21 maio 2024

Das perdas e das demolições

Ontem ao princípio da tarde recebia, de uma boa amiga brasileira, o whatsapp abaixo:

Bom dia/ boa tarde, João
Espero que esteja bem.
Na última noite, nossa grande amiga Fernanda descansou, depois de uma árdua batalha!
Estava em casa, cercada de sua família, como ela desejou.
Obrigada por ter trazido a ela esperança e luz ao apoiar nosso projeto!
Um grande abraço. 

Conheci a Fernanda por motivos desafiantes. Tinha perdido um filho pequeno para o cancro e fora-me apresentada por uma amiga comum. A Fernanda fazia parte de um projecto no Brasil (projecto que ela acarinhava muito) para o qual eu havia sido convidado, e mantivemos reuniões via zoom que geraram uma grande confiança e amizade mútuas. A morte recente do filho era ainda motivo de muito sofrimento, e ela socorria-se de mim para escrever sobre o tema, para perguntar como se sobrevive a isto, como se recupera disto, que sentido damos a tudo isto. 

Fora-lhe diagnosticado um cancro muito agressivo, mas ainda teve tempo e força para ir ao congresso de Outubro em Ottawa. Abraçámo-nos longa e apertadamente, como dois amigos de longa data. O nosso abraço confirma a ideia de que a amizade é um produto da antiguidade e da intensidade. A amizade que nos unia era forte, porque assentava num sofrimento e numa partilha comuns. Até àquele abraço nunca nos tínhamos encontrado.

Tive um desgosto muito grande. Nestes momentos é fatal que nos assalte a dúvida sobre a justiça da vida, sobre os dramas de quem passa pela morte de filhos e vem a morrer pouco tempo depois, deixando também filhos pequenos. Só me resta lembrar a forma como ela (também a meu pedido, porque eu gostava muita da expressão) acabava os mails que me escrevia: gratidão sempre.    

***

Recebi esta fotografia no mesmo dia em que soube da morte da Fernanda. O que se vê por detrás daquela máquina é o que resta de uma casa onde eu vivi entre 1981 e 1986 e onde voltei com uma grande regularidade, porque foi ali que a minha mãe morou até morrer, há quase 9 anos, parece-me. 

É possível que não tenha sentimentos por casas, ou não tenha vivido em nenhuma o suficiente para criar afectos ou laços. Ver a casa demolida numa fotografia é ver uma casa demolida numa fotografia. Talvez a minha emoção seja diferente quando vir - ao vivo - o que resta daquela moradia no Monte Estoril. A casa faz parte da minha história: dali saía para namorar, dali saí para casar, ali voltava casado e com filhos, e também em circunstâncias particulares diferentes, algumas muito difíceis, outras de esperança. Porém, apesar das memórias, nada me bate muito fundo. Tenho uma lembrança afectuosa desse tempo, não do espaço que contém esse tempo.

***

O que torna a fotografia da casa e a morte da Fernanda pontos do mesmo contínuo? A ideia de que a vida pode ser uma máquina pesada: num instante aproxima-se de coisas ou pessoas e deita-as abaixo. Tudo é efémero e fruto de caprichos, quer seja dos negócios, quer seja do destino. Resta-nos acarinhar o que ainda temos, porque ninguém sabe quando chega o bulldozer.   

JdB  

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