o psicoterapeuta May Benatar a publicou sob o título «Kafka e a boneca: a omnipresença da perda», introduzindo um desfecho em que o escritor oferecia uma boneca à criança com o seguinte bilhete para justificar a nova aparência do brinquedo: «As viagens mudaram-me»! Mais tarde, teria encontrado um segundo bilhete escondido dentro da boneca, onde rezava: «tudo o que amas, provavelmente, perderás, mas no final o amor voltará sob uma forma diferente».
Um terceiro escritor, de língua espanhola, também aproveitou a correspondência perdida de Kafka para compor um romance: «Kafka y la muneca viajera», resultado da parceria entre o texto do catalão Jordi Sierra i Fabra e do ilustrador de jornais como El Pais e o The New York Times – Pep de Montserrat.
«Kafka y la muneca viajera» - no livro de Jordi Sierra i Fabra, com ilustrações de Pep Montserrat. |
Segundo a conclusão de Dora: Kafka pôs a arte ao serviço de uma criança para lhe devolver a alegria, após uma perda sentida com enorme desgosto. Escalando no potencial da ficção, desencantou um óptimo truque literário para consolar a pequenina.
Uma curta-metragem inspira-se também naquele encontro do escritor com a criança, que teria puxado pelo lado solar da criatividade turbulenta, sumamente angustiada, mas genial de Kafka, mais dada a explorar os refolhos obscuros da alma e da mente humanas para denunciar as engrenagens ilógicas e castradoras da sociedade, frequentemente usadas para domar e formatar os indivíduos.